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4 A PRODUÇÃO FICCIONAL DE RODRIGUES: O EROS PULSANTE

4.1 O EROTISMO

Há na obra de Urbano, uma matriz circular: o corpo, o social, o declinar das paixões, os afetos. Não existe na nossa literatura, outra fala assim sagaz, mas sempre modulada, sensitiva e sedutora, capaz de nos dizer o delírio dos corpos num lírico que extrai das palavras o suco dos prodígios, e a impor, sem receios a mais intransigente denúncia. Urbano é um mestre do erotismo, a inscrever, numa língua pouco moldável à sensualidade, a poética dos corpos, os arrebatamentos, as paixões loucas; mestre desse sussurro subterrâneo e visceral que vai destruindo/iludindo as relações dos amantes até o definhamento, como se a morte fosse o destino iniludível, não no sentido moral e aristotélico da tragédia, mas como corolário lógico dos excessos libertinos, como se os amantes soubessem, antecipadamente, que não existe retorno nesse chão de lava. (LOBO, 2008, p. 47.)

De acordo com nossas pesquisas, na carreira de professor, Rodrigues ministrou disciplina sobre o erotismo e demonstrava paixão por Bataille, feliz “coincidência” que nos levou a perceber o quanto a noção de erotismo do autor francês se assemelha ao modo como o erotismo surge na ficção de Rodrigues, assim como elucida o mito do Don Juan. Desse modo, antes de nos aprofundarmos na ficção de Rodrigues, cumpre evidenciar a concepção do erótico que a ficção de Rodrigues corrobora. Pois, como dito

na citação introdutória deste capítulo, esta é uma questão central na obra de Rodrigues e se relaciona intimamente com nosso intento de mostrar a permanência do donjuanismo na obra do autor.

A primeira frase do célebre livro O Erotismo é: “do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte” (BATAILLE, 2014, p. 35). Ou seja, é o aproveitamento da vida levada aos extremos, numa situação paradoxal em que o ser descontínuo busca sua continuidade (no outro) superando a morte em algum sentido. Para o autor, o domínio do erotismo é o da violência, da violação e pensando no erotismo dos corpos, há sempre um egoísmo cínico. Parece-nos uma definição perfeitamente adequada ao comportamento do Don Juan, tanto em Molina, quanto em Molière, e, ainda, em Rodrigues.

Segundo Bataille (2014, p. 53), “o erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Enganamo-nos quanto a isso porque ele busca incessantemente no exterior um objeto de desejo. Mas esse objeto responde à interioridade do desejo”. Logo, mesmo que a busca esteja voltada para o outro ou até mesmo para a sedução em si, há sempre um desvelar do eu profundo. Por isso, aliar o estudo do erotismo ao estudo de Don Juan responde adequadamente à tese de que as personagens em Rodrigues perpetuam e reinventam a essência do mito, que é, em última instância, a própria condição humana.

Para Bataille (2014), o erotismo se desenvolve entre o interdito e a transgressão; o interdito é o limite imposto à liberdade sexual e teria sido determinado pelo mundo do trabalho, segundo o autor, “em todos os tempos, e em todos os lugares, de que temos conhecimento, o homem se define por uma conduta sexual submetida a regras, a restrições definidoras” (BATAILLE, 2014, p. 74), que variam de acordo com o tempo e o lugar. A própria evolução do mito do Don Juan desde o século XVII até o XX, com as obras que foram analisadas aqui, pode confirmar a tese de que as restrições mudam, mas permanece o interdito, a proibição, seja ela evidente ou velada. O interdito seria geral e permanente, afinal, a vida em sociedade o exige. Já a transgressão “não é a negação do

interdito, mas o supera e completa” (BATAILLE, 2014, p. 87); para o autor, a transgressão é, por vezes, tanto admitida quanto prescrita. A transgressão e o interdito definem a vida social porque se complementam, mesmo sendo movimentos contraditórios, pois “o interdito rejeita, mas a fascinação introduz a transgressão”

(BATAILLE, 2014, p. 92).

Ainda segundo o autor, “o erotismo em seu conjunto é a infração à regra dos interditos: é uma atividade humana. Mas, ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade não deixa de ser seu fundamento” (BATAILLE, 2014, p. 118). Portanto, aquilo que pertence ao domínio do “irracional” é também parte integrante do erotismo e quando pensamos no comportamento donjuanesco, a absurdidade que lhe é inerente paira sobre essa animalidade, pois sem a compreensão das motivações de sua ação, só resta a aceitação de sua natureza distinta.

O autor afirma: “o que é digno de nota no interdito sexual é que ele se revela plenamente na transgressão” (BATAILLE, 2014, p. 132), outro aspecto da teoria de Bataille que elucida o comportamento donjuanesco, pois, sendo a transgressão própria da sociedade organizada, no caso, da contraposição a ela, inevitavelmente será realizada na busca de superar o interdito. Don Juan busca transgredir os interditos a partir da burla da honra feminina, que, por sua vez, pertencia ao homem e não à mulher, como já assinalamos. Ele rompe com a moral atingindo os indivíduos através da transgressão do interdito sexual.

O autor acrescenta:

quando a possibilidade de transgressão vem a faltar, ela abre a da profanação. A via da decadência em que o erotismo é lançado à vala comum, é preferível à neutralidade que teria a atividade sexual conforme à razão, não dilacerando mais nada. Se o interdito deixa de atuar, se não cremos mais no interdito, a transgressão é impossível, mas um sentimento de transgressão é mantido, se preciso, na aberração. (BATAILLE, 2014, p. 164.)

Nos perguntamos em qual instância se enquadram Don Juan e as personagens de Rodrigues: se crédulas no interdito aspiram à profanação ou se incrédulas do interdito

lançam-se à aberração? Acreditamos que, para cada caso, haverá uma resposta. Se pensarmos no Don Juan de Molina, a primeira opção será a mais correta, afinal, a personagem cria em Deus e nos dogmas da religião, tanto que seu derradeiro pedido é alguém para se confessar antes da morte. Se pensarmos em Molière, temos um Don Juan mais apto ao discurso sobre sua condição, justificando-se com sua crença na razão e esquivando-se de questões religiosas, no entanto, sua efetiva conquista foi apenas a esposa, Dona Elvira, mesmo que tenha enganado outras mulheres; a sua incredulidade, ao menos em regras cristãs, não o conduz à aberração. E se pensarmos nas personagens de Rodrigues, podemos encontrar as duas hipóteses citadas acima, ou seja, tanto personagens que por partilharem do interdito buscam a transgressão, como personagens que não creem em nada partirem para a aberração, o que veremos na seção seguinte.

Por fim, em notas acrescentadas à edição do livro de Bataille empregada nesta pesquisa, encontramos a opinião dele sobre o Don Juan:

Mas é o fato de ser um novo aspecto, uma repetição do desafio, que dá à impaciência de Don Juan o poder que ela tem de nos seduzir. É que, humanamente, sempre voltamos a fechar nossas correntes; é que, humanamente, sempre temos que nos libertar de novo. O próprio Don Juan não é mais do que um novo aspecto do eterno liberto de escravidões indefinidamente recriadas que todos nós somos — se temos colhões de não desistir — se não temos colhões suficientes para morrer de uma vez. A repetição é a sina do homem que não morre: o próprio Don Juan a encontrava passando de uma mulher a outra, e só a mão do comendador pôde salvá-lo. (BATAILLE, 2014, p. 333.)

É uma bela explicação para o mito: o desejo de constante desafio, de transgressão que culmina numa repetição quase sem fim, mesmo que seja justamente buscando derrotar a morte, no entanto, só ela faz com que Don Juan possa finalmente descansar. A essência do erotismo reside então na constante repetição de burlar os interditos, os tabus que restringem a atividade sexual humana e culmina, inevitavelmente, na morte. Segundo Paes (2006), a mecânica do prazer erótico reside justamente nesse jogo dialético entre a transgressão e o interdito. De acordo com Araújo (2005, p. 90),

o erotismo, assim, empareda a Razão, gerando conflitos insanáveis, justamente porque não tem compromisso com o formal da finalidade lógica. Compartindo a cisão na consciência, no interdito e no repertório da transgressão, o ser erótico é fundamentalmente um ser de espírito que advoga a heterogeneidade e o paradoxo. Ou seja: o erotismo tem um saber que conjuga verbos de declinação da alma e do corpo. Como um abismo.

O terreno do desejo humano é demasiado profundo e complexo, a violência exposta no comportamento de um Don Juan traz sempre à tona a reflexão sobre nossas pulsões de vida e morte, por isso, iniciamos as análises da ficção de Rodrigues unindo o temas de amor, sexo e morte, evidenciando como se entrelaçam e se configuram na representação e repetição do comportamento donjuanesco.

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