• Nenhum resultado encontrado

O Embate Dialógico e as Palavras Designativas

5 Ocorrências Complementares: As Propriedades Não Determinadas pelas Categorias

5.2 O Embate Dialógico e as Palavras Designativas

Verificamos uma ocorrência durante a análise do córpus: um embate dialógico a partir da adoção de determinada palavra, mais especificamente um substantivo ou um adjetivo, que designa ou qualifica o sujeito-objeto instituído pelo texto-estímulo, o menor de idade infrator; na maioria das vezes, de acordo com a adoção do pólo do texto-estímulo ou do recorte temático extraído dele.

Ao final de cada análise das redações, no capítulo anterior, expomos uma nominata, que indica os nomes pelos quais os produtores designam o sujeito-objeto, ou seja, o indivíduo menor de idade infrator.

Como tratamos no capítulo 1, a estabilidade de enunciados que definem um gênero do discurso caracteriza três fatores: o conteúdo temático (os sentidos usuais), a construção

composicional (a estruturação do texto) e o estilo (os meios lingüísticos próprios). As práticas sociais podem alterar-se ao longo do tempo, e, assim, ocasionam instabilidade aos gêneros: surgimento e desaparecimento de novos gêneros, e alterações no curso deles. Dessa forma, os sentidos do conteúdo temático, a estruturação do texto e os recursos lingüísticos sujeitam-se a uma nova ordem. As palavras podem sinalizar as investidas do novo contexto sócio- ideológico. Tomamos por princípio o carregamento ideológico da palavra. Tudo o que é ideológico remete sempre a algo fora de si, segundo Bakhtin (2004, p, 95): “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”.

Trata-se da preferência por termos ou expressões convencionadas em função de uma nova ordem sócio-histórica, em detrimento de outras estruturas lingüísticas então em desuso. Entre os setores menos estabilizados, sujeitos a essas transposições, podem-se citar aqueles vinculados às ações políticas governamentais, que dependem dos meios de comunicação para que a nova posição seja propagada. Esses campos geralmente são pertinentes a setores sociais que são alvo de ações estatais; e, por conseguinte, ganham espaços constantes na mídia. Nesse cenário, a nova palavra designativa representa toda a política a ser implantada, pois a legitimação de novas regras parece passar pela atribuição de um novo nome.

Na área educacional, por exemplo, podemos apontar ao menos três momentos distintos: primário/ginasial, primeiro grau e ensino fundamental. À medida que se inseriram mudanças acentuadas nas políticas educacionais, a denominação das fases de aprendizado apresentou alterações: com o advento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o termo ensino fundamental é apresentado e difundido a partir de um novo estatuto que passou a vigorar, compreendendo a fase inicial (até oitava série). Anteriormente, essa fase se referia ao termo primeiro grau, a política pré-LDB, que por sua vez foi posteriomente instituído para substituir a política anterior que formalizara primário (primeira a quarta série) e ginasial (quinta a oitava série).

Trata-se de um continuum: a substituta supera uma estrutura que outrora representou uma então nova ordem; por sua vez, a substituta de agora será provavelmente suplantada por outra futuramente. Segundo Bakhtin (2004, p. 124), trata-se de uma evolução nas formas da língua a partir da prática social:

É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua: as relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem em conseqüência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua.

Considerando as redações analisadas no capítulo anterior, observamos que o recorte temático promovido pelo sujeito-produtor pela aceitação da proposta de redução da maioridade penal, e pela incriminação do sujeito-objeto traz consigo um grupo específico de palavras ou expressões; enquanto o posicionamento contrário traz outro grupo. Por meio da indicação dos nomes atribuídos ao indivíduo menor de idade responsável por crimes, o sujeito-enunciador indica uma condição passiva do menor — sem culpa, e é posto como fruto de uma política social equivocada e de desestruturação familiar; mas pode indicar também uma condição de agente, responsável pelos atos que comete.

Os produtores que atribuem passividade ao sujeito-objeto pelos seus atos denominam- no: criança, adolescente(s), filho, infrator(es), menor(es) infrator(es), menor adolescente, homens infantis, jovem(ns), menor(es), pessoas, o ser humano, filho, menores de dezoito anos. Já os que os vêem como agentes utilizam: menor delinqüente, adolescentes irresponsáveis, menores de idade infratores, bandidos, elementos, pessoa fria e calculista, adolescente menor infrator, menor, jovens criminosos, jovem(ns) infrator(es), criminosos adolescentes, infratores.

Notamos que, apesar de algumas palavras aparecerem em ambos os casos, há a condução de nomes ou expressões nominais mais carregadas semanticamente, a fim de designar o sujeito-objeto em meio ao posicionamento favorável à redução da maioridade penal, porque o indivíduo é tido como agente responsável pelos próprios atos, e sujeito a atribuições como delinqüente, criminoso, frio, calculista, irresponsável e bandido. Essa posição condiz com um dos principais argumentos defendidos pelos defensores da redução: o menor de dezoito anos tem de ser julgado e, se for o caso, condenado da mesma forma que um indivíduo com a maioridade. Todavia, os opositores da proposta de redução apontaram nomes menos carregados ou sequer rotularam o sujeito-objeto. Isso se confirma pelo uso de nomes relativamente neutros, como criança, adolescente, pessoas, e de nomes absolutamente neutros, como filho, jovens, criança, o ser humano. Assim, a prática social, sob a visão individual de cada consciência, determinou a aplicação dos nomes.

a) A RED6 traz os nomes marginais e monstros mirins, embora o posicionamento do produtor seja contrário à redução da maioridade penal e, por extensão, atribui ao indivíduo um papel de passividade ao sujeito-objeto, ou seja, o infrator não pode ser culpado pelos atos impróprios, porque ele é o resultado negativo de um sistema social, educacional e familiar amplamente degradado. O produtor, nesse caso, usa a voz contrária à sua para refutá-la; trata-se de um contra-argumento que sustenta que esses nomes atribuídos são rótulos;

b) A RED17 indica um produtor que se posiciona a favor da redução; no entanto, entende que o sujeito-objeto é paciente no processo de desagregação sócio-familiar. Embora utilize as designações criminosos e assassinos, o produtor esclarece que o indivíduo torna- se um criminoso e um assassino em função do meio desfavorável. Mais uma vez, notamos o recurso da contra-argumentação;

c) A RED11 revela um produtor que também se coloca a favor da redução, mas, ao contrário da situação do item anterior, ele considera o sujeito-objeto um agente; contudo, faz uso exclusivamente de atribuições dos seus opositores: menores, adolescentes e adolescentes carentes. Isso se deve ao acatamento de posições ideológicas atribuídas a determinados lugares-comuns que remetem a um sujeito que ocupa uma posição subjetiva de passividade; como, por exemplo, a voz do Estatuto da Criança e do Adolescente;

d) A RED7 não traz um posicionamento direto de seu produtor: se contra ou a favor; e, coerentemente, ele aplica uma nominata neutra ao sujeito-objeto: indivíduo e cidadão. Nesse caso, a neutralidade confere uma refutação às duas vozes que se opõem, isto é, o exercício de uma contra-argumentação que procura validar uma terceira voz, a da não- opinião (em se considerando a exigência de posicionamento do texto-estímulo).

Atribuímos à categoria consensual essa regularidade observada nas formações do grupo de palavras designativas semanticamente determinadas: palavras carregadas negativamente para condizer com a não-passividade do sujeito-objeto, e palavras semântica e ideologicamente menos carregadas para indicar a passividade dos atos do sujeito-objeto. Refere-se a um aproveitamento das duas vozes ideológicas (a pró-passividade e a contra a passividade) que procuram distinguir-se de acordo com a opinião recortada. O consenso estabelecido para aqueles que entendem um sujeito-objeto passivo em seus atos formula um grupo de designativos, enquanto o consenso que defende a visão contrária determina um outro grupo de palavras.

As irregularidades apontadas, basicamente a utilização de palavras não condizentes com o recorte, consistem em atribuições da categoria polêmica. Consideramos que há, nesses casos, um entrecruzamento das vozes ideológicas, segundo necessidades argumentativas: uma manifestação da voz contrária à passividade do sujeito-objeto em um discurso que defende a passividade, e um discurso que defende a não-passividade traz uma manifestação da voz favorável à passividade.

Esses designativos são propriedades dialógicas, já que derivam do exercício argumentativo estabelecido pelas categorias de consenso e de polêmicas; no entanto, apresentam uma característica especial: a exemplo das propriedades não determinadas pelo consenso e pela polêmica (modalidade oral na escrita e subjetividade em primeira e em terceira pessoas), as palavras designativas referentes a um sujeito-objeto do discurso são estabelecidas por todo o texto e por todo o discurso, e são inerentes a qualquer gênero.

Portanto, o estabelecimento de grupos de palavras designativas — de pessoa, ou seja, de um sujeito-objeto animado — acompanha, em determinados contextos, a temática recortada. O embate de vozes sócio-ideológicas determina um arcabouço de nomes ou expressões atributivos que compõem um determinado campo ideológico, como observado nas redações do córpus. Em função de seu lugar nesse campo ideológico, o sujeito-produtor organiza as palavras retoricamente. A argumentação rege esse processo, pois o planejamento argumentativo até pode ocasionar irregularidades. A paridade voz e recorte (voz prol, recorte prol e voz contra, recorte contra) é recurso atribuído à categoria consensual; a contraposição entre voz e recorte refere-se à categoria polêmica.