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3. A MIGRAÇÃO HUMANA

3.3 O FENÔMENO DAS MIGRAÇÕES NO BRASIL

Como já abordado na introdução, o Brasil é um país constituído historicamente por migrantes, tendo, atualmente, migrantes de diversas nacionalidades. Portanto, no que diz respeito aos refugiados no país, conforme um levantamento feito pela Secretaria de Justiça e Segurança Pública (2018), no ano de 2018, haviam 11,231 mil refugiados reconhecidos no Brasil e 161,057 mil solicitações de reconhecimento em trâmite, principalmente provenientes da população dos países da Venezuela (61.681), Haiti (7.030), Cuba (2.749) e China (1.450). Segundo Pereira (2019), embora se reconheça o número significativo de solicitações de refúgio no país, dizer que o Brasil se encontra vivenciando uma crise migratória é uma grande falácia, já que mundialmente “existem países com dimensões territoriais muito menores que o Brasil, e economicamente muito inferiores a nós, reconhecendo um número muito maior de refugiados em seu território” (PEREIRA, 2019, pg. 66-67).

32 A condição de vida estaria vinculada ao acesso aos recursos básicos necessários para uma

qualidade de vida, como por exemplo, alimentação, moradia, entre outros (MARTINELLI, 1994).

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Conforme Martinelli (1994), o modo de vida está ligado à experiência social dos sujeitos, ou seja, a forma como esses se inserem dentro de uma determinada realidade.

Destaca-se, também, que, ainda que o país tenha essas solicitações, não significa que o CONARE conceda o status de refúgio a todas essas nacionalidades. Assim, no que tange aos haitianos, por exemplo, devido ao grande fluxo de pedidos e ao não reconhecimento desses sujeitos como refugiados pelo CONARE, o país adotou medidas que possibilitam a sua proteção. Estas serão abordadas no capítulo 04.

Sobre o número de imigrantes, no ano 2017, a Polícia Federal registrou a entrada de 103.068 imigrantes com visto de residente, permanente e temporário no Brasil, vindos principalmente da Venezuela, Haiti, Senegal, Bolívia e Colômbia (POLÍCIA FEDERAL, 2017). Já no ano de 2018, a polícia estipulava que havia cerca de 750 mil estrangeiros no país (UOL, 2018).

Para a compreensão desse fenômeno das migrações no Brasil, Zapata e Guedes (2017) citam algumas explicações para o aumento dessa taxa, nos últimos anos:

[...] a atuação do país (Brasil) como líder da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) desde 2004; endurecimento das políticas migratórias nos EUA e na República Dominicana (destinos tradicionais dos haitianos); e, mais recentemente, a visibilidade midiática do Brasil como anfitrião da Copa Mundial de Futebol e dos Jogos Olímpicos o que favoreceu a construção de uma imagem internacional do país como uma nova terra de oportunidades (p. 08).

Com isso, a visão positiva internacional gerada por ações políticas adotadas pelo Brasil nos últimos tempos, em conjunto com o endurecimento das políticas migratórias de países historicamente reconhecidos por receberem imigrantes, refugiados, apátridas e asilados políticos, são consideradas como as maiores causas para o favorecido no fenômeno da ampliação de movimentos migratórios para o Brasil. Complementando, um dos profissionais entrevistados refere que a Copa do Mundo FIFA ocorrida no Brasil, no ano 2014, os Jogos Olímpicos, em 2016, o Encontro Mundial dos Jovens Católicos, em 2012, e a inserção do país no mercado internacional – sendo considerado uma das principais economias mundiais – têm sido outros exemplos que interferiram para esse cenário, visto que possibilitaram maior visibilidade do Brasil para outros países:

As exportações, o Brasil começou a ter uma postura diferente no mercado internacional, dobrou 5 vezes para os países que nunca havia exportado, para a China, os islâmicos, e isso fez crescer. Depois internamente o Brasil

teve a copa do mundo, o encontro mundial dos jovens católicos em 2012. Só naquela época 5.000 ficaram no BR, vieram da África e ficaram aqui. Depois tiveram as olimpíadas. Então houve fatores externos que bloqueiam e eles preferem vir para cá. Segundo, houve um crescimento da imagem do BR para o exterior e terceiro, isso que é muito forte, a população começa a decrescer significantemente na região sul. (PROFISSIONAL 01)

Azevedo et al. (2017) salientam, também, que a existência e a ampliação de um arcabouço legal que garante o maior acesso aos direitos sociais e a circulação de migrantes entre os Estados brasileiros, com a liberação de vistos de refúgio e os humanitários, de residência permanente, provisória e temporária, tem proporcionando também a atratividade desses segmentos populacionais ao país.

Apesar de esses eventos e as modificações na legislação sejam pontos positivos, entende-se que essa visão promove um olhar romantizado sobre a vinda dos migrantes ao Brasil, através da construção de uma identidade do país como um garantidor de direitos, pela parte jurídica, e acolhedor pelo aspecto dos eventos e programas realizados, ofuscando o caráter dialético e contraditório que também existe por trás da acolhida de migrantes. Para exemplificar, conforme apontado por um dos profissionais, em alguns casos, o aumento do fornecimento de vistos no país esteve atrelado aos próprios interesses econômicos dos capitalistas brasileiros, e não pela compreensão da migração como um direito:

Eu queria te dizer mais uma coisa, o porquê esses migrantes começaram a vir para cá, especialmente à região Sul, Paraná, Santa Catarina e RGS. Esse é um dado que se tu pegar um censo de 2000, a taxa de crescimento da população dos três estados era 1.22. No censo de 2010, a taxa de crescimento da população do RGS era 0.49 e o PNAT do ano passado já estava de 0.29%. Então o que aconteceu, nesse período de 2010 para cá o setor de produção tinha que buscar trabalhadores de 100 km e aí com isso, eles pressionaram o Ministério de Relações Exteriores e o de Justiça a flexibilizar a entrada. Já havia sido flexibilizada com a do visto humanitário do Haiti (PROFISSIONAL 01)

Dessa forma, fica evidente que a flexibilização dos vistos, principalmente aos imigrantes que vieram para a região Sul, foi intencionada pelo setor da produção que necessitava de mão de obra através de outros meios, além dos trabalhadores nacionais, e não por compreenderem a necessidade existente de se acolher mais migrantes devido às situações de extrema vulnerabilidade social e risco que vivenciam, em seus países de origem. Nesse aspecto, Mazza (2015) afirma que:

O imigrante muitas vezes é definido como uma força de trabalho provisória vinculada à expansão da produção que necessita de um estoque de mão de obra. A manutenção da condição de provisoriedade possibilita que as soci- edades receptoras calculem o tempo, os custos e as vantagens da imigra- ção em decorrência das instabilidades das formas de exploração e regula- ção da ordem produtiva. Neste sentido, a estadia autorizada ao imigrante está vinculada ao trabalho, única razão de ser que lhe é reconhecida pela lógica econômica da sociedade receptora” (MAZZA, 2015, p. 239-240). Tal questão também está relacionada à precarização estrutural do trabalho, que vem sendo construída no âmbito global e está atrelada à reestruturação produti- va do capital. Ela se utiliza como forma de geração da mais-valia de uma nova mor- fologia do trabalho, que “abrange os mais distintos modos de ser da informalidade, ampliando o universo do trabalho invisibilizado” (ANTUNES, 2018, p. 67) e expande a exploração do trabalhador mediante contratos provisórios, flexíveis e terceirizados para todos os níveis da classe trabalhadora, seja formal ou informal.

A partir dessa tendência, considera-se que essa conjuntura de trabalho precá- rio não condiz, especificamente, com a realidade dos estrangeiros, mas sim, com toda a sociedade brasileira e mundial. Todavia, há de se salientar que há uma gran- de diferença no tipo de precarização de trabalho vivenciado pelo migrante, devido ao seu contexto, em comparação com o brasileiro ou com as outras nacionalidades dos países em que habitam. Assim, o migrante permanece em uma situação trabalhista pior do que a da população daquele local. Como apontado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), sobre a situação dos migrantes no Brasil, há “diversos relatos de discriminação, exploração, trabalho escravo, trabalho infantil, fraudes trabalhistas, falta de igualdade de oportunidades e xenofobia” (ZERO HORA, 2018, sem pági- na)34.

Outro fator trazido pelos profissionais para a vinda dos migrantes ao país é a rede de contatos aos quais eles têm acesso anteriormente à saída de seu local de origem. Isso permite indicações e referências a respeito do Brasil e de fontes de a- poio para a sua chegada no país:

Geralmente, o migrante chega por sua rede, sua rede de contato, familiar, de amizade. Agora por causa de redes sociais, por amizade de internet eles

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Matéria do Jornal Zero Hora. “Procuradores do trabalho relatam casos de exploração de venezue- lanos no norte do Brasil”. Publicada em: 29/09/2018. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2018/09/procuradores-do-trabalho-relatam-casos-de- exploracao-de-venezuelanos-no-norte-do-brasil-cjmmtwy5200w501piq13ghcpo.html. Acesso em: a- gosto de 2019.

vêm através de uma indicação, então houve essa mudança de característi- ca que essa discussão se tornou mais latente, mais importante (PROFIS- SIONAL 02)

Sobre isso, a rede social primária e secundária se constitui como algo funda- mental para a inserção, suporte e adaptação à nova realidade do migrante. Além disso, Zamberlam (2004) também revela que as modificações no sistema de teleco- municações e a ampliação no uso e acesso às novas tecnologias têm proporcionado o aumento da informação sobre o país de interesse para a migração, bem como pa- ra a construção de redes de migrantes para o acolhimento desses sujeitos, antes da saída do local de origem, o que facilitam a escolha para os países de acolhida.

Outro elemento de atração, relatado pelos profissionais (especialmente vincu- lada ao Estado do Rio Grande do Sul), foi a localidade e os postos de trabalho para aqueles migrantes que não possuem uma qualificação profissional:

Eles sabiam que os postos de trabalho são no setor de produção, que é mais seguro e rentável, então era a agroindústria do porco, a metalurgia, in- dústria de móveis, construção civil.... por que eles vêm para cá? Porque a- qui eles vão para o setor de prestação de serviços, como faxina, limpeza, frentista. mas que não exige a qualificação que lá em cima exige. Segundo, eles vieram para cá em função dos postos de trabalho (PROFISSIONAL 01) Também a gente tem que entender que muitos migrantes veem o Brasil como um país de passagem para outros países, e isso também aconteceu na interiorização, eles vêm da Venezuela passaram para Roraima, da Ro- raima para o Rio Grande do Sul e no Rio Grande do Sul pensando no Uru- guai e na Argentina (PROFISSIONAL 03)

Sendo assim, de acordo com os participantes, a localização terrestre do Rio Grande do Sul (que é identificado como um local de passagem para a ida a outros destinos do migrante), bem como a caracterização da produção agroindustrial como rentável e segura para quem não possui qualificação, são itens importantes que chamam a atenção do migrante para o estado. Todavia, no que tange à inserção no mercado de trabalho, há de se questionar se a vinda do migrante ao Rio Grande do Sul está relacionada ao seu interesse pelos postos de trabalho existentes no local ou se é porque não há outras regiões no país que tenham vagas de empregos disponí- veis para os sujeitos que não possuem a especialização necessária exigida, sendo o estado a única opção viável para a sua inclusão no mercado de trabalho. Dessa forma, a vinda do migrante à região Sul pode ser ocasionada pela falta de possibili- dades e de oportunidades de capacitação do migrante no país, e não propriamente pelo tipo de setor de produção existente.

Embora o Brasil se apresente como um país de possibilidades para os mi- grantes, tendo se tornado um local de escolha para sua vinda, destaca-se que a rea- lidade vinculada às múltiplas expressões da questão social existentes dentro da rea- lidade do país, em conjunto com as particularidades atreladas ao fenômeno da mi- gração, desencadeiam a continuidade de violações de direitos humanos a esse segmento. Da mesma forma, resultam em processos de ruptura e resistência a elas, como será visto, no próximo subitem.

3.4 AS MÚLTIPLAS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL NO FENÔMENO DA