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CAPÍTULO 1 TEMPOS MODERNOS EM MUNDOS CONSERVADORES

3.2 O Estado é Cristão?

Nosso objetivo é trazer à baila as condições nas quais se encontravam as duas instituições, Igreja e Estado, no início dos anos de 1930. A contragosto de uma visão padronizada e funcionalista de que a Igreja servia ao Estado como amortecedora de conflitos sociais, e de que o Estado, por sua vez, se fortalecia e se legitimava com autoridade maior devido ao apoio da Igreja, dando-lhe em troca um prestígio acima do que indicava a legislação Republicana, é preciso cautela em se colocar as duas instituições numa dependência mútua que não reflete o peso real dos personagens que lhes deram corpo.

A Igreja estava vivendo um conflito interno muito grande. Bispos e arcebispos não chegavam a um lugar comum em questão de como fazer valer o peso da religião que representavam. A Santa Sé não se sintonizava às preocupações do episcopado brasileiro e, de certa forma, o tratava com arrogância e desdém. Haja vista o desabafo do carismático católico Jackson de Figueiredo ao

embaixador na Santa Sé, Carlos Magalhães de Azeredo254dizendo que a paz da

qual desfrutava a Igreja era “fictícia” e que a Santa Sé não respeitava os bispos brasileiros.

Alguns dados revelados por ducumentação do Itamaraty nos dão conta de como estavam as relações entre o Estado do Vaticano e o Estado Brasileiro. O embaixador Maurício Nabuco mandava ofício ao Ministério da Relações Exteriores, informando relatório da Secretaria de Estado da Santa Sé que notificava o Governo Brasileiro para saber quando iria se dar o reinício do pagamento dos títulos da dívida à Santa Sé. Na notificação havia uma observação: “pedia pressa na solução do

problema”255. No mesmo documento, o embaixador informava que o próprio papa

havia pedido urgência no pagamento da dívida, fato inusitado, pois o pontífice, por sua posição de chefe de Estado e intermediário e mensageiro divino, acabara optando por se interpor na história, o que indicava certa proximidade e intimidade

254

FIGUEIREDO, Jackson de. Correspondência ao embaixador Carlos Magalhães de Azeredo. Rio de Janeiro, s/d Caixa 38ª AHI-RJ

255

Embaixada do Brasil em Roma. Ofício à Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Roma, 29.abr.1938, Lata 637, maço 9746, AHI-RJ. Cf os números da dívida: 1889 = 9.700 Liras; 1911 = 70.770 Liras; Rio de Janeiro = 33.000 Liras; 1931 = 9.640 Liras

com o Estado Brasileiro. Outros indícios mostravam essa direção. A Santa Sé conseguiu junto ao Governo Brasileiro a assinatura de uma concordata sobre as Missões Apostólicas no centro-oeste e norte do país, na obra de civilização dos

índios256. Ainda vasculhando privilégios diversos, logo depois de comemorarem,

católicos e Governo, o êxito das eleições de maio de 1934, o núncio no Brasil pedia,

em nome da Santa Sé, isenção de impostos257. Os documentos citados acima falam

por si. No entanto, nota-se uma abertura maior de concessões de ambas as partes logo depois das definições eleitorais de 1934 e da certeza, ou quase, das autoridades getulistas de que a Igreja não representava obstáculo, claro, dentro do espírito das conciliações.

Por sua vez o Estado não tinha, supostamente, uma posição quanto ao que poderia fazer em relação às aproximações da Santa Sé, que buscava uma assinatura de concordata com o Governo.

Sendo assim, nenhuma das duas instituições possuía uma posição definida do que esperava da outra, pelo menos, nos primeiros quatro anos do Governo Provisório. O jogo estava em aberto.

O avivamento do culto ao nacionalismo e ao patriotismo de ambas as instituições teve objetivos precisos e, de certa forma, conhecidos. Por parte da Igreja, o discurso que ligava nacionalismo, patriotismo, amor à terra da paz e da concórdia tinha também endereço certo: expurgar comunistas, protestantes e influências estrangeiras que pudessem trazer perigo à ordem constituída. Não deixava de ser um discurso de adesão e de facilitação à junção com o Estado e às suas diretrizes, uma readaptação a um lugar que, no fundo, a hierarquia sabia que não lhe pertencia mais, ou seja, ajustar-se ao papel de apoiadora daquilo que decidia o Estado. Nesse sentido, o discurso de nacionalismo, de patriotismo, de amor à terra se reveste de um caráter espiritual na medida em que se incorpora às diretrizes pastorais da Igreja. No dizer de Alceu, seria a democracia cristã, ou, a

política visando atingir o homem eterno, seria uma filosofia de vida258. Se era uma

faceta pastoral de ação social, deveria abarcar toda a dimensão da vida do crente: educar a criança para ser um cristão-cidadão, o jovem para ser militante da causa

256

ACCIOLY, H. Ofício ao ministro Oswaldo Aranha. Roma, 12.nov.1940. Estante 124, prateleira 01, volume 15, AHI-RJ.

257

MASELLA, A. Correspondências recebidas. Rio de Janeiro, 21.set.1934. Estante 87, prat. 03, vol. 01, AHI- RJ.

258

LIMA, A. A. Política. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 43

católica, educar o adulto para uma família cristã, o militar para honrar a pátria cristã, o empresário para uma economia do bem-comum, o operário para ser o trabalhador da ordem política cristã.

Já, por parte do Estado, esse incorpora um discurso no qual o centro é a imagem do seu novo líder, Vargas. O Estado brasileiro aplicava à imagem de Vargas

um caráter teológico de seu líder, sem catolicizá-lo259. Vargas tinha o hábito de criar

atores políticos. Talvez seu grande feito tenha sido transformar-se no epíteto de “pai

dos pobres”260, o que lembra a figura de um Deus benevolente que, num gesto de

pura misericórdia, vem do alto salvar o indefeso, o coitado, o injustiçado. Ao mesmo tempo, essa imagem de “pai dos pobres” se condensa e se desdobra numa operação político-publicitária que lhe valeria dividendos eleitorais capazes de marcá- lo como o “grande” estadista da modernização, da justiça trabalhista, da redemocratização contra as forças da República “Velha”, esta última expressão,

construída nos porões da propaganda do DIP261.

O caráter de autoridade patriarcal se destacava. O pai concede a graça para seus filhos à medida que esses cumprem a obediência esperada. O Presidente da República se descola do papel histórico para salvar o povo das tiranias.