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O fenômeno da violência contra as mulheres na mídia brasileira

2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, VIOLÊNCIA E MÍDIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA: INTERSECÇÕES POSSÍVEIS

2.3 O fenômeno da violência contra as mulheres na mídia brasileira

A imprensa tem noticiado casos de violência contra mulheres com bastante recorrência, tanto em nível nacional quanto regional. Na última década se intensificou a publicização de casos de violência contra mulheres pela mídia impressa, televisiva e virtual. Todos os dias, basta abrir os jornais ou ligar a televisão, somos bombardeados com inúmeros casos agressão, tentativas de homicídio e homicídio praticados contra mulheres.

Em virtude da escassez de dados a este respeito, não há condições de afirmar com margem de certeza se houve um crescimento em termos da quantidade de notícias sobre este tipo de violência. Aparentemente, a difusão de informações pelos websiters e pelas redes sociais tem impactado para que a violência contra as mulheres ganhe visibilidade. Uma das hipóteses que abriga o pressuposto da maior divulgação de notícias sobre violência contra mulheres é a recente popularização do feminismo, que teve nas plataformas digitais de comunicação e no ativismo digital um dos principais meios de difusão de suas ideias.

Apesar disso, a abrangência da cobertura midiática ainda se restringe muito aos casos de violência doméstica e familiar, o que acaba contribuindo para a construção de um imaginário social específico, no qual o alvo da violência é associado a mulheres em relações conjugais.

A Lei Maria da Penha em seu art. 8º prevê como uma das ações da política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher:

o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal (BRASIL, 2006).

Apesar de ser um grande avanço para as políticas de enfrentamento à violência, a Lei Maria da Penha reafirmou um modelo voltado à proteção de mulheres nas suas relações de intimidade, ao propor medidas protetivas voltadas apenas para os casos de violência doméstica e familiar, entendida como atos praticados no âmbito da unidade familiar, da unidade doméstica e nas relações íntimas de afeto12. De certo modo é este tipo de violência que ganhou maior visibilidade nas últimas décadas pelos meios de comunicação. Outro aspecto que merece atenção é o enquadramento da cobertura midiática, em que a maioria dos casos é tratada sob o enfoque individual e policial. É sobre essa base que as representações sociais ao mesmo tempo em que expressam, constroem os sentidos da violência contra as mulheres.

Na pesquisa Balas Perdidas – Um Olhar sobre o comportamento da imprensa

brasileira quando a criança e o adolescente estão na pauta da violência, publicada pela

ANDI em parceria com Ministério da Justiça e Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente (2004), verificou que em 65% dos casos não é mencionada a classe social das vítimas, e em 79% das notícias não mencionam a classe social dos agressores. A ausência de caracterização das posições sociais que ocupam os envolvidos em notícias sobre violência também foi verificada na pesquisa O Grito dos Inocentes – os meios de

comunicação e a violência sexual contra crianças e adolescentes (2003), que

acompanhou a publicação de notícias durante 18 meses envolvendo crianças e adolescentes enquanto vítima, agressores ou testemunhas de crimes sexuais. Em 70% dos textos jornalísticos não há indicação da classe social da vítima e em 53% não mencionam a classe social do agressor. Quanto à religião, raça/etnia, menos de 3% dos textos são mencionados.

A omissão pela mídia dos marcadores sociais da diferença (raça/etnia, gênero, classe) dos atores envolvidos no fato noticiado é comum também nos casos de violência de gênero contra as mulheres. O Brasil hoje lidera o ranking anual de assassinatos de pessoas trans. De acordo com a Transgender Europe, ONG dedicada a promoção dos

direitos das pessoas trans, no ano de 2015 foram registradas 123 mortes, correspondendo a 42% dos 295 casos registrados no mundo. Apesar desta realidade extremamente preocupante, a cobertura jornalística sobre casos de violência contra pessoas trans continua sendo escassa.

Do mesmo modo, a violência sofrida por mulheres negras e aquelas pertencentes a classes mais empobrecidas é menos divulgada ou a cobertura do acontecimento é breve, com poucas informações sobre o contexto do fato. Ainda assim, quando estes casos tomam corpo no noticiário brasileiro, raramente os marcadores sociais são mencionados como categorias importantes para compreensão das complexidades sobre a violência de gênero contra as mulheres. A maior parte dos casos de violência contra mulher que tem intensa repercussão mídia envolvem pessoas com maior poder econômico e status social (BLAY, 2003).

Aquilo que é considerado valor-notícia13 para este tipo de violência, ainda partindo do cenário mais otimista em que a imprensa vem constantemente noticiando estes casos, é relacional; ou seja, depende dos contextos em que estão inseridos os atores em questão. Com base nessas desigualdades de gênero, raça/etnia e classe (para citar apenas algumas categorias) a mídia vai construindo a realidade.

A utilização do termo passional ainda é comum, embora as feministas tenham se levantado contra a utilização desse argumento para explicar a violência contra as mulheres ao menos desde a década de 1980 no Brasil (SOUZA&OLIVEIRA, 2015). A “recorrente dramatização romântica do amor passional, sobretudo na televisão e no rádio, em que realidade e imaginário se retroalimentam” apontam para um cenário paradoxal em que rupturas e permanências na forma da cobertura midiática coexistem (BLAY, 2003, pag. 96). Estes meios de comunicação reatualizam a antiga cultura de responsabilização da vítima pela violência, reiterando estereótipos.

A mídia, grosso modo, pode funcionar como um termômetro para medir a persistência de um modelo rígido e hierarquizado dos papéis de gênero, em que a violência contra mulheres é naturalizada, pois ao veicular uma notícia, ela institui aquilo que existe e aquilo que não existe e “dá conotação valorativa a realidade existente” (GUARESCHI, 2013, P.35). Como já foi afirmado nesta pesquisa, a visibilização da

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Valor-notícia é um conceito utilizado por jornalistas para designar um componente da noticiabilidade de um acontecimento. Para que um fato vire notícia é necessário que o jornalista realize uma avaliação na qual se perguntará: quais acontecimentos são suficientemente interessantes para ser transformados em notícia?.

violência contra as mulheres se intensificou na última década pela imprensa brasileira. Por outro lado, questiona-se qual o perfil dessas mulheres agredidas e como os casos são relatados. Esta interrogação está apoiada nos estudos feministas que criticaram a suposta universalidade contida na categoria mulher por ocultar a ampla diversidade de mulheres e as desigualdades que vivenciam de acordo com seus contextos e marcadores sociais específicos. Como os meios de comunicação têm tratado essas diferenças? Será que a morte violenta de mulheres negras é menos divulgada? Como são relatados os casos de homicídio de mulheres? Quais casos ganham maior visibilidade?

Essas são apenas algumas questões para provocar o leitor neste tema pouco aprofundado tanto no âmbito acadêmico quanto na implementação de políticas públicas. A mídia tem o poder de dizer o que é a violência, dar valor positivo ou negativo a ela, por isso no campo da luta por direitos das mulheres esta não seria uma pauta secundária, mas crucial para promover maior igualdade de gênero na sociedade brasileira.