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O Enfraquecimento da Noção de “Autor” e Outras Questões Pós-Modernas

2 AS VÁRIAS FACES DA METAFICCÇÃO DE RUBEM FONSECA

2.2 O Enfraquecimento da Noção de “Autor” e Outras Questões Pós-Modernas

“Quando escrever faz bem, alguma coisa faz mal à nossa literatura. Escrever é uma experiência penosa, desgastante, é por isso que existem entre nós, escritores, tantos alcóolatras, drogados, suicidas, misantropos, fugitivos, loucos, infelizes, mortos-jovens e velhos gagás.”

Bufo & Spallanzani, Rubem Fonseca

O estilo profundamente autorreflexivo de Gustavo Flávio, o escritor que protagoniza e narra o romance Bufo & Spallanzani (1985), nos dá a oportunidade de discutir a posição do escritor de hoje frente a questões típicas do nosso tempo, como a noção de autoria e a relação com o mercado e com os leitores. Essas questões relativas ao processo criativo na ficção são recorrentes em Rubem Fonseca. Em “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”, por onde iniciaremos este subcapítulo, o contista é feliz ao representar o “parto” de um poema.

Observem o seguinte trecho dessa narrativa: “Pego a caveira. Em decassílabos: foi a cabeça ardente de um poeta, cuja fronte era bela, aqui, nas faces formosa palidez cobria o rosto, seus cabelos eram loiros, agora tudo é cinza.” (FONSECA, 2004a, p. 575).

Pode-se detectar a presença da metaficção na narração acima em pelo menos dois elementos. A caveira é uma referência a Lord Byron, com quem o narrador “contracena” e, segundo a lenda, costumava substituir a taça por um crânio para beber vinho (Cf. RAMOS in BYRON, 2008, p. 25). Depois, e mais importante, revela-se o processo criativo de um poeta em meio à narração. É sugerida a concepção do poema “Glória moribunda”, de Azevedo, que contém os versos de que Rubem Fonseca se apropria nessa passagem.

No conto, os versos, porém, não estão na ordem em que aparecem no poema. Fonseca os modifica e altera sua disposição na estrofe (Cf. AZEVEDO, 2005, p. 86). Não há aí nenhuma “desonestidade” ou incompetência, claro. Pelo contrário. Se a lírica do nosso maior expoente da geração mal-do-século fosse transcrita ipsis litteris, a prosa do contista soaria artificial e engessada. Tampouco seria verossímil se se representasse o processo criativo como se os versos surgissem já acabados no primeiro insight.

Mas talvez a obra de Rubem Fonseca que mais exponha o ofício de escrever seja o romance Bufo & Spallanzani, no qual o narrador-protagonista, Gustavo Flávio, se encontra “bloqueado”, sem conseguir concluir o livro no qual está trabalhando. São muitas as agruras desse não tão jovem escritor, que ainda reflete sobre outras questões inerentes a quem se dedica a lutar a luta mais vã. Ele defende, por exemplo, que “iniciar um livro não é mais difícil do que terminá-lo, conforme pretendem alguns, alegando que é preferível desapontar o leitor no fim do que fazê-lo desistir da leitura no princípio” (FONSECA, 2007, p. 181), e para isso lista uma série de inícios de livros de “escritores universalmente famosos” (Loc. cit.), no intuito de demonstrar que vários deles não parecem ter sido concebidos para atrair o interesse do leitor: “’Durante muito tempo costumava-me acordar cedo.’” [O caminho de Swann, Marcel Proust]. Alguém pode querer saber o que pensa um narrador que vai cedo para a cama?”, indaga Gustavo Flávio (Ibidem, p. 182), para quem um início impactante, portanto, não é essencial para vaticinar o sucesso de uma obra literária.

Em outra passagem do romance, Gustavo Flávio levanta as discussões, tão atuais, sobre originalidade e autoria:

Um escritor ser bem informado não vale merda nenhuma. Para escrever Morte e esporte –

agonia como essência, eu enchi o meu computador de milhares de informações – tudo

que ia lendo nos livros dos outros, que por sua vez haviam lido aquilo nos livros dos outros etc. ad nauseam. O computador arquivou essa massa brutal de dados nas inúmeras ordens que me interessavam e na hora de escrever bastou-me apertar uma ou duas teclas para que, num segundo, a informação que queria aparecesse no vídeo, no momento certo.

Morte e esporte não passa de uma imensa colcha de milhares de pequenos retalhos que,

juntos e bem cozidos, parecem uma coisa original. (Ibidem, p. 125).

O trecho acima lembra a crônica “C’est la guerre!”, de Carlos Heitor Cony (2010, p. 21), na qual, de maneira jocosa, o autor elogia as qualidades do “cérebro eletrônico”:

Sei que os cérebros eletrônicos são capazes até de fazer poemas, o que não conta no saco de seus infindáveis méritos: muito cara de pau por aí, muito cérebro ruim também é capaz de fazer poemas, e os poemas terminam em antologias e o cérebro, na Academia.

A obra posterior de Fonseca volta a levantar essa questão. Em O selvagem da

subsídios a uma suposta cinebiografia, discute se o brasileiro foi original nas suas composições ou apenas copiou os mestres europeus. Ele pergunta e responde: “Mas existe mesmo o artista puramente original, o Inventor, de Pound? Wagner começou sua carreira musical se inspirando em Beethoven. Toda obra de arte é feita de citações[...]” (FONSECA, 1994b, p. 140).

A noção de autoria é problematizada no Pós-Modernismo. Críticos contemporâneos, - Linda Hutcheon menciona Julia Kristeva - retiram o foco do autor (sujeito) em favor da “produtividade textual”. Nesse contexto, “uma obra literária já não pode ser considerada original; se o fosse, não poderia ter sentido para seu leitor. É apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e importância.” Hutcheon entende que na contemporaneidade “o próprio sentido da originalidade artística é contestado.” (HUTCHEON, 1991 p. 147, 165).

Mas a era dos “pós” enterrou definitivamente o conceito de criação? Escrever seria um ato tão fácil e mecânico como Gustavo Flávio coloca?

E quanto a repetir-se? Já foi dito que Rubem Fonseca costuma lançar mão de fórmulas recorrentes e compor personagens “tipos”, conforme vê Aline Andrade Pereira (2009). Já Sérgio Augusto (1988), por seu turno, afirmou, em crítica sobre Vastas

emoções e pensamentos imperfeitos publicada na Folha de S. Paulo, que

Um mesmo herói atravessa toda a ficção do nosso escritor número um. Ele só muda a profissão. E em qualquer uma – seja ele um detetive, como o “Mandrake de “A Grande Arte”, ou um escritor, como o Gustavo Flávio de “Bufo & Spallanzani” – exibe as mesmas características: é paródico, inteligente, culto, cosmopolita, cético, irreverente, pernóstico e, acima de tudo, garanhão. [...] A exemplo de Hitchcock, Rubem Fonseca adora se repetir.34

Mesmo um fã assumido do autor como Deonísio da Silva reconhece que ele se repete em sua matéria-prima ficcional (a violência urbana, p. ex.), mas ressalta que Fonseca demonstra sua inventividade no modo como narra em cada novo livro.

A leitura pode evitar também que se tente escrever, desjeitosamente, o que já foi escrito. E permite contar o que já foi contado, com competência. Como se sabe, somos fadados a repetir tudo, pois tudo já foi dito. Rubem Fonseca não escapa dessa norma universal. Tampouco a ignora. Repete-se há vários anos[...], mas em nenhum momento se repete da mesma maneira, conta do mesmo modo ou narra da forma que já narrou. Original e surpreendente essa sua capacidade de inovar o modo como nos narra os enredos imaginados! Isso é literatura. A forma é que dá o conteúdo, o como é narrado é que dimensiona o que narra. O resto está na crônica policial dos jornais e... de muitos outros livros. (SILVA, D. 1996, p. 97, grifos do autor).

Outro tópico levantado pelo protagonista de “Bufo” é a defesa da objetividade. Gustavo Flávio se orgulha de em seus livros os leitores não precisarem interromper a leitura para “averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo”, como brincou Manuel Bandeira em seu “Poética”.

Li numa entrevista do Borges que ele se orgulhava de nunca ter escrito uma palavra difícil que levasse o leitor a procurar o dicionário. Me parece que palavreado difícil é bom apenas para esses filósofos franceses que entram na moda e dela saem ciclicamente [...] e que não tendo o que dizer, optam por ser verborragicamente crípticos; tal como os médicos fazem ininteligível a caligrafia das suas receitas para se ungirem de mais autoridade. (FONSECA, 2007, p.124).

O conto “H.M.S. Cormorant em Paranaguá” e o romance Bufo & Spallanzani ilustram, como procuramos demonstrar, a metaficção em uma de suas representações mais visíveis: a exposição e a reflexão sobre o ato de escrever, um “artifício muito valorizado” por escritores pós-modernos, de acordo com David Lodge (2011, p. 21).