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COMPASSOS E DESCOMPASSOS: MANEIRAS DE FAZER E VER

2.1. A Igreja e o discurso sobre gênero

2.1.1. O discurso moralista no cotidiano feirense

Na Princesa do Sertão, o cotidiano foi tensionado pelo código de conduta, de um lado, e de outro pelas práticas das (os) feirenses e das (os) imigrantes de várias partes do Brasil, principalmente de outros estados do Nordeste. Segundo Foucault, há “sempre resistência dentro da própria rede de poder e forma uma multiplicidade de relações de força”. Nesse sentido, nas ruas da cidade, principalmente no centro, na Praça dos Remédios, a Igreja dos Remédios convivia com as idas e vindas, bebedeiras e as graças das prostitutas.

Na Rua Sales Barbosa, localizada nas proximidades dessa igreja, se situava um dos maiores pontos de prostituição. Com humor e um leve sorriso nos lábios, Dona Dolores Silva164, ex-prostituta, relatou que “a Igreja, quando a gente ficava beba, ali nos banquinhos da Igreja, (...) ficava lá, só não fazia transar, no meio da rua, mas ficava lá, conversa [va] mais os homi e tudo” (sic). Em outro relato, Dona Robélia165

ironizou: Viu... ali, na mesma Igreja dos Remédios, tinha aquela Rua do Beco do Ribeiro, a Rua do Meio, Eutarcino, que tem uma parte hoje da Kamins, aquela parte mais alta é a Kamins. E a Igreja dos Remédios quando os sinos estavam tocando, às seis horas da manhã, as beatas entrando, o

162 FOUCAULT, Michel. Introdução. In: Microfísica do poder.. Rio de Janeiro: Graal, 1979. P. VII – XVIII. 163 Idem, ibidem. Capítulo I: Verdade e poder, p. 14.

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Dolores, ex-prostituta, ex-costureira. Entrevista concedida em julho de 2007.

165 Robélia, ex-prostituta, atualmente é dona de um bar (ponto de encontro), no Beco da Energia, local de

povo bêbado ia saindo do cassino, (...). E o povo bêbado saindo, mulambeiro, os homens da alta sociedade de Feira. (sic)166

O espaço podia ser o mesmo para as ações “morais” e “imorais”. Mesmo sem a explícita condenação do comportamento das prostitutas naquele ambiente, as tensões existiam. O silêncio aparente das autoridades eclesiásticas sobre esse fato encobria a tensão, entre um código moral e a desconsideração do mesmo. Havia um descontentamento e a desaprovação dos atos das prostitutas, que aparecem com a não-identificação das mesmas na missa. Não que fosse necessário expor a condição de meretrizes, mas não precisariam se esconder nem da Igreja nem da sociedade, quando não estivessem fora de seu meio, o bordel.

No espaço reservado à atividade da prostituição, onde vigorava um código próprio de seu meio, havia uma inversão de valores no sentido da discriminação da figura da meretriz. Ali, ela era “valorizada” por homens da sociedade feirense, e onde, no jogo de poder, sua posição era mais favorável, não cabia a interferência direta da instituição religiosa.

Nos relatos de Dolores e Robélia, foi retratado o entrecruzar de personagens do cotidiano religioso e das “mundanas” e seus clientes da alta sociedade. As mulheres que iam para a missa, às seis da manhã, chamadas de beatas, chegavam à igreja e se deparavam com as algazarras e os sinais físicos da diversão à noite, como a bebedeira. Dentre outros desagrados à igreja, estava a forma pela qual a Festa de Santana ocorria no centro da cidade. Segundo um dos entrevistados

Éééé, Festa de Santana aqui..., olha, eu vou lhe dizer uma coisa, Festa de Santana aqui era uma só, que depois inventaram que havia festa profana e a festa sagrada, era dois, mas não era, no começo não era (pausa). Se fazia uma comissão, gente do comércio ai, da polícia, o que fosse, que pudesse ter influência e fazia-se [uma] comissão pra Festa de Santana. Esse povo arrecadava dinheiro na praça e fazia a Festa de Santana da rua e fazia a Festa de Santana de dentro da Igreja, né? (pausa). Depois, entenderam de acaba e acabaram com tudo logo, e acabou a festa da Igreja. Mas, era uma beleza, a festa começava, e tinha o Bando Anunciador, era o Bando Anunciador da festa. (sic) 167

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Robélia, ex-prostituta, atualmente é dona de um bar (ponto de encontro), no Beco da Energia, local de prostituição.

A festa, no início, não contrastava com as ações do caráter religioso, da algazarra e dos atos menos contidos dos participantes. Com o passar do tempo, acentuaram-se as ações consideradas imorais. As lavagens, os bandos e grupos que saíam pelas ruas da cidade, nas madrugadas que antecediam à Festa de Santana, realçavam o caráter popular, com a variedade de hábitos, costumes e a mistura de vários personagens:

Mulher, mulher casada, as viúvas, as solteiras (pausa) toda espécie de gente. Aí saía aquele negócio tocando música de zabumbeiro, os zabumba eram daqui de Bonfim de Feira, às vezes era de..., geralmente de Bonfim de Feira, de Tanquinho (pausa) e depois..., e na terça-feira, a lavagem da Matriz, aí era uma baderna geral, generalizada, né?

Era o povão (pausa). Os mascarados (pausa). Todos, todos, os cara bêbados, vestidos de mulher. Eu conheci um senhor que tinha um facão deste tamanho metido aqui na cintura, sabe? E tinha muita briga e muita morte, porque quando chegava uma hora dessas [horário da entrevista, aproximadamente 18 horas], tava escurecendo e socava ai pelos becos e morria (risos dele). Morria gente. Já pensou um bocado de homem bêbado vestido de mulher, misturados com as mulher da vida, toda... cantando músicas imorais. As músicas eram imorais é agora tinha bandeira, era uma coisa bonita, tinha bandeira, tinha carroça enfeitada, os carroceiros tudo enfeitava as carroça, saia como é, bumba-meu-boi, era uma baderna generalizada, muita, agora.168 (sic)

Apesar de relembrar os aspectos “imorais” da festa, o entrevistado não deixa de trazer uma qualificação, pois “era uma coisa bonita”. É esse elemento que dá o seu caráter positivo. A partir do relato de sua memória, ele deixa entrever uma recordação agradável de quem também participou desse evento. No entanto, essa não podia ser compartilhada pela igreja, descontente com o caráter profano da festa, que se posicionou contrário, decidida a pôr fim a um comportamento inadequado aos objetivos religiosos:

Mas, era um negócio elegante, no começo, a Festa de Santana era uma coisa que as famílias levavam as cadeiras e botavam em volta do coreto da Matriz, ficava todo mundo sentado ali, lança perfume muito ali. Lança perfume, nesse tempo, não servia pra o sujeito ficar doido, servia pra jogar nas meninas, né, (pausa) e tocava uma banda de música e sempre havia repleto até as 11 horas, meia-noite, as quermesses depois foram crescendo e entraram os botequins, os aparelhos de som, ficou um negoço impossível de se manter, virou uma baderna. O sujeito de..., vestido de..., nu da cintura pra cima, com short, bêbado, um mulherio (risos) da pior classe do mundo, generalizou. O negócio virou uma baderna. Aí, a Igreja se uniu com o prefeito, tinha que era sacristão, que tinha sido meio seminarista e acabaram (...).169

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Matias Rebouças,cliente dos bordéis, na época em estudo. Entrevista concedida em julho de 2007.

Uma mobilização da Igreja dispôs a pôr fim na desordem da Festa de Santana. Esse movimento deu-se entre uma instituição religiosa e o poder público, na figura do prefeito, que era sensível ao pedido da igreja, pois havia sido seminarista. Mas o interesse poderia ter vindo também da prefeitura, para pôr ordem no espaço público. Nos jornais da época, as desordens nas ruas do centro da cidade e a organização da polícia para controlar a marginalidade foram muito comentadas.

Dessa forma, a vida cotidiana dos moradores de Feira de Santana, não era despercebida das críticas da instituição religiosa, que, por meio das suas relações na sociedade, divulgava os ideais de boa conduta para a população. Através de uma coluna própria, no jornal, dos sermões cotidianos, nas missas e das intervenções em fatos ligados à Igreja, como as festas religiosas, a Igreja Católica, com que o seu poder-saber, disseminava nas mentes, nas ações e nos corpos os seus ideais.