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O documentário entre “ representação científica” e “apresentação estética”

2.3. Virada Ontológica

3.5.1. O documentário entre “ representação científica” e “apresentação estética”

O cinema documentário constitui um objeto privilegiado para pensar a representação tanto no regime das ciências quanto no regime estético/artístico. Apesar de o senso comum o relacionar a uma representação da realidade, se olharmos atentamente, este significado nunca deu conta da complexidade inerente à produção deste gênero cinematográfico. Para o documentarista é de primeira importância pensar sobre as tensões existentes na relação entre arte e a sua representação/apresentação da verdade, daquilo que realmente acontece ou aconteceu. Neste tipo de filme há sempre tomadas que enquadram personagens, ambientes e temas de nosso mundo histórico, “a realidade”, sem encenações. Dessa forma pode-se criar uma concepção apressada que distancia o cinema documentário do meio artístico, ao colocá-lo como um mero documento portador de imagens e informações que constituem um “retrato fiel” do mundo.

Os desafios da teoria sobre o cinema documentário surgem, portanto, em consonância a constatação de que este tipo de filme não é uma reprodução da realidade em vídeo. Há nestes filmes a proposta de retratar pessoas e acontecimentos “reais”, “Porque abordam o mundo em que vivemos e não um mundo imaginado pelo cineasta” (NICHOLLS, 1999. p. 17) , mas isto não significa que devemos negligenciar a mediação tecnológica e humana vinculada a produção dos documentários. Além disso, pode-se questionar que por mais que a imagem capturada pela câmera coincida com a imagem captada por nossa visão, há sempre um questionamento se o que vemos num filme seja exatamente igual ao que veríamos se estivéssemos ao lado da câmera na hora da filmagem (NICHOLLS, 1999. p. 19). Obviamente, há inúmeras diferenças entre estas duas “visões”, apesar da proximidade plástica entre elas. Na verdade, o que está em jogo no documentário é o efeito de realidade provocado por sua representação, no entanto veremos que mesmo o documentário que pretende criar uma percepção naturalista de seu tema não deve ser considerado exclusivamente sob o ponto de vista realista.

Neste sentido, alguns teóricos preferem utilizar a nomenclatura “filmes de não-ficção” (CARROLL, 2005. p. 69), com o objetivo de escapar da ideia de mera documentação dos fatos que a palavra “documentário” carrega. No entanto, independente da expressão utilizada para

definir este tipo de cinema, algumas questões persistem: como devemos tratar o documentário tendo em vista que não podemos considerá-lo como reprodução, retratação ou réplica de algo existente? Qual o estatuto artístico deste gênero cinematográfico? Para responder a este questionamento, a ideia de representação é utilizada, para dizer que um filme de não-ficção “representa uma determinada visão do mundo, uma visão com a qual talvez nunca tenhamos deparado antes, mesmo que os aspectos do mundo nela representados nos sejam familiares” (NICHOLLS, 1999. p. 47).

Outro fator que complica ainda mais a definição de documentário é sua forte vinculação a produções de cunho jornalístico ou educativo que coincide apenas com um tipo de documentário, denominado por alguns teóricos como “clássico”, “predominante nos anos 1930/1940. O documentário clássico possui uma enunciação baseada em voz over, fora-de- campo, detentora de saber sobre o mundo que retrata” (RAMOS, 2008, p. 21). Nesta época, o propósito predominante dos documentaristas seria o de esgotar um assunto, tratando-o de maneira bastante didática ao valorizar as informações objetivas que ele apresenta. De certa maneira, há nestes documentários uma pretensão de apresentar uma verdade sobre o mundo nos moldes da ciência.

No entanto, até mesmo os primeiros documentaristas já apontavam dúvidas sobre a capacidade objetiva das produções documentais, John Grierson11, por exemplo, definia como um “tratamento criativo da realidade” (NICHOLS, 1999. p. 21), já indicando uma certa atenuação com relação a verdade dos filmes que produzia, o que Grierson queria enfatizar era que um documentário, por mais completo e detalhado que seja, não pode ser considerado como portador de uma objetividade inquestionável. Deve-se sempre levar em consideração os pontos de vista dos que o produzem, pois eles são os responsáveis pela estruturação do filme, selecionam cenas, tomadas e textos de acordo com suas perspectivas sobre o assunto apresentado. No entanto, apesar dessa relativização, os precursores do cinema documentário, inclusive Grierson, ainda trabalhavam na perspectiva de sua função política, social e educacional, numa chave de análise bastante influenciada pelas teorias modernas, de base materialista e científica. Isto porque, até os anos 1960, a produção documentária esteve muito ligada ao financiamento estatal, havia a ideia de uma missão humanista dos documentários, em grande parte das produções havia uma referência a questões políticas, éticas e antropológicas,

11John Grierson, inglês considerado um dos principais diretores dos primórdios do cinema

mas sem deixar de lado alguma preocupação expressiva que pretendia efetivar o documentário enquanto arte (NICHOLS, 1999. p. 22).

Sendo assim, o documentário levanta algumas reflexões que possuem sintonia com a forma que a ideia representação foi utilizada na tradição filosófica, pois o documentarista assim como o filósofo precisa continuamente pensar a forma com que o sujeito se relaciona com os assuntos tratados, a forma como representam seu discurso, sua narrativa, seus personagens e seus objetos. Este diálogo pode ser notado tanto na análise estética e crítica deste gênero cinematográfico, quanto na maneira pela qual suas obras colocam em cena alguns problemas deste âmbito filosófico. Haja vista que questões ligadas à representação da realidade, a conceitos de verdade, objetividade, subjetividade etc, interessam, quase na mesma proporção, a debates filosóficos e a teoria sobre o cinema de não-ficção, “Perhaps no area of film theory invokes philosophy so quickly as does the discussion of nonfiction film. ” (CARROLL, 1996, p. 283)

A ideia é de que as teorias e análises sobre o cinema documentário podem ser vinculadas com as propostas estéticas de Merleau-Ponty. Podemos até mesmo relacionar algumas descrições sobre a pintura ao cinema de não-ficção. Para o filósofo foi importante estabelecer como a quebra do paradigma mimético e figurativo da obra de arte pôde ampliar o horizonte das expressões artísticas visuais, que a partir de então se distanciaram dos cânones representativos muitas vezes ligados a um olhar científico sobre o fazer artístico. Da mesma forma, os documentários buscavam experimentar novos formatos não mais estritamente ligados a discursos e conceitos pré-estabelecidos, a partir de uma constatação de sua incapacidade de exibir a verdade ou o “em si” do mundo histórico. A representação do cinema documental, portanto, abriu mão de imitar o “real”. Pois, “Assim como a palavra nomeia... o pintor, diz Gasquet, ‘objetiva’, ‘projeta’, ‘fixa’. Assim como a palavra não se assemelha ao que ela designa, a pintura (e também o cinema-documentário) não é uma cópia.” (MERLEAU-PONTY, p. 119-120 grifo nosso). A representação ocorre, portanto, considerando uma criatividade, a narrativa do documentário pode trazer uma impressão de verdade sem que seja preciso a semelhança, sem que o filme procure a todo momento recorrer à imitação da percepção natural. Se o desenho resulta da cor e não apenas das linhas que traçam seu contorno figurativo, como afirma em O Olho e o Espírito. A expressão do cinema surge não apenas por sua reprodução imagética da realidade, mas sim do ritmo das imagens, do enquadramento, dos silêncios, do tipo de abordagem do diretor no caso do documentário. A “representação” neste caso acontece por um desvio, logo não se trata de um “apresentar novamente”, mas um apresentar inaugural. Nesse sentido pintura e cinema podem constituir uma filosofia selvagem.

Estes assuntos são a interface entre o documentário e o pensamento de Merleau-Ponty. O que se quer deixar claro é o tanto que as mudanças históricas, da teoria e da produção deste gênero cinematográfico, podem ser relacionadas a um conjunto de ideias críticas a forma como o conceito de representação é utilizado em algumas análises estéticas.