• Nenhum resultado encontrado

2 A CONSTRUÇÃO DA OFENSA

2.3 O Estado e o Islã

O líder espiritual e político do Irã, aiatolá Khomeini, condenou ontem em Teerã (Irã) o escritor anglo-indiano Salman Rushdie à morte por ter escrito o livro “Os Versos Satânicos” [...] Ele pediu que os “bravos muçulmanos” matassem o escritor e todos os envolvidos na publicação do livro. Disse que qualquer muçulmano que tenha acesso ao escritor, mas que perca a oportunidade de assassiná-lo será punido. Se um muçulmano for morto na tentativa de matar Rushdie será, segundo Khomeini, considerado um mártir. “A ameaça do aiatolá Khomeini é a última etapa de uma campanha, que começou com calúnias, difamações e deturpações do livro que tomaram a forma de toda sorte de violências, e, francamente, gostaria de ter escrito um livro mais crítico do islamismo”, disse Salman Rushdie, 41, o autor anglo- indiano, em tom desafiador, ontem, em Londres. Reagindo à sentença de morte decretada pelo líder religioso iraniano contra ele e todas as pessoas envolvidas na publicação de seu best-seller “The Satanic Verses”, Rushdie disse que “líderes de uma religião que pensam que estão acima de quaisquer sussurros críticos merecem um pouco mais de verdadeiras críticas agora” [...] O livro de Rushdie, vencedor do “Whitbread Literary Award” de 1988, um dos principais prêmios literários da Grã-Bretanha, foi qualificado de “uma blasfêmia contra a fé muçulmana” em todos os estados islâmicos do mundo. (JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO, CADERNO MUNDO, 15 fev. 1989 apud OMRAN, 2006, p. 111-112).

Como dito, o caso Rushdie exige ponderações que se fazem relevantes para a análise tanto das relações sociais, quanto das relações entre os Estados envolvidos no conflito a que

se propõe demonstrar a presente pesquisa. Tendo em vista o contexto político mundial das décadas de 70 e 80, o caso Rushdie deve ser considerado também como um instrumento de disputa de poder na arena internacional. O fundamentalismo muçulmano como ação de um governo islâmico estabelecido por uma revolução no Irã – que se queria legítimo também em toda a extensão do mundo muçulmano – e a reação à condenação pelos países ocidentais correspondem, portanto, não só a questões de concepções de mundo divergentes – entre a modernidade ocidental e a tradição religiosa islâmica –, mas também a questões políticas de um cenário de interesses geoestratégicos e econômicos.

Nesse sentido, o fundamentalismo islâmico em torno do livro “Os Versos Satânicos” chocou o mundo ocidental no final da década de 80 quando Khomeini ordenou a morte ao autor Salman Rushdie – e a quem mais tivesse envolvimento com a publicação da obra – acusando-o de blasfêmia contra Deus, uma vez que seu romance desonrava o nome do profeta. Para Zilles (2009) “Naquele momento o governo do Irã tentava recuperar sua posição de liderança no mundo árabe para superar a derrota militar sofrida contra o Iraque.” Nesse sentido é que o caso Rushdie pode ser interpretado como uma manobra de Khomeini para concentrar a atenção dos iranianos após a longa e sangrenta Guerra Irã-Iraque, e para fazer reviver o fervor revolucionário da população após as perdas de entes queridos e as privações causadas pela guerra; a condenação visaria, pois, recuperar o apoio à Revolução Islâmica do mundo muçulmano em geral, uma vez que após dez anos de guerra contra um país sunita, este apoio havia declinado consideravelmente. O compromisso com a exportação da revolução era parte integrante da ideologia revolucionária de Khomeini, para quem o Islã constituía um projeto de alcance universal. A própria constituição iraniana proclama o objetivo de um Estado pan-islamista e compromete a República Islâmica a apoiar todas as “lutas justas”. No capítulo décimo, intitulado “A política externa” fica claro o caráter do governo nesse aspecto:

Artigo 152°: A política externa da República Islâmica do Irã baseia-se na negação de todas as formas de dominação ou submissão a esta, na preservação da independência em todos os aspectos e na integridade territorial do país, defendendo os direitos de todos os muçulmanos, o não- alinhamento com as potências dominantes e relações mútuas de paz com os Estados não-hostis.

Artigo 154°: [...] Conseqüentemente, ao mesmo tempo que se abstém de qualquer interferência nos assuntos internos de outras nações, a República Islâmica apoiará qualquer luta justa dos povos oprimidos contra as classes opressoras em qualquer parte da face da terra. (A CONSTITUIÇÃO ISLÂMICA DO IRÃ).

A fatwa condenando Salman Rushdie à morte por blasfêmia foi um dos últimos atos de Khomeini. Segundo Demant, o Irã adotou uma das causas dos fundamentalistas

muçulmanos europeus: apesar de Rushdie ser cidadão britânico e estar fora da jurisdição do Estado iraniano, “Khomeini avaliou que a xaria tinha alcance universal para todos os muçulmanos onde quer que estivessem, e que as fronteiras nacionais (inclusive as iranianas) tinham apenas valor relativo.” (2008, p. 238).41 A liberdade de expressão, defendida pelo sistema de Direitos Humanos, encontra limitações no Islã – aprofundava-se, então, a crise entre o Irã e o Ocidente. Nas palavras de um estudioso da jurisprudência islâmica:

Em respeito aos princípios e à fé islâmicos, não é possível a um indivíduo usar a liberdade de opinião como pretexto para ridicularizar o Islam, seus Profetas ou seu credo. Tal atitude pode transformar um muçulmano em apóstata, merecedor de castigo. Sua liberdade de expressão não o salvará. (ZAIDAN, 1990, p. 105).

Por outro lado, a Grã-Bretanha não poderia aceitar uma condenação dessa ordem a um de seus cidadãos, nem permitiria a interferência de um aiatolá nos assuntos internos do país; ainda mais depois de ter suas empresas expulsas do controle das reservas do petróleo iraniano: a nacionalização da exploração petrolífera no Irã havia comprometido a economia de muitos países ocidentais, mas principalmente da Inglaterra e dos Estados Unidos. Ainda de acordo com Zilles (2009), movimentos islâmicos assumiram a causa khomeinista e como o aiatolá, pouco antes de sua morte, instigou grupos islâmicos nos países europeus convocando-os à violência, o terrorismo passou a ser associado ao fundamentalismo. O caso Rushdie representa, pois, um caso típico do fundamentalismo islâmico.

Como os ocidentais rejeitaram a condenação de Rushdie à morte, são acusados de ignorarem o Islã e ofendê-lo por tomarem a defesa de alguém que blasfemou contra Deus. No fundo manifesta-se uma rejeição do Ocidente pelo Islamismo, além de interesses políticos em jogo. Entretanto, no caso Rushdie, também se trata de uma discussão da religião islâmica sobre seus fundamentos. O Islamismo sente-se atacado em seus próprios fundamentos. E isso sobretudo quando o escritor, em seus Versos satânicos,

41 Sobre certa legitimidade de internacionalização do estado islâmico, Zaidan (1990, p. 27-28) discorre,

justificando: “O governo islâmico é um governo ideológico. Repousa sobre os fundamentos da fé islâmica e todas as suas leis e sistema de regulamentação dela derivado. Nesse sentido, ele não é um estado regional, restringido por fronteiras geográficas, nem é um estado étnico limitado pelas fronteiras de nações, raças ou etnias. É um estado ideológico cujos limites são o alcance de sua fé, não tendo por isso lugar no sistema para privilégios baseados na cor, raça ou região. Esta natureza do estado islâmico faz possível ser ele um estado internacional, que integra diferentes raças e nações, pois todo ser humano está apto a aceitar a crença desse estado, o Islam, para tornar-se seu súdito e professar essa crença e seu sistema. E se alguém se recusa a aceitar o Islam, ainda assim, pode viver sob a proteção do seu sistema legal, ser seu súdito e possuir sua nacionalidade, conservando sua própria religião sem qualquer repressão do estado. Os objetivos desse estado derivam de sua natureza. Enquanto um estado ideológico baseado no Islam, seus objetivos são, naturalmente, os objetivos do próprio Islam. Esses objetivos não se limitam a promover suficiente paz e estabilidade para os indivíduos, nem tão somente proteger suas vidas e repelir agressões estrangeiras, mas se estendem à implantação do Islam em todas as atividades do governo e à expansão do chamado do Islam ao mundo inteiro. É dever do estado tornar possível aos indivíduos obedecerem Deus de acordo com a crença islâmica e a viverem conforme a maneira proposta pelo Islam, removendo os obstáculos que possam afastá-los desses objetivos e remover tudo que possa contradizer o pensamento do Islam, sua organização social e econômica.”

ataca a origem do Corão, sua Sagrada Escritura e a pessoa do profeta Maomé. Ora, no Islamismo identifica-se Religião e Estado. (ZILLES, 2009). Como dito, a essência do mundo de acordo com a visão xiita remete à indissolubilidade entre política, religião e arte; o que se viu ameaçado com a publicação do romance. No entanto, membros da intelectualidade muçulmana também se pronunciaram contra a condenação ao autor e a favor da liberdade de expressão; a ver:

“Matar é crime e se instigar ao assassinato como fez o aiatolá Khomeini também. Ele deve ser severamente punido por isso. Sua exortação é ofensiva ao Islã e aos muçulmanos”. Foi assim que o egípcio Nagib Mahfouz, prêmio Nobel de literatura de 1988, reagiu ao saber que o líder da revolução iraniana pretende recompensar com U$D 3 milhões a quem matar o escritor indiano Salman Rushdie, descendente de família muçulmana e radicado na Inglaterra. [...] Ontem, a União Nacional de Editores Franceses propôs uma ação comum com a União Internacional dos Editores e as editoras vinculadas à Comunidade Econômica Européia em defesa da liberdade de expressão e em desagravo às ameaças a Rushdie, considerado em documento oficial, “uma retomada ao barbarismo.” (JORNAL BRASIL, CADERNO B, 18 fev. 1989 apud OMRAN, 2006, p. 46).

A discussão acerca da identificação entre religião e Estado no Islamismo exige que se recorra a uma longa análise, todavia, este trabalho abrangerá brevemente tal ponto, a fim de apenas aclarar o conflito a que se refere a abordagem proposta.

Nesse sentido, é válido observar algumas afirmações que o autor Abdul Karim Zaidan42 tece em sua obra “O indivíduo e o Estado no Islam”. Tal obra, lançada pelo Centro de Divulgação do Islam para a América Latina, define-se com o objetivo de tratar do aspecto político da jurisprudência islâmica, e justifica-se pelo fato de que até mesmo muçulmanos têm ignorado o tema. Sob a afirmativa de que no Islã a política é parte integrante da jurisprudência islâmica – a xaria – introduz-se a obra, como segue: “O Islam não reconhece nenhum direito a César sobre os seus súditos pois, tanto César e seus súditos devem obediência e submissão à vontade de Deus em todos os aspectos de suas vidas.” (ZAIDAN, 1990, p. 6). A esse respeito, discorre Antes:

A imagem ideal do tempo de Mohamed, que teólogos islâmicos de diferentes linhas constroem, apresenta o Islã como uma unidade de língua, costume, religião, história e herança tradicional; em poucas palavras: como uma unidade clássica, ou seja, ao mesmo tempo como religião e sistema social político-estadual. Não é imaginável para os muçulmanos, nem no futuro, uma separação dessas duas esferas. Para eles, não existe uma dicotomia como há de acordo com o princípio bíblico: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22, 21). [...] Essa declaração parece tão simples quanto é problemática em sua implicação na

42 Nascido no Iraque, no momento da referida publicação, o autor era professor doutor da faculdade de

modernidade, uma vez que aqui – seguindo o exemplo europeu de secularização – a separação entre religião, por um lado, e política, direito, economia etc., por outro, foi reclamada como princípio. Todavia, também a respeito do próprio tempo de Mohamed, as coisas não são tão simples, como teólogos islâmicos querem-nos deixar acreditar. (ANTES, 2003, p. 31-32). A referida obra de Abdul Zaidan pretende legitimar a relação interdependente entre religião e estado islâmico, uma vez que a lei islâmica tem ampla abrangência, não havendo assim, de acordo com o autor, nada na vida que não esteja regulado por ela. Dessa forma, as possíveis “lutas justas” que estão na Constituição iraniana pós-revolução de 1979 estão sujeitas a interpretações variadas, visto que estão postas paralelamente a outras regulamentações que compõem a lei islâmica. Assim,

Na lei islâmica, regulamentos como os relacionados com o código penal, as obrigações de dispensar justiça entre o povo de acordo com a revelação divina, a luta pela causa de Deus e outros tais, por sua natureza, são implantados somente pelo estado, usando a força da autoridade que este tem sobre os indivíduos. (ZAIDAN, 1990, p. 13, grifo nosso).

Mais do que a legitimidade dessa interdependência em uma sociedade edificada no Islã, o que tal autor – uma dentre muitas outras vozes do mundo muçulmano – tenta justificar é a legitimidade de uma subordinação da religião frente ao estado islâmico, sob a argumentação de uma subordinação do estado frente à lei islâmica. A ver: “O poder que protege a sociedade da subversão e do desvio é o poder e a autoridade do estado. Tanto é verdade, que se diz que “Deus contém pela autoridade (do estado) aquilo que não é coibido pelo Alcorão.” (ZAIDAN, 1990, p. 18). É nesse sentido que a presente pesquisa propõe pensar a ação de Khomeini ao condenar Rushdie: uma ação política legitimada por um discurso religioso, o qual supostamente constitui o Estado que, por sua vez, garante para si o poder de interpretação.

O que Abdul Zaidan tenta justificar é, pois, uma sociedade edificada sobre alicerces islâmicos: “Não se pode fundar uma sociedade de linhas islâmicas somente com sermões e discursos; isto só é possível através da criação de um estado que use sua autoridade e poder para dirigir a sociedade na direção desejada [...]” (1990, p. 17). Dessa maneira, o estudioso iraquiano justifica a autoridade do estado como único poder capaz de proteger a sociedade da subversão e do “desvio”. Toda essa discussão é pautada no fato de que o profeta teria fundado em Medina o primeiro estado islâmico na terra, e tal junção de papéis – de líder religioso, de jurista e de chefe de estado – marcaria para sempre a fórmula correta de um território islâmico (na linguagem jurista: “Darul Islam”).

Ao se estabelecer o estado islâmico em Madina, todos os papéis se viram concentrados na pessoa do Profeta: o papel de Profeta e propagador de Deus;

o papel de chefe do estado; o papel de juiz para dispensar a justiça entre as pessoas. Dessa forma os poderes executivo e judiciário se viram combinados nele junto com o seu papel de Mensageiro de Deus e portador dos regulamentos de Deus para o povo. (ZAIDAN, 1990, p. 25).

Todavia há divergências na junção desses poderes após a morte de Maomé – o que fica claro com as questões de jurisprudência que provocaram a divisão entre sunitas e xiitas. As questões que permearam a sucessão do Profeta marcaram de forma determinante as duas linhas islâmicas; principalmente nas suas concepções jurídicas e, por conseguinte, nas suas organizações políticas. Faz-se, por isso, necessário voltar-se um pouco à história do Islã, no sentido que,

[...] o Islã se torna um objeto sociologicamente relevante no momento em que ele é assumido como um mapa cognitivo que orienta o comportamento social de indivíduos de carne e osso, um mapa que interage – passiva ou ativamente, conforme as fases históricas e as situações reais de domínio político – com o modo como “pensam” (funcionam, se organizam e se legitimam) as principais instituições nascidas no terreno muçulmano. Isto significa interrogar-se sobre as dimensões da religiosidade (experiência, prática, sistema de crenças, sentimento de pertença e formas de participação militante) bem como sobre as relações complexas entre visão religiosa, atitudes éticas e práxis de vida cotidiana e, ainda, sobre as relações entre esfera religiosa e outras esferas da vida social (da economia à política). (PACE, 2005, p. 12-13).

De acordo com Pace (2005), o Islã não faz distinção entre religião e política, entretanto, a equação religião e política (ou religião e Estado) vem a ser mais uma construção social – uma imposição feita em certas fases da história por grupos dominantes – do que essencialmente uma prática de regulação das relações entre as duas esferas. Tendo em vista que “[...] estudar o fenômeno religioso no Islã significa necessariamente manter também sob controle, e contextualmente, a dimensão política.” (PACE, 2005, p. 13), o inverso torna-se também verdadeiro; uma vez que compreender certa legitimidade de uma ação de Estado justificada por um discurso religioso – como se deu no caso Rushdie – envolve compreender os efeitos políticos de um complexo sistema de crenças. Nesse sentido, o autor analisa a construção do mito entre o Islã e o estado:

O modelo do califado – desde o modelo dos califas bem guiados dos primeiros séculos do Islã – é na verdade mais um ideal utópico do que uma efetiva realização da harmonia entre religião e política. Para sermos claros, o fator religião foi muitas vezes na caminhada histórica dos impérios e das dinastias de inspiração muçulmana um sistema de controle social cujas alavancas eram autoritariamente manobradas pelos que detinham o poder e tinham, portanto, todo o interesse em que o primado da política fosse legitimado também do ponto de vista das ciências da religião. Por isso, menos ainda que um ideal, a coaxialidade entre religião e política é em parte o produto da máquina organizacional do poder constituído. Um poder que em determinadas fases históricas chegou até o ponto de impor uma certa

linha interpretativa do Texto Sagrado. O estereótipo relativo à impossibilidade de distinguir entre religião e política, como traço característico do Islã, encobre uma realidade mais complexa: o acúmulo na história dos povos islâmicos do princípio de obediência ao Príncipe, princípio legitimado em bases religiosas. (PACE, 2005, p. 13-14).

Tem-se que muitos teólogos islâmicos, embora não sem interesse ou pressão, legitimam o poder político arraigado aos princípios da religião. E quando o fato de ser membro de um alto clã religioso garante capacidades indiscutíveis para tomada do poder – como é o caso do governo iraniano – tal legitimidade não é posta à prova senão por uma possível oposição. Nesse contexto, o fato de o Profeta Maomé ter fundado em Medina o primeiro estado islâmico é sempre lembrado como justificativa para tal critério. O filósofo Frithjof Schuon, ao definir o Profeta como homem no qual a realidade espiritual é coberta por véus humanos em razão de sua função de “legislador para este mundo”, aborda o alcance político da vida de Maomé: “[...] e a política apresenta aqui uma significação sagrada em conexão com o estabelecimento na terra de um reflexo da “Cidade de Deus.” (2006, p. 137).

A teologia islâmica defende a doutrina da revelação a partir da qual se deu a redação do Alcorão; assim, grande parte da concepção islâmica já se encontra no livro sagrado. A história do Islã conta que Deus revelou ao Profeta Maomé – o último profeta da longa corrente que se iniciou com Adão – o que queria do homem em sua condição terrena. Maomé teria selado a série de profetas e, por isso, os erros da tradição cometidos anteriormente teriam sido por ele corrigidos. Tendo em vista que para os muçulmanos o erro fatídico presente no Novo Testamento cristão foi pregar Jesus como “o Messias” e transformá-lo em “Cristo”, o profeta se diz “mensageiro” e não o “salvador”; assim, o texto proclamado ao longo de sua vida seria de autoria do próprio Deus.

As origens do Islã se acham intimamente ligadas à figura do profeta Muhammad (Maomé). Por este motivo, o islã constitui uma religião da Palavra revelada, segundo o ponto de vista de um homem de fé, por Deus a um homem, escolhido pelo próprio Deus como seu enviado. A profissão de fé para os muçulmanos contém esses dois elementos: a existência de um único Deus e a relação especialíssima que esse Deus resolveu estabelecer com um ser humano elevando-o a mensageiro seu (rasul Allah). (PACE, 2005, p. 25).

A mensagem deixada por Maomé foi, então, compilada no Alcorão pouco depois de sua morte – livro dividido em 114 suras (capítulos) organizado por um critério apenas formal, sendo as primeiras mais longas e as últimas mais curtas. Acerca da unidade clássica entre religião e sistema social político-estadual, defendida por muitos teólogos, discorre Antes:

A argumentação dos teólogos funda-se na versão do Alcorão que eles consideram única, revelada por Deus a Mohamed e, a partir de então,

pregada por ele. Eles mal levam em consideração que o Alcorão ainda não contém nenhum sistema teológico ou jurídico, mas somente elementos básicos para tal sistema. O início da história da religião do Islã mostra de forma muito clara que a partir de um mesmo Alcorão seria possível