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5. Os eventos de aquisição da escrita

5.1. O evento do crachá

No primeiro dia de aula, dia 10 de fevereiro de 2003, as crianças, ao entrar na sala, tomam os lugares nas carteiras enfileiradas, acomodam seus pertences e assumem a atitude de “esperar o que a Professora vai falar”. Observam-se olhares ansiosos, uma feição de desejo de expressar uma satisfação de estar ali, olhares salpicados de “deixa ver se conheço alguém”. Quando há um reconhecimento, um sorriso discreto surge direcionado ao reconhecido, que retribui ou evita o olhar, com timidez. A Professora apanha crachás previamente prontos para identificar provisoriamente17 a turma. Pede a cada aluno para dizer o próprio nome, para que ela o localize e lhe entregue o crachá, que tem uma estrela vermelha (ver anexo 5), distinguindo das outras turmas, que têm estrelas de cores diferentes.

Durante a distribuição do crachá, a cada nome pronunciado pela Professora, podia-se conferir nos olhos de seu dono um brilho especial. O andar da criança até à Professora denotava a segurança de que “vou tomar posse do que me pertence”. A satisfação de ver o nome estampado no peito dava um certo ar de que nada é tão estranho. Por um instante, algo inusitado ocorreu. Um aluno permaneceu sem crachá. A Professora agora se ocupava em identificar entre os crachás que sobraram, quem veio e quem não veio. Aproximou do aluno sem crachá e perguntou-lhe o nome. Ele respondeu: “Felipe“. A Professora verificou entre os crachás que sobraram e não achou o de Felipe. Procurou na lista de nomes e disse: “Mas não tem Felipe na minha lista... Então tem que procurar aonde é sua turma”.

Felipe balbuciava o seu nome, cabisbaixo, não olhava para a Professora. Antes que a Professora tomasse qualquer outra providência, ofereci minha ajuda. Fiz

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A enturmação somente ocorreria após a realização do teste de prontidão e seria instrumento de classificação dos alunos por nível de conhecimento de leitura, de escrita e de matemática. Nesse período, as professoras se revezavam nas turmas com o objetivo de levar as crianças a conhecerem todas as professoras das turmas de 1ª série. Para realizar o revezamento, as professoras trocavam, a cada dia, de crachá, pois cada sala era identificada com as cores vermelha, verde, amarela e azul.

isso por um impulso, pressentindo que a Professora iria orientá-lo a procurar sozinho seu nome nas outras salas. Senti o Felipe desprotegido e tomei a dianteira. Eu me ofereci para localizar o nome do aluno nas outras três turmas de 1a série. A Professora pediu que eu levasse o aluno comigo: “se você achar... ele já fica aonde o nome dele tá”. Passei por todas as turmas e não encontrei. Passei pela turma da professora do caso especial que tratou a situação, como se ressaltou anteriormente, valendo-se de sua condição de vice-diretora do turno da manhã. A professora do caso especial deu-me algumas informações que foram fundamentais para situar o aluno. Ela sabia que o aluno tinha uma irmã que já estudava na Escola. Informou-me o nome completo da irmã. Com essa informação, retornei à sala e me ofereci à Professora para conferir, na secretaria, se constaria algum nome que coincidisse com o sobrenome informado. Na secretaria, perguntei para a funcionária se poderia conferir nas listas algum nome com o sobrenome “tal”. Encontramos, com o sobrenome citado, o nome Maciel Felipe. O aluno não falava o primeiro nome, mas só o segundo – Felipe. Voltamos para a sala, e realmente o seu nome constava na lista da Professora e no crachá estava registrado Maciel Felipe. Maciel Felipe manteve-se calado e sujeito às idas e vindas para descobrir o seu nome. Quando o seu nome foi pronunciado na lista de chamada, lá no pátio, antes da entrada, ele atendeu e entendeu. Tanto que estava na turma certa. Mas na hora de dizer o próprio nome, pronunciou só o segundo. Quando ficou esclarecido o mal entendido, a Professora lamentou: “Não sabe nem o nome...”.

Os acontecimentos do dia posterior confirmaram o significado do crachá para os responsáveis pela organização da escola e para as professoras – o crachá possibilitaria saber para qual “sala” o aluno deveria se dirigir. A estrela colada junto ao nome indicava essa função.

No segundo dia, esse suporte identificador foi de suma importância. As professoras trocaram a cor da estrela de seu crachá e trocaram de salas. Mas as crianças, que deveriam se dirigir para a mesma sala do dia anterior, seguiram a professora do primeiro dia de aula, que estava em outra sala. Dezenas de crianças que chegaram atrasadas estavam atônitas pelos corredores. Auxiliei muita delas a encontrarem suas salas. Enquanto a professora lia os nomes da lista, muitos alunos não responderam. Na sala, havia poucas das carinhas que estiveram ali, no dia anterior, e algumas carinhas novas, que não estiveram ali antes. Voltei-me para a

professora e disse-lhe: “Olha, parece que essas crianças não estavam aqui ontem, não”. E a professora olhou e disse: “Olha! É mesmo. Tô reconhecendo que ficaram comigo ontem, lá na outra sala...”. (Dirigindo-se a esses alunos), “não é para trocar de salinha não, filhinho. Volta prá lá, onde você ficou ontem. Só a professora que vai trocar, viu? É pra todo mundo conhecer as professoras...”.

Ofereci-me para conduzir as crianças, argumentando que talvez estivesse acontecendo o mesmo entendimento com as outras professoras que estiveram naquela sala e que eu as buscaria. Pedi para ela a lista e voltei com umas cinco ou seis crianças, levando outras quatro. Até meia hora após o início da aula, foi um entra-e-sai de crianças e a incompreensão do que estava acontecendo de muitas que chegavam na escola, depois.