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2.4 O patriarcado e o cânone da narrativa

2.4.4 O espaço conquistado pela ordem

Cosmicizar o caos ou estabelecer uma ordem através de uma ação pressupõe um movi- mento, que envolve, por sua vez, os fatores do tempo e do espaço. Como nota Meletínski (2002, p. 124), “a temática da criação está ligada a uma dinâmica no tempo”, na qual “desta- ca-se o motivo do movimento no espaço e o entrecruzamento de diferentes zonas e mundos”.

Bachelard, n’A poética do espaço, fala de uma oposição entre um espaço da intimidade, onde vivemos felizes, e que é representado pela casa, e de outro, hostil, misterioso e periféri- co, o espaço da floresta para o caçador ou do mar inóspito para o marinheiro. Entretanto, exis- te ainda um terceiro espaço, localizado no desejo e no devaneio, que Bachelard (1988, p. 149) define com uma antimetábole: “Quem tem um palácio sonha com uma choupana, quem tem uma choupana sonha com um palácio”. Este último é um espaço utópico, surgido na conflu- ência dos outros dois: o espaço conhecido, da segurança; e o desconhecido, onde se enfrentam os inimigos, se sofre e luta.

Para compreender culturalmente esta estratificação do espaço, recorro à exploração que Eliade (2001, p. 25-33) faz da geografia religiosa em seu O sagrado e o profano, onde o autor mostra que não existe espaço homogêneo para uma cultura, que sempre separa um espaço sagrado, “forte” e “significativo”, em oposição a “espaços não-sagrados”, inconsistentes e “amorfos”, toda “a extensão informe, que o cerca”. Esta ruptura no espaço “funda ontologi- camente o mundo” da cultura num eixo central, onde vive o homem para quem este lugar se torna o “Centro do Mundo”, o “cosmo”, primeira localização de um espaço tópico, isto é, co- nhecido. Tudo o que é excluído e pertence à periferia deste centro é espaço profano e hostil à cultura, é o espaço do caos indomado. “Sedento do ser”, este homem religioso tem horror do

caos que circunda o mundo da cultura e ameaça submergi-la e retirar-lhe o sentimento totali- zante da identidade e da unidade. Assim, o espaço desconhecido na periferia da cultura, “es- paço não-cosmizado porque não consagrado”, geografia do amorfo onde o membro da comu- nidade não consegue se orientar, é o espaço do “não-ser absoluto”, da aniquilação e da morte, cujos habitantes são demonizados, por constituírem o inimigo da cultura central (ELIADE, 2001, p. 60).

Assim, se tomarmos a hierarquia espacial definida por Bachelard e Eliade, vemos re- produzido, na gramática espacial do mito e da narrativa, o eixo opositor da ordem e do caos, nas funções respectivas de um espaço cosmicizado e um espaço caótico. Enquanto o primeiro constitui o espaço de intimidade do herói, seu lugar seguro e conhecido, sede da harmonia e bem-estar do protagonista, o outro é o ambiente conflituoso instituído pela ação de forças an- tagonistas e que geram a ação narrativa, cujo movimento intenta restituir a ordem prejudicada. O espaço utópico, por sua vez, existe sempre como valor teleológico, desejo que impulsiona o movimento do herói, causador da fábula e do enredo, e às vezes passa a existir como instância espacial localizada ao final da narrativa, se couber ao herói a vitória sobre as forças do caos e a conquista do bem desejado.

Por outro lado, se entendida à luz da tese de Maturana e dos outros autores tematizado- res do conflito das culturas matrística e patriarcal, veremos que uma hierarquização do espaço num relato de conquista como o que caracteriza os mitos e narrativas ocidentais cabe melhor numa rede de conversações própria à cultura pastoril do que à cultura agrícola das sociedades matrísticas. As primeiras narrativas heróicas são trazidas ao seio da comunidade por viajantes que enfrentaram mundos novos e relataram aos seus ouvintes as maravilhas experimentadas fora do espaço central e sedentário do grupo estável. Trata-se, por outro lado, de experiências melhor imaginadas na rotina do sujeito masculino, cuja convivência com o alheio e o estranho é mais freqüente do que no universo feminino. Como observa Neumann (2003, p. 112):

O grupo masculino, dado a perambular, caçar e guerrear, mesmo quando per- manece domiciliado num núcleo matriarcal familiar, é um grupo nômade de caçadores, bem antes dos criadores nômades de gado, que surgiram com a domesticação dos animais.

O sistema matriarcal de exogamia dificulta a formação de grupos masculinos, porque os homens são obrigados a casar fora da sua tribo e, por isso, se disper- sam, tendo de viver matrilocalmente, como estranhos na tribo da esposa. O homem é um estrangeiro no clã em que se casou; mas, como membro do seu próprio clã, encontra-se alienado do seu local de residência. Isto é, quando, como era originalmente o caso, vive matrilocalmente, no local da residência de sua esposa, é um estranho tolerado; mas, em seu local nativo de residência, onde os seus direitos ainda valem, ele só vive ocasionalmente.

O primeiro narrador foi provavelmente o caçador e depois o pastor condutor de reba- nhos, e as primeiras narrativas constituíam relatos que mapeavam o espaço percorrido pelo sujeito no mundo hostil e profano além das fronteiras de sua cultura. A partir do conflito das hordas nômades com outros grupos, dentre eles os de sociedades matrilineares, este percurso passa a ser conduzido por uma vontade de conquista e apropriação do espaço exterior, para convertê-lo em espaço interior:

Um território desconhecido, estrangeiro, desocupado (no sentido, muitas ve- zes, de desocupado pelos “nossos”) ainda faz parte da modalidade fluida e lar- var do “Caos”. Ocupando-o e, sobretudo, instalando-se, o homem transforma- o simbolicamente em Cosmos mediante uma repetição ritual da cosmogonia. [...] “Situar-se” num lugar, organizá-lo, habitá-lo – são ações que pressupõem uma escolha existencial: a escolha do Universo que se está pronto a assumir ao “criá-lo”. Ora, esse “Universo” é sempre a réplica do Universo exemplar cria- do e habitado pelos deuses (ELIADE, 2001, p. 36).

Desse modo, se no nível da fábula, a narrativa ocidental se caracteriza por uma ação masculina instauradora da ordem, no nível da ambientação espacial, repete-se o imaginário viril de saída de um espaço fixo e organizado para a conquista de um espaço hostil e caótico, num impulso expansionista e de apropriação. Se todo enredo funda-se sobre a ação, toda ação é sempre caracterizada por uma mudança, e toda mudança reconfigura uma situação espacial.