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Capítulo II: O fantástico-maravilhoso e as representações coletivas na visão de

1. O fantástico-maravilhoso

Antes de discorrermos sobre as visões de mundo do homem medieval no século XIII-XIV, vamos apresentar alguns conceitos e categorias que definem a metodologia a ser utilizada no estudo de uma obra literária, especialmente tendo em vista que se trata de analisar a obra como produto de um tempo especifico, no qual o pensamento estava viajando entre o natural e o sobrenatural.

O estudo de uma obra literária implica identificar o seu gênero, ou seja, em que classificação ela se insere. Por meio disso, é possível perceber as semelhanças e diferenças entre uma obra e outra. Para Todorov (2006) tem-se falado muito da inutilidade da classificação dos gêneros, como se isto nos impedisse de destacar as distinções entre uma e outra obra. Esse autor encontra outra maneira de mostrar a importância da classificação das obras literária:

não reconhecer a existência dos gêneros equivale a pretender que a obra literária não mantenha relações com as obras já existentes. Os gêneros são precisamente esses elos mediante os quais a obra se relaciona com o universo da literatura. (TODOROV, 1981, p.7)

Analisando a Divina Comédia podemos observar que Dante Alighieri leu e interpretou diversas obras que estavam disponíveis no Ocidente europeu. Estas obras influenciaram a sua opção literária e propiciaram novas ideias sobre aquilo que ele buscava compreender. A sua obra possui uma história que engloba diversos personagens históricos que estão localizados no pós-morte; com base nisso, podemos afirmar que Dante leu as obras destes personagens ou ouviu algo sobre eles. Nesse sentido, ele nomeia sua obra como Commedia, uma referência ao gênero escolhido.

O gênero sustenta-se em uma representação da obra literária (TODOROV, 1981), que é caracterizada por três aspectos: verbal, sintático e semântico. O

primeiro é estrutural e está relacionado com as frases do texto, mas também com aquilo que este emite quando é lido. O segundo é a composição da obra em termos de capítulos e de formas textuais. O terceiro é o significado que a obra nos transmite, o modo como a interpretamos. Ao pensar nestas categorias, Todorov apresenta três gêneros literários: o estranho, o fantástico e o maravilhoso.

Caracterizamos um texto como fantástico quando, ao terminar de lê-lo, nos perguntamos: isto é real ou ilusão? Com isso, entramos no que Todorov (1981) denomina de ―coração do fantástico‖: o tempo da incerteza, quando o próprio personagem da trama não define se a situação que ele vivenciou fez parte do mundo real ou se havia algo de diferente.

A compreensão deste gênero ficará mais plausível com a seguinte situação: a história da obra se passa em um mundo que é o nosso, com as nossas leis e explicações do Cosmos, mas, no decorrer da narrativa, surge algo incompreensível e difícil de explicar pelas leis deste mundo humano e natural. Se a história mantiver este sentimento de incerteza sem dar explicações plausíveis, fundadas nas leis do mundo real, então faz parte do gênero fantástico.

O fantástico implica pois uma interação do leitor com o mundo dos personagens; define-se pela percepção ambígua que o próprio leitor tem dos acontecimentos relatados. Terá que advertir imediatamente que, com isso, temos presente não tal ou qual leitor particular, real, a não ser uma ‗função‘ de leitor, implícita ao texto (assim como também está implícita a função do narrador). A percepção desse leitor implícito se inscreve no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos dos personagens. (TODOROV, 1981, p.19)

Caso, no decorrer da narrativa, os acontecimentos ―anormais‖ são explicados com base em um sentido racional e real, então a história pertence ao gênero do estranho. No entanto, se a incerteza for explicada por meio de eventos sobrenaturais e surreais, a história pertence ao gênero do maravilhoso. Ainda segundo Todorov (1981), para classificar os gêneros de uma obra literária, é necessário conhecer aqueles que lhe são próximos; neste caso, o fantástico, o maravilhoso e o estranho. Ele afirma que estes gêneros podem ter grandes proximidades e classifica-os em: estranho-puro; fantástico-estranho; fantástico-puro; fantástico-maravilhoso; maravilhoso puro.

Do estranho-puro faria parte uma história que é explicada pelas leis do nosso mundo real, mas que produz acontecimentos estranhos, ―incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos e que, por esta razão, provocam no personagem e no leitor uma reação semelhante a que os textos fantásticos nos voltou familiar‖ (TODOROV, 1981, p.26). Neste sentido, o estranho-puro é explicado pelo gênero que lhe é próximo, o fantástico.

No caso do fantástico-estranho, a narrativa produz no leitor um sentimento de incerteza decorrente de relatos que lhe parecem sobrenaturais, mas que, ao final ou no decorrer da história, são explicados por meio da razão. É por isso que, por um pequeno período de tempo, o leitor e o personagem acreditam na explicação sobrenatural (TODOROV, 1981).

Já o fantástico-puro é o da história que provoca a incerteza em seu leitor e no personagem do início ao final da narrativa. Neste caso, ao terminar de ler, o leitor estará livre para pensá-la e interpretá-la. Assim, deste gênero faz parte uma obra que é finalizada com um aspecto de incerteza, pois não se sabe ao certo se os acontecimentos relatados foram produzidos por eventos sobrenaturais ou racionais e reais.

Este momento de incerteza persiste também no fantástico-maravilhoso, mas com uma peculiaridade: os acontecimentos são explicados por meio do sobrenatural e do sublime. Por um momento, o personagem fica confuso e não entende os acontecimentos produzidos ao seu redor; no entanto, no final da história, os eventos serão explicados e o sobrenatural passará a ser real para o personagem. Este sentimento é produzido pela inter-relação entre o leitor e o personagem. Afirma Todorov:

Encontramo-nos no campo do fantástico-maravilhoso, ou, dito de outra maneira, dentro da classe de relatos que se apresentam como fantásticos e que terminam com a aceitação do sobrenatural. Estes relatos são os que mais se aproximam do fantástico puro, pois este, pelo fato mesmo de ficar inexplicado, não racionalizado, sugere-nos, em efeito, a existência do sobrenatural. O limite entre ambos será, pois, incerto, entretanto, a presença ou ausência de certos detalhes permitirá sempre tomar uma decisão. (TODOROV, 1981, p.29)

Já no maravilhoso-puro os acontecimentos serão sobrenaturais e não despertarão no personagem nenhum sentimento de incerteza; os eventos serão a própria realidade da história, algo que, para o leitor, não é explicado pela razão: ―(o maravilhoso [...] terá que caracterizar-se exclusivamente pela existência de feitos sobrenaturais, sem implicar a reação que provocam nos personagens.)‖ (TODOROV, 1981, p.27).

Ao adentrar o mundo do personagem Dante na Divina Comédia, notamos que, em alguns momentos, os eventos acontecem de forma estranha e duvidosa, mas, no decorrer da narrativa, eles são explicados pelo sobrenatural. Dessa forma o personagem da trama se apropria das explicações dadas e passa a compreender aquele mundo como parte do seu, a exemplo da seguinte passagem da obra:

Quando eu já para o vale descaído tombava, à minha frente um vulto incerto que por longo silêncio emudecido

parecia, irrompeu no grão deserto: ‗Tem piedade de mim‘ gritei-lhe então,

‗quem quer que sejas, sombra ou homem certo‘. (Inf. I, 61-66)

É nesse momento que Virgílio se apresenta ao poeta, cujo formato e origem só são explicados quando o personagem entra no primeiro espaço do Além. Virgílio se apresenta, então, como um espírito preso às leis do Inferno, explicação na qual encontramos o maravilhoso. Em outras partes do poema, Dante desmaia e acorda sem saber o que houve ou faz perguntas às almas sobre os locais e as leis de onde estão. Além disso, justificam o maravilhoso os monstros mitológicos descritos pelo poeta, a exemplo de Gérion (Inf. XVII), Nesso (Inf. XII), das Hárpias (Inf. XIII), do Minotauro (Inf. XII)33, dentre outros.

É preciso saber também que o conceito do maravilhoso não se refere à simples caracterização de um gênero literário: é um conceito trabalhado pelos medievalistas e utilizado por Le Goff.

A partir deste momento, apresentaremos o homem medieval, explicando como ele compreendia o maravilhoso. Explicaremos, também, o conceito de simbologia

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utilizado nesta pesquisa para investigar a representação do Inferno. Isto é necessário para entender a Divina Comédia como uma obra que resulta de um contexto no qual os ambientes do pós-morte descritos por Dante eram tidos como reais.