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O Direito é instrumento de poder e também de liberdade. Tudo depende do uso que se faz dele. De acordo com o art. 3º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, “ninguém pode se escusar de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (BRASIL, 1942). A partir dessa frase, é possível perceber o viés arbitrário do Direito, pois qual será a saída para aqueles que, de fato, não são conhecedores da legislação, mas, ainda assim, estão sujeitos a ela?

Desde longa data, vários autores, dentre os quais se destacam Gilberto Freyre (1933), Sérgio Buarque (1936), Raimundo Faoro (1958) e Roberto da Matta (1936), respeitadas as diferenças e particularidades de cada um, compreendem a sociedade brasileira associada às noções de personalismo, parentesco e patrimonialismo. A partir desse ponto de vista, pode-se compreender a permanência de instituições, de valores e de práticas sociais que marcaram a formação colonial brasileira e que, em certa medida, permanecem ainda hoje.

Thompson (1987), ao buscar compreender a origem e o significado da lei negra (1723), na Inglaterra, explica como um instrumento legal pode funcionar como uma estrutura de poder. Essa lei visava a conter as ações de caçadores clandestinos que, reivindicando usos costumeiros consolidados, transpunham as fronteiras dos parques e florestas da Coroa e, de lá, retiravam produtos silvestres. O objetivo de Thompson (1987) estava embasado na

constatação da importância da lei, na história jurídica do século XVIII, de preservar a propriedade privada e assegurar interesses de grupos fortes.

A lei negra estabeleceu um conflito entre aqueles que retiravam o sustento das florestas e os grandes proprietários de terras ao tornar crime algumas práticas econômicas que asseguravam a sobrevivência das famílias camponesas, como caça e coleta de frutos. Com a lei, a gentry29 inglesa declarava guerra contra todo e qualquer indivíduo que não se adequasse ao novo padrão de propriedade privada que surgia no século XVIII, na Inglaterra. Padrão esse que se relacionava diretamente com os interesses burgueses da aristocracia comercial (CÂNDIDO, 2000).

Segundo Thompson (1987), a lei pode ser considerada uma instituição, mas também uma ideologia. Para o autor, não se pode acreditar na imparcialidade abstrata da lei, pois ela pode ser também um instrumento de dominação. Nessa mesma linha de pensamento, Santos (2003, p .63), ao refletir se o se o Direito é ou não emancipatório, conclui que não é “emancipatório”, tampouco “não emancipatório”; ou seja, ele pode tanto aprisionar quanto libertar. Quem atribui ao Direito o caráter de libertador ou de aprisionador são os grupos ou as instituições que fazem uso dele. Segundo Santos (2003), o direito oficial faz parte de um vasto conjunto de recursos políticos, ou seja, o que é permitido é o que está de acordo com os interesses dos grupos que estão por trás do Estado. O que não está de acordo com tais interesses é considerado ilegal. Assim, muitas vezes, “o direito oficial” não consegue captar a experiência de vida do indivíduo; e, assim, tais experiências transformam-se em práticas ilegais.

De acordo com Santos (2003), muitas dessas práticas são, na verdade, legalidades alternativas, modalidades de direito que surgem no contexto doméstico, no contexto do trabalho, no da cidadania, mas que foram tidas como irrelevantes quando da criação do direito oficial, pelo Estado. Nesse sentido, percebe-se a incapacidade do Direito de ser instrumento de emancipação social, na medida em que reconhece os interesses de alguns grupos, mas exclui os de outros que não conseguem se fazer representar. Por não encontrarem identificação com a formulação jurídica e por não possuírem acessos aos meios que poderiam auxiliá-los, tais grupos a desconsideram, passando, então, a ocupar lugar na ilegalidade. A ausência das reivindicações de tais grupos nos textos das leis deve-se ao fato de serem esses

29 Designa-se gentry – do francês arcaico genterie – a nobreza rural europeia que, embora desprovida de títulos

indivíduos cidadãos, do ponto de vista formal, mas se encontrarem excluídos dos processos democráticos.

Segundo Santos (2003), para ser considerado emancipatório, o Direito precisa se adequar às reivindicações dos grupos sociais subalternos. A situação evidenciada por Santos (2003) está presente, também, na obra de Souza (2006), que afirma que uma característica marcante do desenvolvimento das sociedades de capitalismo periférico é a existência de um grande contingente populacional composto por marginalizados ou “desclassificados sociais”. Essas pessoas ocupam um lugar periférico na sociedade e permanecem desvinculadas dos processos econômicos, sociais e políticos básicos. Em conformidade com a teoria proposta por Souza (2006), tais indivíduos desfrutariam de um habitus precário, que estaria abaixo do “limite mínimo”, compreendido como habitus primário. Existe, portanto, um processo histórico de aprendizado coletivo que Souza propõe chamar de habitus primário. Pode-se entender o habitus primário como o padrão mínimo de participação na esfera social que confere a dignidade e as condições mínimas de reconhecimento e respeito social que possibilitam compartilhar da noção de cidadania em termos práticos e não apenas legais (SOUZA, 2006). Segundo esse autor, um contingente enorme de indivíduos da sociedade brasileira não compartilha desse habitus primário, estando situado abaixo do seu limite mínimo, posição que ele denomina de habitus precário. O habitus precário representa a ausência de reconhecimento social e a ausência das precondições de participação social com dignidade, refletindo e marcando um conjunto de disposições psicossociais não adaptadas ao contexto de participação social no mundo da produção capitalista (como trabalhador produtivo), assim como também na esfera pública (como cidadão pleno de direitos). Segundo Souza (2006, p. 38),

[...] aquele tipo de personalidade e de disposição de comportamento que não atendem às demandas objetivas para que, seja um indivíduo seja um grupo social, possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade do tipo moderno e competitivo, podendo gozar de reconhecimento social com todas as dramáticas consequências existenciais e políticas (SOUZA, 2006, p. 38).

Esses sujeitos que Souza (2006) classifica como “periféricos” são relegados à invisibilidade social, ou seja, não são vistos, não são ouvidos, não são notados, como se fossem menos cidadãos. Ainda que existam previsões legais sobre a igualdade fundamental entre os indivíduos, esses segmentos não desfrutam da igualdade assegurada porque não possuem reconhecimento, nem voz, nem acesso aos mecanismos de defesa e de obtenção das

prestações de que necessitam. Não possuem, portanto, a condição de dignidade humana respeitada.

Taylor (1997) afirma que é a “dignidade” que possibilita a formulação da ideia de direitos individuais potencialmente universalizáveis a todos os indivíduos, mas a igualdade estabelecida nas leis e normas somente é eficaz no âmbito social se a percepção dessa mesma igualdade na vida cotidiana estiver efetivamente internalizada na sociedade (TAYLOR, 1997). Assim, o autor procura encontrar, na concepção de uma política de reconhecimento, a saída para uma reelaboração da esfera pública que dê conta de atender às demandas que dizem respeito ao ideal de igualdade das democracias modernas e ao reconhecimento das especificidades das várias tradições culturais e das múltiplas formas de identidades constituídas historicamente.

A ideia é que o Estado crie políticas públicas que reconheçam as capacidades de tais indivíduos e deem a eles condições efetivas de exercer seus direitos, para que a dignidade não permaneça fundada no Direito sem que as pessoas possam, de fato, usufruir dela em razão das diferenças econômicas e sociais que existem na sociedade. Entretanto, historicamente, esse reconhecimento não tem ocorrido.

Isto pode ser notado na obra de Franco (1997), que vislumbra a existência da ralé social tanto no Brasil colônia quanto no Brasil moderno. Segundo ela, o surgimento da agricultura mercantil criou uma posição intermediária entre o senhor proprietário e o escravo, pois fez surgir o despossuído formalmente livre, cuja única forma de sobrevivência seria ocupar funções nas franjas da sociedade. De acordo com Franco, (1997) surgem, assim, “homens dispensáveis”, “sem razão de ser”, pois desvinculados dos processos essenciais da sociedade (p.13). Souza chama atenção para que essa dispensabilidade econômica de tais sujeitos irá marcar toda a sua existência moral e política. Os reflexos em relação à falta de reconhecimento desse grupo são condicionados pelo que Franco (1997) chama de “presença ausente da escravidão” (p.13), pois tais pessoas possuem um tipo de reconhecimento social muito parecido com aquele que o escravo tinha. Nas palavras da autora:

A constituição desse tipo de humano prende-se à forma como se organizou a ocupação do solo, concedido em grandes extensões e visando culturas onerosas. Dada a amplitude das áreas apropriadas e os limites impostos à sua exploração pelo próprio custo das plantações, decorreu uma grande ociosidade das áreas incorporadas aos patrimônios privados, podendo, sem prejuízo econômico, serem cedidas para uso de outro. Essa situação possibilitou e consolidou a

existência de homens destituídos da propriedade dos meios de produção, mas não de sua posse, e que foram plenamente submetidos às pressões econômicas decorrentes dessa condição. Assim, numa sociedade em que há concentração dos meios de produção, onde vagarosa, mas progressivamente, aumentam os mercados, paralelamente forma-se um conjunto de homens livres e expropriados que não conheceram os rigores do trabalho forçado e não se proletarizaram. Formou-se antes, uma ‘ralé’ que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens, a rigor, dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade. (FRANCO, 1997, p. 14).

A condição de subalterno (SANTOS, 2003), de sujeito periférico (SOUZA, 2006), de homens dispensáveis (FRANCO, 1997) ou mesmo de ralé social (FRANCO, 1997; SOUZA, 2006) protagonizada por alguns grupos sociais é evidenciada em muitos trabalhos que analisam o contexto socioeconômico brasileiro. Tendo em vista os objetivos da pesquisa geradora desta tese, que compreendem os agricultores familiares como alvo de uma invisibilidade social que se reflete na dificuldade de acessos por esse grupo, menciona-se aqui a pesquisa de Murta (2014), que evidenciou a invisibilidade e falta de reconhecimento dos sujeitos rurais periféricos, considerados como inferiores em relação a outros tipos de sujeitos. Segundo Murta (2014), esses sujeitos periféricos são tolhidos de reconhecimento, o que, por estar ligado às formas de atribuição de respeito e autoestima, afeta a própria formação de sua identidade individual. Assim, não são reconhecidos enquanto dotados de racionalidade por aqueles que mais se aproximam do modelo de sujeito pontual e, por consequência, nem por eles próprios, o que acaba gerando uma cultura da inferioridade e do silenciamento nesses espaços rurais.

Para Martins (1986), existe, no Brasil, uma história urbana e os personagens dessa história é que participam do pacto político, do qual o camponês é excluído e pelo qual é visto como um ator inferior, não essencial. Esse fato fez com que pouco se registrasse sobre o papel dos produtores de alimentos na construção do país, sendo o passado contado apenas sob a perspectiva da grande agricultura escravista, monocultora e de exportação – o ciclo do açúcar, o ciclo da borracha e o ciclo do café exemplificam essa tendência.

Na mesma linha, Altafin (2007) afirma que a história dos produtores de alimentos, no Brasil, está ligada à diferente trajetória de cinco grupos: índios, negros, mestiços, brancos não herdeiros e imigrantes europeus. Apesar de diferentes, esses grupos estão ligados pela posição secundária que ocuparam dentro do modelo de desenvolvimento do país, desde a sua origem. Enquanto a grande propriedade voltada para a monocultura de exportação recebia estímulos e

garantias dos governantes, esse mosaico de formas camponesas ligadas a cultivos alimentares dirigidos ao abastecimento interno era colocado à margem das políticas públicas. Para Wanderley (2003, p.37), o setor dos agricultores familiares “foi historicamente um setor bloqueado, impossibilitado de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social específica de produção.”.

5.3 O SOCIAL PERIFÉRICO À LUZ DO PRINCÍPIO JURÍDICO DA DIGNIDADE