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O feminismo “bem comportado”: algumas considerações

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O termo “bem comportado” tinha como fundamentação os métodos de reivindicação das feministas, sempre dentro da lei e nunca por meio violento. É importante considerar que essa mentalidade era própria da época. Elas lutavam dentro das suas condições de sociedade e vida, refletindo mudanças, mas também se reafirmava ideias conservadoras.

10 Cf. MICHELET, Jules. A Mulher. São Paulo: Martins Fontes, 1995. A obra foi escrita em 1859 e tinha

por meta questionar a miséria que a sociedade industrial estava impondo à mulher e às crianças, destruído a imagem que a mesma tinha no período anterior de valorização na construção da família, dos filhos e no amor ao marido, onde, segundo a época era seu lugar de felicidade, não nas fábricas sujas e exploradoras de seu trabalho mal remunerado, já que também era desqualificada para o trabalho a que estava sendo imposta pelos legisladores da época.

11 Sobre outras organizações anteriores à Federação Brasileira, ver o capítulo 1.

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Uma característica marcante que a FPPF corroborava com a federação nacional foi as formas de reivindicação. Edwiges de Sá Pereira13 afirmava que vinha “de longa data pugnando pelos ideais do feminismo sadio, realizador, moderado” (A campanha feminista no Brasil. Diario de Pernambuco. 19 jul. 1931, p. 2). Esse feminismo “moderado” também era intitulado pelas autoras como “feminismo bem comportado”14, que tinha a característica de atuação sempre dentro da lei, nunca fora

dela.

De acordo com Dulce Chacon, o feminismo de Edwiges de Sá Pereira era “ciosa de uma ética fundamentalmente feminina, sem exageros nem injúrias” (Arquivos pessoais, Edwiges de Sá, FUNDAJ). Segundo a própria Bertha Lutz, sobre o procedimento feminista:

Venho propor-me fazer um ensaio de fundação de uma liga de mulheres brasileiras. Não proponho uma associação de “suffragettes” para quebrar as vidraças da Avenida, mas uma sociedade de brasileiras que compreendessem que a mulher não deve viver parasitariamente do seu sexo, aproveitando os instintos animais do homem, mas que deve ser útil, instruir-se e a seus filhos, e tornar-se capaz de cumprir os deveres políticos que o futuro não pode deixar de repartir com ela. Assim deixariam de ocupar sua posição social tão humilhante para elas como nefasta para os homens, e deixaria de ser um dos pesados elos que atam o nosso país ao passado, para se tornarem instrumentos preciosos ao progresso do Brasil. (HAHNER, 1981, p. 140)

Essa característica foi por muitos anos alvo de críticas das estudiosas, pois se acreditava que as militantes não contestavam as desigualdades de gênero, mas, na verdade, apenas as modernizavam. A visão de um feminismo “bem comportado” estava relacionada à suposta luta que visava prioritariamente ao voto feminino, sem criticar a posição masculina na política, gerando repreensões de algumas pesquisadoras, como Branca Moreira Alves (1980), June Hahner (1981) e Susan Besse (1999).

Alves critica primordialmente a ausência da luta feminista em contestar a relação patriarcal15 e o poder exercido pelo homem no âmbito familiar. A cientista

13 Fundadora da FPPF.

14 Soihet lembra que a pressão da Federação era feita de forma comedida, “bem educada”, fazendo

parte da própria estratégia. O objetivo final seria a conquista da cidadania política feminina, ocasionando outras conquistas futuras. Branca Moreira Alves (1980, p. 96) considera que essa tática de pressionar os membros do Congresso foi uma herança do Partido Republicano Feminino.

15 Apesar de evitarmos o conceito, foram muito utilizados nos anos 1980 e 1990 por diversos

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política afirma que a submissão da mulher é construída por meio da ideologia do sexo dominante, que atribui a ela o mito da dona-de-casa e mãe de família.

O debate sufragista não ultrapassou a ideologia dominante, mantendo intacta a imagem da mulher e de sua missão primordialmente feminina de mãe e dona-de-casa, e revelando-se incapaz de criticar as relações econômicas e ideológicas que fundamentam a inferiorização. (ALVES, 1980, p. 18)

Um ponto importante discutido por Alves é a ideia de família no âmbito capitalista, pois acreditava que a organização da família é a contradição principal nas relações de sexo. Ela considera, portanto, que, “sem a reformulação da organização da família, todas as mudanças conseguidas na condição da mulher serão meras reformas que não extinguirão a base a qual se sustenta a sua subordinação” (ALVES, 1980, p. 46). É importante ressaltar que a sua obra traz a questão do feminismo em uma narrativa marxista.

Já Hahner afirmou que as feministas desejavam igual participação com os homens no âmbito político, deixando claro, no entanto, que não haveria dano em suas funções na vida doméstica. A historiadora brasilianista corroborava com o pensamento de Alves de que essa estrutura patriarcal deveria ser contestada. Para Hahner (1981, p. 114), ainda, “as líderes do movimento sufragista brasileiro não expressaram desejo significativo por uma reestruturação radical do sistema político da nação, muito menos de sua sociedade. Essas mulheres procuraram juntar-se ao sistema como participantes iguais”, uma crítica ao conservadorismo da FBPF, que não questionava a formação patriarcal da sociedade brasileira.

Besse considera que as feministas, ao modernizarem a desigualdade entre os gêneros, legitimaram a ordem burguesa. Pois “embora a FBPF desempenhasse um papel importante na conquista de vitórias essenciais para as mulheres, nunca conseguiu provocar as mudanças sociais e culturais de longo alcance previstas por suas líderes” (BESSE, 1999, p. 183).

Para essas autoras, portanto, a busca “bem comportada” pelo voto, sem questionar de forma radical a ideia patriarcal de família, estava ligada não só à tática16

16 Essa ideia de tática é desenvolvida, sobretudo, por Rachel Soihet nas suas obras que tratam sobre o

feminismo dos anos 1930. Na sua interpretação, a tática é subterfúgio “a sujeitos submetidos a relações desiguais de poder, que percebem sua incapacidade, num dado momento, de questionarem as prerrogativas da vontade dominante” (2013, p. 103).

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traçada pelo feminismo da FBPF, mas pela consciência da sua limitação e pelo tradicionalismo de algumas feministas.

Esse olhar crítico foi típico dos anos de 1980 e 1990, em que a ideia de família patriarcal era o pecado original da inoperância feminina. E como o feminismo não contestava a “família patriarcal”, as feministas foram consideradas conservadoras.

Contudo, para a época, a luta pelo voto era claramente uma atitude radical. Pensar o feminismo daquele período com olhos do feminismo atual, certamente seria considerá-lo conservador, mas incorreríamos no pecado do anacronismo (SOIHET, 2013, p. 103). As táticas da Federação iam desde pressionar os políticos no Congresso e fazer pronunciamentos públicos, sobretudo utilizando a imprensa escrita, até buscar apoio nas lideranças do país (SOIHET, 2000).

Nesse período (começo do século XX), existia ainda o feminismo (dito) anarquista e o feminismo difuso. O anarquista era formado, grosso modo, por imigrantes como italianos, portugueses e espanhóis. O pensamento anarquista foi gestado nas incipientes fábricas do Rio e de São Paulo. O movimento foi iniciado pelas mulheres que participavam de grupos anarquistas e que percebiam (e sofriam) a opressão não só burguesa, mas, também, a opressão masculina (PINTO, 2003).

A União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas do Rio de Janeiro, manifestantes próximas ao anarquismo, apontava para a “ideia da impossibilidade de se chegar à igualdade sem o reconhecimento da desigualdade particularizada da mulher na fábrica” (PINTO, 2003, p. 35). Esta foi, provavelmente, a primeira manifestação desse cunho no país.

Já o feminismo difuso não estava representado em núcleos de coletividade. De acordo com Céli Pinto, tais mulheres tinham “um campo mais vasto de questões, defendem a educação da mulher e falam em dominação dos homens e no interesse deles em deixar a mulher fora do mundo público”. Teve um número pequeno de participantes, sendo considerada a “face menos comportada do feminismo” (PINTO, 2003, p. 15).

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