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O espaço da televisão: uma cartografia do universo doméstico

Como mencionado, os informantes da “classe popular” residem no bairro Serrinha, localizado na região periférica de Fortaleza. Tal bairro é conhecido pelo alto índice de pobreza (existência de grande concentração de favelas), falta de infra-estrutura (saneamento básico) e violência (geralmente entre gangues rivais). Como confirma D.Valéria34, dona de casa, que mora há 25 anos no bairro:

Este bairro é muito violento, né? E fez foi piorar. Agora não sei se é falta de emprego também, né? Aí a coisa piora. E o estudo também, a mãe tem que se preocupar pra botar o filho na escola,

33 Bourdieu (1996: 147) denomina de economicismo, “o fato de considerar que as leis de funcionamento do

campo econômico valem para todos os campos”.

34 Além das conversas com as crianças, realizei entrevistas com os pais (sobretudo com as mães), a fim de

pra melhorar cada vez mais. Se não tiver o emprego e se não tiver o estudo aí que piora tudo, né? Tem muito rapaz jovem sem estudar, horas e horas aí no meio da rua, vira marginal.

A maioria das residências do bairro é de estrutura humilde, sendo, quase sempre, separadas das casas dos vizinhos por uma parede. Desse modo, a separação entre o público e o privado não é nítida. Os espaços da casa e da rua muitas vezes se confundem. Os moradores, freqüentemente, tomam conhecimento do que acontece dentro da casa de seus vizinhos (quando compram algo novo, quando acontece uma briga familiar). Tal situação foi relatada, também, por Norbert Elias, quando o autor realizou um estudo etnográfico em uma pequena cidade da Inglaterra. Na pesquisa Elias (2000: 78) ressalta as relações de vizinhança de uma zona que possuía características proletárias.

As portas ficavam menos solidamente fechadas para outros; as paredes eram finas; quase tudo o que acontecia dentro da casa ficava ao alcance dos olhos e ouvidos dos vizinhos, não se podia esconder muita coisa; os aspectos particulares e comunitários, “individuais” e “sociais” da vida eram menos separados. Qualquer notícia de interesse espalhava-se rapidamente, de uma casa pra outra e de uma rua pra outra pelos canais da fofoca.

Na “classe popular”35, as relações com a vizinhança são marcantes. As pessoas

ainda possuem o costume de sentar-se nas calçadas para “jogar conversa fora”. Como ressalta D. Maria (empregada doméstica):

A gente bota as cadeiras pra fora, senta cada qual nas suas calçadas. Aí uma vem conversa com um e com outro. Às vezes, dia de domingo, a gente coloca a cadeira debaixo do pé de pau, aí vem os vizinhos tudinho pra li. Aí, nós ficamos lá umas três horas, mais ou menos. Depois, eu entro e vou assistir o Faustão e o Gugu. Dia de domingo só tem esses dois programas pra assistir.

As crianças circulam livremente pelas ruas do bairro (soltam pipas, jogam bolas etc). Raras são as vezes em que um adulto está presente. As crianças entrevistadas da “classe popular” saem de casa para brincar sem pedir a autorização dos pais. O espaço da

rua funciona como uma extensão da casa para elas (as residências são pequenas e não possuem espaços para as crianças brincarem).

Apesar desta constatação, os pais apresentam um discurso incompatível com o que foi observado. A maioria afirma que as crianças dificilmente saem de casa, ressaltando a importância da televisão para que as crianças permaneçam “dentro de casa”. Como afirma D. Carolina:

Eu prefiro que eles estejam assistindo televisão né?... Pelo menos tão dentro de casa e eu tô vendo o que eles estão fazendo. Melhor do que tá no meio da rua. Mas também depende muito dos programas né? Que eles assistem. Se for um programa ruim eu não deixo de jeito nenhum. Aí vão pro som.

Este depoimento retrata a discussão levantada por DaMatta (1987: 62) acerca dos espaços da casa e da rua. Segundo o autor, a casa é definida como um espaço de “calma, repouso, recuperação e hospitalidade; enfim, de tudo aquilo que se soma e define a nossa idéia de ‘amor’, ‘carinho’ e ‘calor humano’36. A rua é um espaço definido precisamente ao inverso”; ou seja, “a rua é um local perigoso”, “propício a desgraças e roubos”. O relato de D.Carolina reproduz a idéia da rua como “local perigoso” - particularmente na expressão “no meio da rua”. Tal visão é reforçada, principalmente, pelo aumento da violência atualmente. Desse modo, a televisão é tida aqui como um dos principais atrativos para as crianças “não saírem pra rua”.

As crianças entrevistadas da “classe popular” dividem seu tempo entre as brincadeiras na rua, as tarefas escolares, as atividades domésticas, assistir à televisão e ir à escola. No caso de Amélia37 (10 anos), seus pais trabalham fora e ela fica aos cuidados da irmã mais velha, Sandra de 11(onze) anos. Amélia e Sandra dividem seus dias entre cuidar da casa e realizar suas tarefas escolares. Tais atividades são realizadas ao mesmo tempo em que assistem à televisão. As meninas circulam livremente pelas ruas do bairro contrariando as ordens da mãe, que proíbe as filhas de saírem de casa.

36 Contudo, para alguns informantes do segmento de “classe popular”, a casa não se configura como sinônimo

de harmonia e proteção. Ao contrário, em algumas residências visitadas a violência doméstica era freqüente. Como demonstra o depoimento de D. Isaura (mãe de Amélia e Sandra): “Meu marido é muito ignorante até

me bater, ele me bate e quer também bater nas meninas. Já fui várias vezes bater no hospital”. Ver o item 4.1. do capítulo IV.

No “universo popular”, o aparelho de televisão ocupa um lugar central na sala de visitas. O aparelho é colocado em um pequeno móvel disputando o espaço com alguns objetos decorativos (arranjos florais artificiais, bibelôs, fotografias da família em ocasiões especiais etc) e com o aparelho de som. O televisor permanece, quase sempre, ligado, mesmo quando não há ninguém assistindo. Nesse sentido, a televisão aparece como um “ruído de fundo”, para usar a terminologia de Barrios (1992). Ou seja, os programas de televisão servem de pano de fundo para conversas entre os vizinhos, entre os membros da família e durante as atividades domésticas. A assistência é alternada entre as conversas aleatórias e conversas relativas ao conteúdo dos programas.

Durante as minhas visitas, era comum encontrar as crianças realizando outras atividades (brincando com os amigos, fazendo refeições, realizando tarefas escolares ou domésticas) com o televisor ligado. Algumas vezes, as crianças só escutavam a TV, olhando para o aparelho quando alguma cena lhe chamava a atenção. Barrios (1992) classifica este tipo de assistência de “estilo fracionado de ver televisão”. Ou seja, a atenção do telespectador é dividida entre assistir à televisão e realizar outras atividades.

Outra situação freqüente, observada no “universo popular”, foi a seguinte: as crianças quando não possuem um televisor costumam assistir aos programas na casa do vizinho. O que significa afirmar que a televisão faz parte do cotidiano das crianças mesmo quando estas não possuem um televisor. A prática de assistir à televisão nas casas dos vizinhos era comum nos anos 50, período em que o televisor era raro. As pessoas como não possuíam o aparelho, iam assistir à TV nas casas dos vizinhos. Tais pessoas ficaram conhecidas como “televizinhos”, como afirma Simões (1986). Atualmente, tal prática ainda sobrevive na “classe popular”. Durante a assistência nas casas dos vizinhos, além de brincar, as crianças comentam o programa que estão assistindo. Tal constatação foi muito proveitosa para a pesquisa, na medida em que possibilitou a observação das brincadeiras e das conversas das crianças durante a assistência ao programa.

Os informantes da “classe média” residem em bairros distintos de Fortaleza (Aldeota, Cidade dos Funcionários e Papicu). Suas residências são relativamente grandes e confortáveis. Ao contrário da “classe popular”, a separação entre o público e o privado é nítida. A relação com a vizinhança é mais tímida e muitas vezes inexistente. As visitas são prolongadas para outros bairros, onde moram os parentes e amigos. O ritual de visitas é distinto dos informantes da “classe popular”. Nesta última, as visitas são geralmente

improvisadas, sem avisos prévios, pois a maioria das casas não possui telefone. As minhas visitas eram agendadas previamente, não tendo como desmarcá-las caso houvesse algum imprevisto. Já na “classe média”, todas as minhas visitas foram confirmadas antes por um telefonema, apesar de já estarem agendadas.

O cotidiano das crianças entrevistadas da “classe média” é constituído por várias atividades, entre elas: a escola, esportes, aulas particulares de reforço, idas ao cinema, ao

shopping e assistir à televisão. As crianças entrevistadas não transitam sozinhas pelas ruas do seu bairro e não saem sem a autorização dos pais, ao contrário das crianças da “classe popular”.

O consumo e o acesso a bens variados, observados nas rotinas diárias destas crianças, não excluem a presença da televisão do seu cotidiano. Desse modo, o lugar da televisão neste segmento social é “redimensionado”38. Isso pode ser percebido até no espaço ocupado pelo aparelho na casa. Ou seja, o aparelho de televisão, muitas vezes, deixa de ocupar um lugar central na sala de visitas, sendo colocado no quarto. Portanto, ele sai de um espaço de “sociabilidade” para um lugar privativo da residência. Barrios (1992) afirma que a localização do aparelho de TV condiciona “quem, como, onde ou o quê se deve ver no televisor”.

Além da localização do televisor no ambiente doméstico, é pertinente ressaltar também a estrutura da casa, ou seja, os espaços da casa e como estes são divididos. Os informantes da “classe popular” possuem apenas um aparelho de TV, como já dito, que ocupa um lugar de destaque na sala de visitas. Os membros da família se reúnem com freqüência ao redor da televisão, sobretudo à noite, quando geralmente todos estão em casa. D. Valéria destaca as disputas freqüentes entre as crianças e o marido: No domingo o pai

deles quer assistir o futebol ou outro programa, aí é uma briga danada, porque eles querem assistir outra coisa.

Os indivíduos da “classe média” estudada possuem mais de um televisor, localizados em vários espaços da residência. Ao contrário do “universo popular”, o televisor é colocado também em outros cômodos da casa (quartos, cozinha etc). Os espaços destas casas são bem demarcados. Ou seja, a sala de visita é reservada para as pessoas de

38 Andrade (2003: 168), no seu estudo sobre a recepção da telenovela Suave Veneno, afirma que para os

informantes da classe média a televisão se configura como uma opção de lazer no meio de tantas outras. Todavia, segundo a autora, isso não diminui o impacto da televisão sobre o cotidiano da classe média, “apenas o redimensiona, situando o raciocínio sob um prisma diferente”.

fora; os quartos – recanto de privacidade e intimidade; a sala de jantar e a cozinha como lugares de “sociabilidade”, onde os membros da família se reúnem para as refeições e outras atividades (ANDRADE, 2003).

No decorrer da investigação, constatei a presença marcante da televisão na rotina das crianças entrevistadas, sobretudo nos informantes da “classe popular”. Suas atividades diárias são administradas de acordo com a programação da televisão. Ou seja, o tempo destas crianças é cronometrado a partir dos horários dos programas televisivos. Ao perguntar a uma das crianças sobre a sua rotina ela respondeu da seguinte forma:

Eu acordo todo dia na hora da Ana Maria Braga, faço as coisas, faço a tarefa, depois que termina a TV Globinho tomo banho e almoço pra ir pra aula. Quando eu chego estar passando a malhação, depois eu janto e vou dormir depois da novela Celebridade (Joana, 10 anos).

Como já assinalado, além da observação durante a assistência ao programa selecionado, estabeleci conversas com as crianças em outros momentos. Desse modo, as entrevistas foram realizadas em vários horários, de acordo com a conveniência dos entrevistados. Minha intenção, ao adotar tal procedimento, foi investigar as formas de apropriação ou incorporação das mensagens do programa ao cotidiano das crianças. Acredito que analisar as “microinterações da vida cotidiana” é o caminho mais eficaz para quem pretende compreender o modo como o público infantil interpreta e se apropria dos discursos televisivos. Tais apropriações foram percebidas por mim em vários momentos, entre eles: no consumo de produtos relativos às personagens dos desenhos (brinquedos, roupas, alimentos, material escolar, entre outros); na linguagem da criança (muitas usavam gírias utilizadas pelas apresentadoras do programa ou pelas personagens dos desenhos) e nas brincadeiras com os amigos. As observações contemplam os dois universos sociais.

Contudo, chamo a atenção para algumas peculiaridades verificadas no consumo das crianças do “universo popular”. Os produtos adquiridos por elas são geralmente falsificados ou “piratas” (bonecos das personagens, roupas, CDs). Desse modo, apesar da falta de recursos financeiros para comprar os brinquedos originais para as crianças, os pais

acabam comprando os vendidos pelos camelôs. Ao contrário do que ocorre com as crianças da “classe média” que possuem os produtos originais39.