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O direito de Florença ao Paraíso na poesia: A Divina Comédia e o regionalismo

1. Do Paraíso

4.2 O direito de Florença ao Paraíso na poesia: A Divina Comédia e o regionalismo

De maneira ampla, o regionalismo, segundo Ligia Chiappini, diz respeito não só aos costumes, superstições, crendices e modismos de uma região localizada no âmbito rural, mas também ao âmbito citadino, a despeito da ênfase na tradução das regiões rurais (In: ESTUDOS HISTÓRICOS, 1995, p. 155). Ainda conforme Chiappini, “no limite, toda obra literária seria regionalista, enquanto, com maiores ou menores mediações, de modo mais ou menos explícito, ou mais ou menos mascarado, expressa seu momento e lugar” (In: Idem, 1995, p. 155). Não obstante, durante algum tempo o regionalismo privilegiou, predominantemente, o local sobre o universal, especialmente no Romantismo, com a ênfase no exótico/pitoresco como afirmação de identidades nacionais nas nações colonizadas. No século XX, haverá um deslocamento: o universal passa a ser realçado sem abandonar o local: da crítica social da reificação humana em situação de miséria, exemplificada, no caso brasileiro, pelo romance de 30, o regionalismo alça voos metafísicos, por exemplo, na América Latina. Antonio Candido, em seu ensaio Literatura, espelho da América? (no qual retoma postulados de ensaios anteriores, como Literatura e subdesenvolvimento), assim o exemplifica:

Eu propus a designação de „super-regionalismo‟ para esta modalidade, que abrange escritores latino-americanos como Juan Rulfo, García Marquez, Mário Vargas Llosa135. É uma espécie de superação do nacionalismo romântico, mediante o uso do tema regional como veículo de uma expressão de cunho universalista (In: REVISTA REMATE DE MALES, 1999, p. 112).

Candido, obviamente, inclui Guimarães Rosa nesse contexto, cuja obra tem o regional, como Grande sertão: veredas, expressando “o que o homem tem de mais universal”, concluindo que o regionalismo “é capaz de assimilar a inovação sem perder a capacidade de representar as particularidades do contexto onde funciona” (In: Idem, 1999, p. 112-113). Nesse sentido, Ligia Chiappini atesta que não é só a qualidade literária que eleva certas obras à universalidade, mas também a localidade, “o seu espaço histórico-geográfico, entranhado e vivenciado pela consciência das personagens,

135 Ligia Chiappini põe outros nomes, como Faulkner, Verga, Carpentier, Arguedas, Steinbeck, além de

que permite concretizar o universal136” (In: ESTUDOS HISTÓRICOS, 1995, p. 157). Assim também pensa parte dos escritores internacionais contemporâneos, como o israelense Amós Oz, que numa entrevista falou: “I suppose there is something universal in the provincial. My books are very local, but in a strange way I find that the more local, parochial and provincial, the more universal literature can be137” (2008). Pensamento que concorda com esta reflexão de Ligia Chiappini, que utilizamos para aprofundar um pouco o que Amós Oz disse:

Se o local e o provincial não são vistos como pura matéria, mas como modo de formar, como perspectiva sobre o mundo, a dicotomia entre local e universal se torna falsa. O importante é ver como o universal se realiza no particular, superando-se como abstração na concretude deste e permitindo a este superar-se como concreto na generalidade daquele. Desse modo, as “peculiaridades regionais” alcançam uma existência que as transcende. Assim, espaço fechado e mundo, ao mesmo tempo objetivos e subjetivos, não necessitam perder sua amplitude simbólica (In: ESTUDOS HISTÓRICOS, 1995, p. 158).

O regionalismo se instaurou como uma tensão dialética entre idílio e realismo/naturalismo. Dito de outro modo, o regionalismo, ao mesmo tempo em que cantou a natura, denunciou a agrura, de modo que, se no Romantismo a paisagem foi cantada como um Éden, essa mesma paisagem foi denunciada como um ermo pelo Modernismo.

A obra-prima de Dante pode ser entendida como um espaço poético- narrativo em que a dialética sobredita é, aparentemente, harmonizada, tornando possível ver um regionalismo poético e universal nessa Suma Poética, versando a partir da região da toscana, especificamente falando de sua Florença. Como lembra Ligia Chiappini, “há quem vincule o regionalismo literário à tradição greco-latina do idìlio e da pastoral” (In: Idem, 1995, p. 156). Mesmo que essa professora ponha George Sand, na França, Walter Scott, na Inglaterra, e Berthold Auerbach, na Alemanha, como retomadores dessa tradição nos moldes formais do romance regionalista, é possível ver Dante como um divisor de águas quanto à vinculação do regionalismo literário à tradição greco-latina.

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Conforme Chiappini, o espaço regional, em seu processo de criação literária, é “portador de sìmbolos” (In: ESTUDOS HISTÓRICOS, 1995, p. 158), de modo que, sendo portador de símbolos, o espaço regional está atravessado pela universalidade do simbolismo do imaginário humano.

137 “Penso que há algo universal no provincial. Meus livros são muito locais, mas, de um modo estranho,

descubro que quanto mais local, paroquial e provincial, mais universal a literatura pode ser” (Tradução nossa).

Retomando a tese lukácsiana de que a Commedia é o ponto de convergência entre a epopeia e o romance (LUKÁCS, 2000, p. 68-69), essa obra dantesca pode ser considerada, de certa forma, por seu caráter duplamente poético e narrativo, como um híbrido poema-romance, ou melhor, um poema épico-romanesco138 (STERZI, 2008, p. 106). Nesse sentido, o grande poema de Dante põe um pé no idílio greco-latino e o outro no realismo. Diante disso, muito antes de Sand, Scott e Auerbach iniciarem, no século XIX, a tensão entre esses pólos, em forma romanesca regionalista propriamente dita, a Commedia já a comportava em seus versos. Não só para descrever a viagem ao Além, mas também para mostrar as fissuras da sociedade de seu tempo com o sagrado (mesmo o papado) e apontar caminhos para a reintegração cósmica.

Enquanto está em sua viagem iniciática pelo Além, o vate italiano, por exemplo, não se esquece de sua cidade natal: Florença, de modo que a Commedia também é conhecida como “História Poética de Florença” (STERZI, 2008, p. 35). Assim, a ascese paradisíaca como que o eleva a um estado moral pelo qual Dante não apenas enobrece o passado florentino, na voz de seu trisavô Cacciaguida, mas também se posiciona política e esteticamente contra os costumes florentinos degenerados, mas dando esperança de dias melhores. É sumamente importante ter em mente que ele esteve escrevendo a Commedia exilado de seu paraíso citadino-campestre. É por essa razão “que é tanto mais significativo que essa obra titânica [...] seja produto da situação de exílio de seu autor, expulso (exílio, ex-solum) de sua cidade natal” (LOMBARDI, In: Revista Entre Livros, [s.d.], p. 22). Portanto, Dante não fica restrito às descrições do inferno concreto e desse lugar como alegoria da maldade/baixeza moral humana, mas aponta que o humano tem o direito, se for retificado, de ascender ao Paraíso mesmo no estado terreno, como o vate florentino.

Consideremos o encontro de Dante, no quinto céu (o dos mártires) com o trisavô Cacciaguida, um cavaleiro cruzado que faleceu na Terra Santa, encontro que constitui os cantos XV, XVI e XVII do Paraíso e mais uma menção no canto XXX:

138 Curtius entende que a Commedia “não se acomoda a nenhum gênero [literário]” (1979, p. 379), de

modo que a obra-prima dantesca trouxe uma renovação estrutural, sendo influenciada por obras clássicas (como A Eneida, de Virgílio) e medievais (como as narrativas místicas de viagens ao Além). Curtius, mais especificamente, entende que a epopeia virgiliana, que funde história e transcendência, e a epopeia filosófico-teológica de Alano “cooperaram na forma literária criada por Dante na Comédia” (1979, p. 379).

“Fiorenza dentro da la cerchia antica,/ ond‟ella toglie ancora e terza e nona,/ si stava in pace, sobria e pudica.// [...] Se la gente ch‟al mondo piú traligna/ non fosse stata a Cesare noverca,/ ma come madre a suo figlio benigna,// tal fatto è fiorentino e cambia e merca,/ che si sarebbe vòlto a Simifonti,/ là dove andava l‟avolo a la cerca; [...] Sempre la confusion de le persone/ principio fu del mal de la cittade,/ come del vostro il cibo che s‟appone;// [...] A lui t‟aspetta e a‟ suoi benefici;/ per lui fia trasmutata molta gente,/ cambiando condizion ricchi e mendici;// [...] sederà l‟alma, che fia giú agosta,/ de l‟alto Arrigo, ch‟a drizzare Italia/ verrà in prima ch‟ella sia disposta”139

(ALIGHIERI, 2008, p. 110/115/124/213).

Por um lado, vemos uma louvação idílica do passado feliz de Florença, no qual a cidade usufruía de uma retidão política e cultural. Mas, por outro, devido à mistura com gentes vizinhas, à corrupção da Igreja e ao domínio político dos guelfos sobre a cidade, Florença é solapada por uma decadência moral. Dante, na voz de seu trisavô Cacciaguida, não poupa versos para não só enobrecer Florença como um Éden, mas também para denunciar a retirada desse estado edênico por causa da queda política e religiosa que assolou a cidade. Não fortuitamente, o poeta se declarou florentino de nascença, mas não de costumes.

As relações familiares estavam indignas de respeito, havia compra e venda ilícitas no comércio, a Igreja comercializava indulgências e usurpava o poder temporal (o político). Mas Dante tinha esperança de que esse quadro mudasse, de modo que confiava em Henrique VII de Luxemburgo para que essa esperança fosse concretizada. Henrique VII tornou-se imperador em Milão e em Roma, respectivamente nos anos 1311 e 1312, mas faleceu em 1313, levando Dante a ter uma decepção com a política, de modo que “vagando de cidade em cidade nos domìnios gibelinos, [Dante] dedicou-se até o fim da vida à elaboração da Comédia” (FRANCO JÚNIOR, 1986, p. 26). Antes do exílio, Dante era uma pessoa envolvida com política: foi priore, membro do governo florentino, mas com os conflitos entre guelfi bianchi e neri, mais uma acusação de corrupção, o vate teve de se exilar para escapar da morte.

139 Florença, dentro de sua cerca antiga,/ aonde sua terça e nona ainda soa,/ estava em paz, da temperança

amiga.// [...] Se a gente que no mundo é mais mesquinha /aqui madrasta com César não fora / mas como mãe que os filhos acarinha,// não seria alguém um florentino agora / e teria retornado a Simifonti,/ onde o avô seu mercadejava [mendigava] outrora;// [...] Nele (em Henrique VII) confia: seus prêmios e castigos/ benefício trarão a muita gente,/ cambiando estado ricos e mendigos./ [...] a alma estará de Henrique que, proposta a endireitar a Itália, será eleita/ a tanto, antes de estar-lhe ela disposta. (Tradução de Italo Eugenio Mauro). Respectivamente, versos 97-99 do canto XV, versos 58-63 do canto XVI, versos 88-90 do canto XVII, versos 136-138 do canto XXX.

No exílio, Dante se refugia não mais na conjuntura da polêmica política de seu tempo, mas em sua fé religiosa e na arte poética, a composição de sua Suma Poética. A esperança é transferida de Henrique VII para o Paraíso, de modo que o poeta sugere, no encontro com os espíritos dos justos com aparência física que terão por ocasião da ressurreição final, o retorno do Paraíso não só sobre Florença e a Itália, mas também sobre todo o cosmos. Diante do breve exposto, é possível ver na Divina Comédia a presença do elemento regionalista, representado pelas minuciosas considerações do autor sobre a cidade de Florença, mas ao mesmo tempo a transcendência desse regionalismo de denúncia do caos reinante por um “regionalismo cósmico”, na expressão feliz usada por Davi Arrigucci Júnior, quando fala de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa140. Reiterando que, através dos poucos justos florentinos encontrados por Dante nas esferas paradisíacas (três, entre eles o trisavô), o poeta antevê a chegada de uma áurea felicidade, alegorizada e concretizada pelo direito ao Paraíso como símbolo de um mundo harmonioso e justo.

Apesar do topos salvacionista e redentor, Dante foi um poeta que absolutamente não silenciou sobre o seu tempo. Como diz Segismundo Spina, a Commedia é uma “literatura semi-empenhada”, e essa expressão denota, em termos medievais, uma literatura que apresenta a sátira, o propósito artístico e a alegoria, ao mesmo tempo em que apresenta a teologia e a filosofia (1973, p. 17). Mesmo alçado às mais transcendentais alturas do Paraíso, o vate italiano estava com os olhos bem fitos na sua Florença. É por esta razão que a obra-prima de Dante pode ser considerada “engajada”, se compreendermos esse “engajamento” como um comprometimento claro e deliberado de denúncia social, pela contestação e crítica ao autoritarismo e à brutalidade, acolhendo a dor das vìtimas; e “como espaço onde a história dos vencidos continua se fazendo, lugar onde a memória é resguardada para exemplo e vergonha das gerações futuras” (DALCASTAGNÈ, 1996, p. 24-25).

4.3 O direito do Nordeste brasileiro ao Paraíso no romance: Avalovara e o