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Capítulo 2 A sociedade de Clarens

2.2. O entusiasmo de Saint-Preux

A sociedade de Clarens começa a aparecer apenas a partir da quarta parte do romance. Raquel de Almeida Prado nota que “as seis partes da Nova Heloísa podem ser divididas em dois grandes blocos”111. O primeiro bloco é aquele que encerra o drama dos dois “heróis”, Júlia e Saint-Preux, que aí vivem uma tragédia que culmina com sua separação. O segundo bloco é o da descrição do funcionamento da sociedade de Clarens, a “sociedade do contrato”112, onde a desigualdade deverá ser superada113. Quem se ocupa desta descrição é o personagem Saint-Preux, que observava as novidades em sua própria terra depois de ter sido, de certa forma, preparado para percebê-las, pois amadurecera durante a longa viagem motivada pelo desconsolo causado pelo Barão D’Etange, pai de Júlia, que havia escolhido outro homem para tornar-se o esposo de sua filha, Júlia, a amada de Saint-Preux. Quando o viajante retorna, Júlia e Wolmar já haviam se casado. Saint-Preux envia carta à Sra. D’Orbe, em que fala de suas aventuras e de seus sentimentos por Júlia, ainda fortes depois de longos anos de separação. Depois da carta de Saint-Preux segue-se uma missiva enviada pelo próprio Wolmar a ele. Ao descobrir que Saint-Preux havia retornado, Júlia faz algumas confissões a seu esposo, confidenciando-lhe alguns dos episódios de seu passado e dizendo que havia sido amante do viajante que acabara de chegar. Surpreendentemente, a atitude de Wolmar não é nem rancorosa nem fruto de temor. O homem cordato convida Saint-Preux a conhecer sua família, e assim, permite-lhe o reencontro com Júlia.

Embora ainda não nos conheçamos, estou encarregado de vos escrever. A mais modesta e mais cara das mulheres acaba de abrir seu coração a seu feliz esposo. Ele vos julga digno de ter sido amado por ela e vos oferece sua casa. Nela reinam a inocência e a paz, nela encontrareis a amizade, a hospitalidade, a estima, a confiança. Consultai vosso coração e , se nela não houver nada que vos assuste, vinde sem medo. Não partireis daqui sem deixar um amigo.

111

Prado, Raquel de Almeida, A jornada e a Clausura. São Paulo – Ateliê Editorial, 2003. p. 28.

112

Wolmar

P.S. Vinde, meu amigo, esperamo-vos com solicitude. Não terei a dor de uma vossa recusa.

Júlia.114.

Depois da carta de Wolmar, concluída pela esposa, é Claire, a Sra. d’Orbe, que escreve a Saint-Peurx para avisá-lo sobre o que encontraria em seu caminho. Diz a ele que Wolmar pretendia curá-lo: diz que nem Júlia, nem ela, Claire, nem ele próprio, Wolmar, poderiam encontrar a verdadeira felicidade sem que Saint-Preux estivesse curado dos tormentos da paixão115. Pois bem, Saint-Preux vai ao encontro de Júlia e de seu esposo. Este processo de cura se daria de maneira longa e prolongada. Neste processo de cura certamente está incluído o de “aclimatação”, isto é, Saint-Preux deveria colocar em prática seu poder de observação, assim como fizera em sua viagem, para aprender. Em carta a Milorde Eduard, a décima da quarta parte do romance, conta, admirado, como tudo funcionava na casa dos Wolmar:

Quantos prazeres que conheci tarde demais experimento há três semanas! Como é agradável passar os dias no seio de uma tranqüila amizade ao abrigo das tempestades das paixões impetuosas! Milorde, que espetáculo agradável e tocante o de uma casa simples e bem dirigida em que reinam a ordem, a paz, a inocência, em que se vê reunido sem aparato, sem ostentação, tudo o que responde ao verdadeiro destino do homem! O campo, a vida retirada, o repouso, a estação, a vasta planura d’água que se oferece a meus olhos, o selvagem aspecto das montanhas, tudo me lembra, aqui, minha deliciosa Ilhia de Tinia. Julgo ver realizados os votos ardentes que já formulei tantas vezes. Levo aqui uma vida a meu gosto, encontro uma companhia segundo o desejo do meu coração. Faltam neste lugar apenas duas pessoas para que toda a minha felicidade esteja reunida e tenho esperanças de vê-las aqui em breve.

114

Rousseau, Jean-Jacques, A Nova Heloísa, (1761). Tradução de Fúlvia M. L. Moretto – Campinas: Editora da Unicamp, 1994. p. 365.

115

Enquanto espero que vós e a Sra. d’Orbe venhais levar ao mais alto grau os prazeres tão doces e tão puros, devo aprender a apreciar o lugar em que me encontro, quero dar-vos deles uma idéia pela narração de uma economia doméstica que anuncia a felicidade dos donos da casa e a faz partilhar àqueles que a habitam. Espero, a respeito do projeto que vos ocupa, que minhas reflexões possam um dia ser usadas e esta esperança serve também para suscitá-las.116

O que percebemos no início desta carta é que Saint-Preux, um “estrangeiro”, inicia a sua descrição da família para informar a Milorde Eduard como funcionava a casa que o próprio Eduard já conhecia. Com a descrição deste “estrangeiro”, pode-se dizer que Rousseau tentou convencer seus leitores a colocarem-se no lugar de Saint-Preux, a imaginarem a experiência da visita, para compartilharem do aprendizado de Saint-Preux, que achava ser seu dever adequar-se ao lugar em que se encontrava. Saint-Preux passou estas informações a Eduard para que ele próprio também tirasse proveito do sistema ali adotado. Ora, encontramos aí a nítida intenção do autor do romance de fazer com que o personagem Saint-Preux pudesse persuadir o leitor de que a vida no campo, conduzida de acordo com regras da economia doméstica, que ainda descreveremos mais adiante, poderia substituir a economia ainda utilizada por senhores de feudos. Um novo modus operandi de comando substituiria o modus operandi antigo. Os equívocos cometidos pelo de pai de Júlia, o Barão d’Etange, dariam lugar aos acertos da autoridade benfazeja, aos acertos de Wolmar, o conhecedor das causas sensíveis da moralidade, assim como o preceptor de Emílio e o legislador do Contrato Social viriam a ser.

2.3. A escolha do local para a casa, tipos de serviço e a contratação de