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Capítulo 2. Criança: sujeito de direitos

2.3. O direito de brincar

Entendemos que o brincar é uma das formas de vivenciar o direito ao lazer, observado no artigo 4 do Estatuto da Criança e do Adolescente:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à

cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (Lei Federal 8.069, 1990, grifo nosso)

Assim como no artigo 71 da referida lei: “A criança e o adolescente têm direito à informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.” (Lei Federal 8.069, 1990,

grifo nosso)

No artigo 16, o direito à liberdade está associado, entre outros, ao do direito de brincar, praticar esportes e se divertir. Portanto, podemos concluir que a atividade lúdica se constitui como manifestação do direito à liberdade.

Outrossim, o brincar é observado como um direito individual do sujeito. Os direitos individuais, também denominados civis, são os direitos à liberdade, relativos a ir e vir, expressar opinião, brincar, praticar esporte, divertir-se, participar da vida familiar e comunitária, dentre outros. Nesse sentido, os direitos à liberdade envolvem a escolha do sujeito e a assunção de responsabilidade por suas conseqüências. Por outro lado, os direitos sociais, para se efetivarem, necessitam intervenção do Estado e co-responsabilização da família e da sociedade. São direitos sociais: os direitos à saúde, à educação, ao trabalho, à segurança e proteção, à previdência (Bobbio, 1992).

Cury (2006), refletindo sobre o direito de brincar, afirma que as crianças deveriam sempre ser estimuladas ao exercício dessa atividade, no entanto, “comumente os adultos tolhem a liberdade das crianças e adolescentes ao brinquedo.” (p.85)

Segundo Neill (1980) “o temor pelo futuro da criança leva os adultos a privarem os filhos do direito de brincar” (p.45), uma vez que é preciso que as crianças se dediquem a atividades sérias, que favoreçam a formação de um homem capaz de sobreviver ao mundo

competitivo que eles enfrentarão no futuro. Nesse sentido, os adultos esquecem que o brincar, além de muitas outras funções não menos importantes que serão abordadas no Capítulo 3, é uma ferramenta imprescindível para desenvolver a criatividade, tão cara ao mundo competitivo que vivemos.

Na Convenção dos Direitos da Criança também é possível observar uma preocupação de garantir, em lei, o direito da criança brincar.

Os Estados Partes reconhecem à criança o direito ao repouso e aos tempos livres, o direito de participar em jogos e atividades recreativas próprias da sua idade e de participar livremente na vida cultural e artística. (...) encorajam a organização, em seu benefício, de formas adequadas de tempos livres e de atividades recreativas, artísticas e culturais em condições de igualdade. (Convenção sobre os Direitos da Criança, art. 31)

Como é possível perceber, o brincar é um direito reconhecido em lei sendo, portanto, necessárias políticas públicas que garantam esse direito para todas as crianças, independente do local onde essa atividade se manifeste, seja na casa, na rua ou na escola.

Corroborando com a importância do brincar para a criança, Faria (1999) afirma que garantir o direito à infância implica em garantir

(...) o direito a brincar, a não trabalhar, a expressarem-se das mais variadas formas e intensidades, promovendo o exercício de todas as dimensões humanas (lúdica, artística, do imaginário etc.) e possibilitando a construção do conhecimento espontâneo, do imprevisto, da cultura infantil e seu intercâmbio com os adultos e suas culturas. (p.61)

O poeta Mario de Andrade, no período que foi diretor do Departamento de Cultura da prefeitura municipal de São Paulo, chamou atenção para o direito de brincar quando instituiu a criação dos parques infantis, em 1935, influenciando as políticas educacionais infantis daquele tempo.

Os Parques Infantis tinham como lema educar, assistir e recrear, assegurando o direito da criança ser criança, considerando as dimensões física, intelectual, cultural, lúdica, artística, etc. A brincadeira tinha um lugar de destaque na proposta dos Parques Infantis, sendo até uma exigência do programa dos concursos para as instrutoras a orientação de atividades recreativas espontâneas e o ensino da prática de jogos, assim como a participação com as crianças nas atividades lúdicas em geral. (...) A preocupação de Mário de Andrade era a valorização do prazer pelo prazer dos jogos e das brincadeiras. (Silva, 2007, p.17)

Analisando as políticas educacionais, podemos observar que o direito de brincar comparece de forma evidente no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI). De acordo com esse documento, levando em conta as “especificidades afetivas, emocionais, sociais e cognitivas” das crianças de zero a seis anos49 (p.13), a dinâmica da educação infantil deve ter como princípios norteadores, dentre outros: o respeito à dignidade e aos direitos das crianças, às diferenças individuais, sociais, econômicas, culturais, étnicas, religiosas, etc.; ao direito de brincar; e a vivência de experiências

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A referência à faixa etária de seis anos nos RCNEI é justificada pelo fato de sua publicação ser datada de 1998, anterior a mudança do Ensino Fundamental para nove anos e, conseqüentemente, a inserção das crianças de seis anos no ensino fundamental.

prazerosas, contribuindo, dessa forma, para o exercício da cidadania. (Ministério da Educação, 1998)

Diante dessa necessidade de uma educação infantil que favoreça o desenvolvimento integral da criança, o RCNEI (1998) considera o brincar uma atividade favorecedora das expressões das necessidades, bem como das emoções, pensamentos, desejos e sentimentos. Nesse sentido, o brincar é imbuído de grande importância nos documentos do MEC para a educação infantil, uma vez que a atividade lúdica é considerada, como “uma imitação transformada, no plano das emoções e das idéias, de uma realidade anteriormente vivenciada.” (Ministério da Educação, 1998, p.27). A partir das brincadeiras, as crianças recriam a realidade, sem perder a consciência de que estão brincando, é a não-literalidade da realidade que comparece na brincadeira, favorecendo a apropriação da realidade de forma criativa, contribuindo para o desenvolvimento infantil.

Portanto, como orientação didática, a rotina da criança deve envolver os cuidados e situações de aprendizagem orientada e o brincar, que é categorizado como uma atividade permanente, ou seja, consiste em uma ação que responde às necessidades básicas de cuidado, aprendizagem e prazer, necessitando, portanto, de uma presença permanente. O brinquedo também comparece nos documentos da educação infantil com uma função pedagógica, sendo considerado um “poderoso” auxiliar da aprendizagem.

Os Parâmetros Nacionais de Qualidade para Educação Infantil50 (Ministério da Educação, 2006), que têm como objetivo ser um instrumento referência para adoção de medidas de qualidade, assim como para a supervisão das instituições da educação infantil, considera que as crianças são: “cidadãos de direitos; indivíduos únicos, singulares; seres

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competentes, produtores de cultura” (p.18). Além disso, é importante que a educação infantil favoreça condições para as crianças desenvolverem suas potencialidades, apropriando-se e produzindo cultura. Para isso, os PNQEI, julgam como necessário o apoio às iniciativas espontâneas das crianças, dentre elas: “brincar; movimentar-se em espaços amplos e ao ar livre; expressar sentimentos e pensamentos; desenvolver a imaginação, a curiosidade e a capacidade de expressão; ampliar permanentemente conhecimentos a respeito do mundo da natureza e da cultura apoiadas por estratégias pedagógicas apropriadas.” (Ministério da Educação, 2006, pp.18-19).

Diante da importância atribuída ao brincar, o MEC atribui como objetivos da educação infantil, dentre outros,

garantir espaços físicos, equipamentos, brinquedos e materiais adequados nas instituições de Educação Infantil, considerando as necessidades educacionais especiais e a diversidade cultural. (...) Fortalecer parcerias para assegurar, nas instituições competentes, o atendimento integral à criança, considerando seus aspectos físico, afetivo, cognitivo/lingüístico, sociocultural, bem como as dimensões lúdica, artística e imaginária. (Ministério da Educação, 2006, p.19) No entanto, nos Parâmetros Curriculares Nacional, que norteiam o ensino fundamental, é possível perceber que o brincar não é uma preocupação evidente.

A análise dos documentos supracitados permite compreender que o objetivo maior da educação em nível de ensino fundamental é a formação do cidadão, que corresponde, segundo esses documentos, a sujeitos “capazes de atuar com competência e dignidade na sociedade” (Ministério da Educação, 2006, p.34). Para isso, se faz necessário o trabalho

com conteúdos que sejam questões sociais que marcam a sociedade em um dado momento histórico, favorecendo o exercício, por parte dos alunos, dos seus direitos e deveres.

Ou seja, o foco do trabalho no ensino fundamental é a construção de sujeitos cidadãos, críticos e autônomos51, não dando a devida importância ao sujeito que brinca; não havendo, portanto, uma preocupação com a atividade lúdica das crianças.

O objetivo dessa comparação entre educação infantil e ensino fundamental com foco no brincar é decorrente da condição dos sujeitos desta pesquisa: crianças de seis anos, inseridas no ensino fundamental. Uma mudança recente (regulamentada em 1996)52, implantada no sistema educacional, ampliou o ensino fundamental de oito para nove anos. Apesar de não ser o objetivo desta pesquisa, nos chama atenção o fato de crianças de seis anos, até pouco tempo estarem inseridas em escolas da educação infantil, onde há uma ênfase no brincar como favorecedor do desenvolvimento da criança e, a partir dessa mudança, essas crianças são inseridas no ensino fundamental, no qual o brincar pouco comparece. Portanto, fica um questionamento a respeito dessa transformação do ensino fundamental para nove anos: que lugar ocupa o brincar dessas crianças de seis anos, agora inseridas no ensino fundamental? É importante salientar que essa mudança do ensino fundamental para nove anos é recente e ainda está em processo, o que inviabiliza uma

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A autonomia refere-se à capacidade de posicionar-se, elaborar projetos pessoais e participar enunciativa e cooperativamente de projetos coletivos, ter discernimento, organizar-se em função de metas eleitas, governar-se, participar da gestão de ações coletivas, estabelecer critérios e eleger princípios éticos, etc. Isto é, a autonomia fala de uma relação emancipada, íntegra com as diferentes dimensões da vida, o que envolve aspectos intelectuais, morais, afetivos e sociopolíticos (Ministério da Educação, 2006, p.62).

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A ampliação do ensino fundamental para nove anos foi prevista na Lei nº 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

resposta à pergunta acima. Na verdade, o que se pretende com esse questionamento não é obter respostas, mas alertar para a necessidade de pensar acerca dessa mudança, que provavelmente implica em transformações no brincar e nas possibilidades que são oferecidas às crianças para que elas possam exercer plenamente o seu direito de brincar.

À guisa de conclusão deste capítulo é importante ressaltar que não basta reconhecer o direito de brincar. É necessário garantir a efetivação desse direito, propiciando à criança o pleno exercício do brincar, uma necessidade real para a criança, que deve ser considerado como prioridade, assim como todos os outros direitos fundamentais previstos em lei. A fim de ratificar a importância do direito de brincar, o próximo capítulo pretende fazer um aprofundamento sobre a atividade lúdica, suas características, funções e importância para a vivência da infância pela criança.

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