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O documento como território: uma metáfora interpretativa

Capítulo 3: “Escrever a cidade”: um Tombo para a cidade e para o termo

1. O documento como território: uma metáfora interpretativa

No já longínquo ano de 1991, Paolo Cammarosano publicava a primeira edição daquela que viria a consagrar-se como uma das obras fundamentais da historiografia italiana do período medieval. O título conferido à obra desvendava as bases primordiais do seu recorte heurístico e hermenêutico: Italia Medieval. Struttura e

geografia delle fonti scritte. Definindo-se à partida como uma obra imimentemente

instrumental, este estudo dotava os historiadores contemporâneos e as gerações futuras de um peculiar objecto de reflexão para o caso italiano: a documentação escrita em si mesma, ou melhor, “(...) la struttura delle fonti scritte: non la struttura di questo o di quel tipo di documento, ma l’articolazione complessiva, quello che possiamo chiamare - con una immagine – il paesaggio delle fonti”148.

A metáfora que então se utilizava era útil e aplicável a outros contextos geo- históricos. Na verdade, o que Cammarosano propunha era que percepcionássemos a fisionomia e a estrutura organizativa de objectos escritos num dado contexto histórico, como que inscritos numa tela ou visíveis do lado de lá de uma janela. Como em qualquer paisagem, uma observação atenta identificaria no horizonte não só as linhas individualizantes dos contornos dos documentos, mas igualmente os laços que se

147

Cf. LAZARINI, 2008, p. 6. 148

Cf. CAMMARROSANO, 1998, p. 9. Utilizamos neste trabalho a 5ª edição da obra, do ano de 1998, a única a que tivémos acesso (a 1ª edição é de 1991).

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estabeleciam entre si, provavelmente sob uma ordem determinada. Talvez também reconhecesse algumas ausências ou diferenças, se à memória surgisse a lembrança de outras paisagens documentais.

Da tela para o arquivo, Cammarosano traçou nessa obra um passeio historiográfico pela “paisagem das fontes” italianas, dedicando um apartado específico à documentação das cidades. Aí, e como de resto, nos outros capítulos deste livro, a produção de escrita não evidenciava para o investigador uma existência ou identidade inócuas. Pelo contrário, os documentos eram produto de circunstâncias históricas determinadas que o autor se esforçou por delinear. No caso da administração urbana, os sistemas políticos vigentes condicionavam a produção de escrita, de tal forma que davam origem a conjuntos documentais específicos, mais ou menos exclusivos. Nesse sentido, no capítulo “Centri e periferie: la riorganizzazione politica d’Italia e le scritture delle autorità pubblice (secoli XII-XV)”, as cidades do Mezzogiorno distinguiam-se das cidades comunais da Itália centro-setentrional pela natureza e tipos documentais que produziam e que conservavam. Como pano de fundo, estas cidades configuravam duas realidades sócio-políticas bastante diferentes149.

O filão de investigação que punha em correlação escrita e sistema político,

especialmente bem fundamentado nesta obra de Cammarosano150 e que já conhecia

alguns contribuitos de monta151, seria amplamente desenvolvido nos estudos que se seguiram sobre cidades italianas, sobretudo sobre as cidades comunais, designadamente na reflexão de historiadores como Jean-Claude Maire Vigueur152, Attilio Bartoli Langeli153, e, mais recentemente, nas colectâneas de estudos coordenadas por Guiliana Albini154 e Isabella Lazzarini155. A capacidade de fazer relacionar analiticamente as variáveis “lógicas de poder” e “estratégias documentais”, num determinado contexto histórico, concretizava um filão de investigação pleno de potencialidades para o conhecimento da natureza e da estruturação dos poderes.

149

A autonomia das cidades italianas do Norte constrastava com a dependência das cidades do Sul do poder régio. Cf. CAMMAROSANO, 1998, pp. 113-204

150 Saliente-se um estudo anterior deste autor sobre Siena – Cf. CAMMAROSANO, 1988). 151

Atente-se, por exemplo, em vários contributos saídos do colóquio Culture et idéologie dans la genèse

de l’État moderne, realizado em Roma, em 1984 – Cf. LANGELI, 1985; VIGUEUR, 1985; CLANCHY, 1985. E

ainda VIGUEUR, 1982. 152

Cf., por exemplo, VIGUEUR, 1995. 153

Cf., por exemplo, LANGELI, 2004. 154

Cf. ALBINI, 1998. 155 Cf. LAZZARINI, 2008b.

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Um dos casos mais paradigmáticos desta abordagem encontra-se num estudo de Jean-Claude Maire Vigueur intitulado “Révolution documentaire et révolution scripturaire: le cas de l’Italie médiévale”, no qual o autor demonstrou como as mutações no regime político das cidades comunais italianas introduziram, em menos de um século, alterações profundas nas práticas de escrita e de conservação dos actos escritos156. Entre os anos de 1180 e 1220, a mudança do regime consular para o regime “podesteril”, fortemente ligado a famílias de milites nobilitadas, havia já promovido algumas modificações no que concernia, sobretudo, às práticas de escrita notariais e às primícias de uma consciência arquivística, datando desta época os primeiros libri iurium comunais. No entanto, foi a passagem do regime “podesteril”, fortemente nobiliárquico, para o regime “do povo” na administração urbana que viria a conduzir ao que Jean-Claude Maire Vigueur denominou de “revolução documental” do século XIII. A importância conferida a uma vigilância constante da governação e o objectivo de uma reforma fiscal que, acima de tudo, alterasse as lógicas de relação entre os indíduos e o governo, estabelecidas no sistema político anterior, promoveram o relançamento da prática do registo de actos escritos como um instrumento de governação, em todas as áreas, como a legistativa, a judicial, a financeira, a militar, etc. Segundo o autor “Désormais tout acte de l’administration communale, la moindre de ses décisions, la plus petite de ses dépenses ou la plus banale des procédures judiciaires fera l’objet d’une écriture dans l’un ou l’autre des registre tenus à cet effet par les notaires affectés à chaque office et à chaque bureau de la commune »157.

A transposição deste filão de investigação do contexto político-institucional das cidades italianas para outros contextos geo-políticos urbanos, como o da cidade de Évora nos séculos XV e XVI, parece-nos a todos os níveis inspirador e frutífero.

Este capítulo é-lhe dedicado, sob o título “A projecção documental dos poderes”. O presente título denuncia as opções hermenêuticas já explicitadas, centrando a sua atenção no estudo de práticas de escrita como “chave analítica” para compreender a presença e a actuação dos poderes na cidade. No entanto, a escolha do mesmo não foi arbitrária. Pelo contrário, procura trazer para o pouco explorado universo documental urbano alguns dos trilhos de um caminho conceptual já

156

Cf. VIGUEUR, 1995. 157 Cf. VIGUEUR, 1995, p. 184.

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desbravado sobre a percepção dos poderes na cidade, no caso, através da análise do espaço urbano. Referimo-nos concretamente ao trabalho doutoral de Adelaide Millán Costa, denominado Projecção espacial de domínios, no qual a autora declara: “A grande aposta do projecto é a de aferir a exequibilidade de formas alternativas aos esquemas tradicionais de percepção dos núcleos urbanos. Tradicionalmente as cidades apreendem-se com base em grelhas exaustivas que fragmentam o objecto em sectores diferenciados: o espaço, a economia, a sociedade, as instituições, manifestações culturais, religiosidade. Ensaia-se, aqui, conjugar os vários elementos usando como

denominador comum o espaço e não considerá-los separadamente.”158. Privilegiando

prescrutar o relacionamento institucional entre a coroa e o concelho, “(...)para depois perceber como é que ele se transcreve no espaço, com base nas acções de encenação e de intervenção efectiva no mesmo”159, a autora assumia o espaço urbano como espaço-território onde os poderes se fixavam e definiam posições de domínio.

Ora, mutatis mutandis, a “projecção documental dos poderes” procura avaliar semelhantes relacionamentos institucionais, porém considerando o documento como se de um território se tratasse, isto é, como espaço ocupado por agentes que sobre ele exercem alguma autoridade, delineando lógicas de fixação, de relação e de auto- definição160.

A metáfora do objecto escrito como território revela-se eloquente quando a procuramos desmontar, por exemplo, em torno de duas dimensões definidoras partilhadas quer pelo território, quer pelo documento: a dimensão estática e a dimensão dinâmica dos espaços. Com efeito, à semelhança de um território, que encontra na sua topografia uma caracterização à partida imutável, porque telúrica, o documento encontra na sua descrição morfológica – por exemplo como documento avulso ou compósito, em pergaminho de duas faces ou em papel marcado de filigrana – uma dimensão definidora igualmente estável e estática. No entanto, a ocupação e utilização do espaço quer físico quer documental é necessariamente dinâmica, apresentando mutações e intervenções perceptíveis ao longo do tempo vital desses

158 COSTA, 1999, p. 25. 159

COSTA, 1999, p. 24. 160

O espaço físico distingue-se assim de território, uma vez que este é um espaço físico subordinado a qualquer tipo de ordem ou poder. O espaço físico, em si mesmo, encontra-se à partida desprovido de uma autoridade.

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espaços161. Tal como o acto de ocupação de uma terra, o acto de “lavrar” um documento é um acto de ocupação de um espaço, neste caso, pela escrita, exibindo material e simbolicamente um poder, uma auctoritas. Fixando-se no documento e definindo posições de domínio, as diferentes auctoritates actuantes num acto escrito tenderão a reproduzir os equilíbrios oficiais ou semi-oficiais de relação que, fora desse suporte documental, se encontravam consignados na prática, ou então que a própria fixação por escrito passava a impor.

A metáfora do documento como território parece assim concretizar a natureza da ocupação dos espaços documentais, e por isso adquire neste capítulo o estatuto de filão, simultaneamente, metodológico e hermenêutico para analisarmos a projecção documental de poderes.

161 No que concerne o espaço físico, refimo-nos à “organização social do espaço”, como o conjunto de processos e formas pelos quais uma dada sociedade organiza o espaço que ocupa e domina – cf. GARCIA DE CORTAZAR, 1995; quanto ao documento, pensamos sobretudo nas mãos que o produziram e nas marcas e intervenções a que ele é sujeito, desde a sua produção até ao momento em que é destruído ou conservado.

105 2. Um conceito alargado de “poder”:

O conceito de poder encontra-se estreitamente relacionado com a posse e exercício de uma jurisdictio, isto é com a capacidade de sujeitos singulares ou colectivos dotados de personalidade jurídica, laicos ou eclesiásticos, se auto- regulamentarem e se rodearem dos fundamentos teóricos e dos intrumentos práticos de exercício da sua autoridade162.

A escrita e o documento escrito constituem espaços privilegiados de percepção dessas autoridades públicas, uma vez que permitiam cristalizar em suporte material as marcas e os símbolos dos sujeitos portadores de autoridade com um irrefutável valor jurídico. Roger Chartier desenvolveu esta ideia já na década de 80 do século XX, ao propor os signos de poder – entre os quais os signos presentes nos objectos escritos – como campo de indagação da constituição e das práticas culturais de representação desses poderes, designadamente do Estado tardo-medieval. Segundo Chartier, esses signos deveriam ser considerados, quer à luz da intenção de representação que estes poderes neles procuravam concretizar, quer à luz das condições de recepção desses símbolos, que ao longo dos tempos permitiu identificá-los, conhecer os seus referentes e estudá-los em perspectiva163. A intencionalidade representativa dos poderes e uma nova interacção ou relação entre as fontes e o próprio historiador haveriam de constituir aportações teóricas e metodológicas, herdeiras da escola dos Annales, com longo alcance no discurso historiográfico actual no que concerne o universo da escrita e do documento escrito, como palco de representações prontas a serem percepcionadas e compreendidas por historiadores, cada vez mais convictos da interdisciplinaridade na leitura dos textos e da importância do estudo das práticas sociais de escrita164.

Seguindo este filão de defesa da historicidade dos textos, pensamos que as marcas materiais, que os documentos nos apresentam, de representação juridicamente válida de sujeitos singulares ou colectivos não poderão ser

162

Cf. HESPANHA, 1982. 163

Cf. CHARTIER, 2002, pp. 216-229.

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percepcionadas pelo historiador apenas no espectro dos poderes públicos tradicionais, isto é, os poderes que usufruem de uma qualquer jurisdição.

Tomemos como ponto de observação a documentação sobrevivente do arquivo da câmara da cidade de Évora, designadamente os actos escritos de transferência de domínio quinhentistas, em que particulares e a câmara da cidade constituem as partes contraentes desses negócios.

A par da marca representativa do poder público de que se reveste a câmara da cidade – no caso, as assinaturas das mais importantes magistraturas da cidade, e o sinal do escrivão público da câmara do concelho -, encontramos assinaturas ou sinais autógrafos dos indivíduos particulares que contraíram o negócio jurídico, atestando pelo próprio punho o seu comprometimento, e contribuindo para a validade jurídica do acto escrito. Ora a percepção que podermos ter destas assinaturas e sinais autógrafos autoriza-nos a pensar no exercício porventura de um direito, mas sobretudo de um poder, que, totalmente distinto dos poderes públicos, é antes de mais um poder documental, como se o território-documento pelas suas características de representação pudesse evidenciar “poderes” ou autoridades, confinadas aos limites físicos e jurídicos desse mesmo acto escrito.

Com efeito, no jogo entre o significante e o significado, o documento e as práticas de escrita tinham permitido fixar no quadro representativo dos sujeitos envolvidos no negócio jurídico, não apenas o poder público da câmara do concelho, e os poderes delegados de alcance colectivo como o são os profissionais da escrita – como tabeliães e escrivães públicos – mas igualmente a própria mão dos indivíduos que sabiam ao menos assinar o seu nome ou apor um sinal equivalente. Esta circunstância documental gera um poder, o poder signatário dos indivíduos, exercido no domínio da escrita.

Estes casos permitem-nos reflectir sobre como a hermêutica do documento nos convida a redefinir a representação dos indivíduos num acto escrito, à luz não apenas da sua autoridade intrínseca, mas também da autoridade decorrente da fixação por escrito e da cristalização de um signo representativo próprio, a sua assinatura.

É neste sentido que aqui propomos um alargamento do conceito de poder, que reconheça nas representações documentais dos mais diversos indivíduos um sinal de poder, de um poder documental.

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Estas considerações permitem-nos pois analisar a projecção documental de poderes de modo mais amplo, e sobretudo ajustado às características do nosso suporte material de observação.

Desenvolveremos o estudo da projecção documental de três universos de exercício de um poder: em primeiro lugar, os poderes públicos jurisdicionais que, no caso da administração da câmara da cidade de Évora, se estribam, sobretudo, entre o rei e a câmara do concelho; em segundo lugar, os profissionais da escrita, designadamente tabeliães e escrivães públicos da cidade ou da câmara da cidade, que exercem os seus ofícios na dependência de um poder jurisdicional, reduzindo a escrito um vasto leque de relações jurídicas dos habitantes da cidade no interior da mesma; finalmente, o poder signatário dos indivíduos, que permite evidenciar a marca material da presença de indivíduos comuns na construção de uma legalidade jurídica universal.

Voltemos, então, ao documento escrito como metáfora do território, e à ocupação do espaço ou à projecção documental pelos poderes em presença, não sem antes explicitar em que medida a morfologia dos documentos – assim como a do espaço físico – condiciona essa ocupação.