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Capítulo III Ideologia e Identidade

3.1 Ideologia no Discurso

3.1.1 O discurso Autoritário alemão

Em “Teoria do Romance I”, Bakhtin (2015 [1930]) discute a respeito de um tipo específico da palavra de outrem: aquelas que são citadas, porém com as próprias palavras de quem as relata. O autor observa que todas as interações verbais são permeadas por discursos alheios e, muitas vezes, eles não chegam a ser citados propriamente, mas as ideias desses discursos são incorporadas à enunciação de quem fala ou escreve. A reflexão em relação a esse posicionamento levou-nos a pensar em torno da possibilidade de tomarmos a citação como categoria de análise. Justifica-se ainda essa tomada de decisão a partir de termos observado a possibilidade de se compreender, a partir do modo que o discurso do outro

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aparece citado, o posicionamento do enunciador em relação à própria citação. Nesse sentido, entendemos que o discurso citado revela características importantes em termos de formação ideológica, como afirma o autor:

Ganha um significado ainda mais profundo e substancial a diretriz voltada para a assimilação do discurso do outro no processo de formação ideológica do homem, na própria acepção do termo. Aqui, o discurso do outro já não atua como informação, instrução, regras, modelos, etc.; ele procura determinar os próprios fundamentos da nossa relação ideológica com o mundo e do nosso comportamento, atua aqui como um discurso autoritário e como discurso interiormente persuasivo49. (BAKHTIN, 2015[1930]: 136)

Segundo o estudioso, essa primeira forma de enunciação - o discurso autoritário - está profundamente ligada à religião, à política, à moral e à palavra dos pais, professores e adultos em geral. Ela se relaciona com figuras de autoridades já estabelecidas e reconhecidas socialmente e, por conta disso, não necessitam lutar por espaço de adesão. Trata-se de uma ideologia imposta aos sujeitos. “O discurso autoritário exige de nossa parte um reconhecimento incondicional e nunca um domínio livre e uma assimilação com meu próprio discurso. [...] Ele se integrou de forma indissolúvel à autoridade externa [...] - persiste e cai junto com ela” (BAKHTIN [1930] 2015:137-138).

Tal condição do discurso autoritário faz que ele assuma um caráter rígido semanticamente, além de exigir total reconhecimento ideológico por parte dos enunciatários. Não se trata da compreensão da ideia de outrem, mas sim da aceitação de uma autoridade já estabelecida anteriormente, o que dificulta esforços num sentido de questionamento de tais forças político, moral, religiosa e socialmente mais fortes.

Em relação a aspectos próprios do discurso autoritário presentes nos enunciados das crianças de "Hilf mit", observamos a importância dada à união dos pares evidenciada pelos elementos linguísticos presentes no seguinte enunciado:

“[...] Somos todos alemães - um único povo. [...]” (H2)50.

Entendemos tratar-se de uma tentativa de apagamento da subjetividade dos cidadãos, no sentido de não permitir que cada um tivesse características próprias, uma vez que a união nacionalista, assim como ocorreu no governo de Hitler, presume que todos correspondam às mesmas características, a um mesmo sistema de normas identitárias. Como destacou Fischer

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No próximo segmento do trabalho, será observada a questão do discurso interiormente persuasivo, pois é encontrado de modo muito mais visível na revista brasileira. Por ora, será analisado apenas o discurso autoritário.

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(1995), o sentimento de uma identidade nacional coesa exerceu um papel fundamental durante o regime nazista, pois permitiu, sobretudo, a exclusão daqueles que não correspondiam aos padrões do que era considerado “povo alemão”. Nesse sentido, unir-se ao seu semelhante era quase um dever moral, era se identificar como um cidadão pertencente ao grupo hegemônico, como observamos em "somos todas uma só" e "devemos estar ao lado do nosso povo", no excerto a seguir:

[...] Aqui nós nos sentamos uma ao lado da outra, meninas de todas as origens do nosso povo, meninas do leste, norte, sul e oeste de Berlim, e

somos todas uma só: meninas alemãs, que na juventude hitlerista, com

atitude e detenção devemos estar ao lado do nosso povo. [grifo nosso] (H2)51

O sentimento de união é também a motivação dos enunciadores para seus serviços prestados e esse espírito de companheirismo está sempre muito presente no discurso nazista. No seguinte excerto, a expressão "todo alemão" pode ser aludida a uma convocação estendida a todos os membros da raça alemã, independentemente do gênero ou da idade.

[...] todo alemão, seja homem ou mulher, menino ou menina, deve apoiar essa obra [Brigada de Inverno] do Führer [grifo nosso] (H3). [...]52

O apoio ao programa da Brigada de Inverno é também necessário por estar diretamente associado à figura de autoridade maior de todo o regime, o Führer. Outra questão importante a ser destacada, diz respeito ao fato de que o espírito de companheirismo entre os semelhantes, ou seja, entre aqueles considerados pertencentes ao povo alemão deveria ser, para as crianças, mais importante que a própria esfera escolar:

[...] A escola, a fábrica e o escritório estão esquecidos, pois à frente há uma semana de companheirismo, uma semana cheia de esporte e formação espiritual. [grifo nosso] (H2)53.

Essa formulação permite observar que, para o enunciador, a autoridade do governo, sempre vinculada à figura de Hitler, colocava-se hierarquicamente acima de outras esferas também baseadas no discurso de autoridade, como a escola. Podemos compreender que os ideais ligados à autoridade do Führer estão à frente de outros ideais que permeavam a

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Tradução nossa. No original: "[...] Da sitzen wir nebeneinander, Mädel aus allen Schichten unseres Volkes, Mädel aus dem Osten, Norden, Süden und Westen Berlins, und sind doch nur eins: deutsche Mädel, die in der Hitlerjugend ihrem Volke mit Tat und Einsatz zur Seite stehen sollen."

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Tradução nossa. No original: "[...] jeder Deutsche, ob Mann oder Frau, ob Junge oder Mädel, dieses Abfallwerk des Führers unterstützen müsse. [...]"

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Tradução nossa. No original: "Vergessen sind Schule, Fabrik, und Büro; denn vor uns liegt eine Woche Kameradschaft, eine Woche voller Sport und geistiger Schulung.

sociedade. A própria escolha do termo Führer para denominar o líder da nação, já é um indício dessa posição, uma vez que seu significado exprime a ideia de condutor, ou daquele que está à frente de um grupo, dirigindo-o a um objetivo. Observamos também nos enunciados a menção recorrente à figura de uma autoridade hierarquicamente inferior ao chefe de estado - os pais e os chefes de acampamento. Trata-se de pessoas que, em algum momento participaram da instrução a respeito dos preceitos em que se pautava a ideologia nazista, como no trecho destacado a seguir, no qual a chefe do acampamento relata sua participação no início do movimento pró-nazista:

[...] ‘Nós permanecemos juntos’, dissera Gerda, ‘para que nosso povo pudesse se tornar forte e unido novamente. Nós não temíamos ninguém e sempre permanecíamos unidos, na alegria e na tristeza’. [...] (H2)54

Além disso, na fala de Gerda, selecionou-se o sintagma verbal "permanecer" - indicativo de conservação - que se repete ao final do enunciado para que se reforce a ideia que se quer acreditada. O "permanecer junto" comporta a crença da força e da união que combate o temo de qualquer ordem - posição extremamente ideológica.

É possível observar, na fala de Gerda, a chefe do acampamento das meninas, a mesma característica do discurso autoritário nazista presente na voz da autora da carta Meninas no

Acampamento. Ela, enquanto uma pessoa mais experiente em termos de apoio ao Partido

Nazista, atua como instrutora das demais garotas. Logo em seguida, a enunciadora da carta a complementa, demonstrando total adesão a essa ideologia propagada, ao lamentar seu tardio apoio ao governo e o desejo de recuperar o tempo de mobilização política perdido, como nos segmentos destacados:

“[...] Nós, porém, que só depois encontramos o reconhecimento ao poder

de Adolf Hitler, queremos tomar nossos camaradas dos tempos de luta como modelo e, assim como eles anteriormente, permanecermos juntos com

os outros em companheirismo. [...]” [Grifo nosso] (H2)55

A figura de autoridade também aparece representada pelo pai, como no excerto de Nós

queremos colaborar, em que o filho aprende um pouco sobre o conceito de socialismo

empregado pelo nazismo. Observamos que o pai, hierarquicamente superior ao filho,

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Tradução nossa. No original: "[...] 'Wir haben damals zusammmengestanden', hatte Gerda gesagt, 'damit unser Volk wieder stark und einig werden sollte. Wir haben uns vor niemand gefürchtet und stets zusammengehalten in Freud und Leid.' [...]"

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Tradução nossa. No original: "[...] Wir aber, die wir erst nach der Machtübernahme zu Adolf Hitler fanden, wollen unsere Kameraden aus der Kampfzeit zum Vorbild nehmen und, so wie sie damals auch heute mit den anderen Kameradschaftlich zusammenhalten. [...]"

submete-se à ideologia imposta pelo governo. Sua fala também se caracteriza como um discurso autoritário, na medida em que enaltece a necessidade de todos se unirem em prol da melhoria do país, conforme podemos observar a seguir na referência aos necessários "sacrifícios com o compatriota alemão":

‘Olha só, rapaz,’ ele [o pai] me disse, ‘isto é que é socialismo de fato. Não fazer doações e dar esmolas, mas sim dividir os sacrifícios com o

compatriota alemão. Se todos os seus jovens camaradas pensarem assim e

agirem como você, a Alemanha se tornará melhor.’[grifo nosso] (H3).56

Observa-se, com isso, que a doutrinação à qual as crianças de “Hilf mit!” são submetidas não ocorria apenas a partir da leitura do jornal em si. Ela estava presente em diversas esferas dessa sociedade alemã. A família e o acampamento eram apenas alguns dos espaços em que esse discurso autoritário também circulava. Esse discurso, porém, não circulava apenas, ele era, sobretudo, ensinado, como observamos em destaque no segmento, em que o acampamento constitui um importante espaço em que tais ideologias eram difundidas:

Algumas de nós já aprenderam a entender no acampamento porque

estão em nossa Liga Federativa de Meninas e o que nós queremos. Em comunidade com outras, elas ficam agora conscientes em relação à bandeira e flâmula da nossa liga, enquanto meninas em serviço da Alemanha. [grifo nosso] (H2)57

O trecho anterior leva-nos a compreender que o desejo de se estar em comunhão com os compatriotas e servir à pátria era algo ensinado às crianças em diversas esferas da sociedade da época. Isto é, o regime político vigente se articulava de tal modo que esse discurso autoritário era veiculado e ensinado em praticamente todos os espaços da vida social da população. É válido ressaltar que o pouco, ou talvez inexistente espaço para o confrontamento de ideias opostas ao regime político hegemônico, instaurado pelo próprio controle midiático e censura do governo nazista, impediam a veiculação de outros discursos ou de outros pontos de vista em relação ao pensamento nazista.

Não estamos, entretanto, afirmando que a rigidez do governo totalitário tenha extinguido outras ideologias; elas, na verdade não podiam ser expressas, o que resulta no fato

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Tradução nossa. No original: " 'Sieh mal, Junge', hat er zu mir gesagt, 'das ist Sozialismus der Tat; nicht Spenden oder Almosen geben sozialistisch, sondern mit den Volksgenossen teilen und opfern. Wenn alle deine jungen Kamaraden so denken und handeln wie du, dann wird es bei uns in Deutschland bald wieder besser werden."

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Tradução nossa. No original: "Manch eine von uns hat erst hier im Lager verstehen gelernt, wozu sie in unserem Mädelbund ist und was wir wollen. In Gemeinschaft mit den anderen steht nunmehr auch sie bewußt zu den Fahnen und Wimpeln unseres Bundes als Mädel im Dienst für Deutschland."

de não poderem ser localizadas nos enunciados que circulavam nesse contexto específico. Se, por um lado, o discurso de crianças no jornal alemão "Hilf mit!" é permeado por características próprias do discurso autoritário, o mesmo não ocorre na revista brasileira "O Tico-Tico", como discutimos a seguir.