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O FICINAS, BIBLIOTECAS E LIVROS: A NOBILITAÇÃO DO OFÍCIO

MUTUALISMO E POLÍTICA NO SEGUNDO REINADO

O FICINAS, BIBLIOTECAS E LIVROS: A NOBILITAÇÃO DO OFÍCIO

As mutuais de ofício estabeleciam algumas finalidades além dos socorros contra os incertezas que frequentemente comprometiam a condição física dos trabalhadores. Entre os estatutos arrolados no quadro I, observa-se que as demandas principais eram as ajudas pecuniárias em casos de moléstias, invalidez, enterro, prisão, acidentes, velhice, entre outros. No entanto, encontramos algumas sociedades cujos objetivos se voltavam, também, para a

84 Idem. Ibidem. (Itálico meu). 85 André Gueslin, op. cit., p. 160.

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construção de bibliotecas, publicação de jornais, montagem de oficinas, premiação por inventos, incentivo à instrução, arrumação de emprego e distrações em geral. A ocorrência de tal fato prevaleceu entre mutuais cujos ofícios alcançaram maior grau de organização institucional ao longo da segunda metade do século XIX.

É o que se pode observar, por exemplo, entre os artífices que se dedicavam ao fabrico e comércio de artefatos de ouro e prata, denominados ourives. Esses sujeitos se empenharam na organização de uma sociedade de socorros mútuos na Corte,86 e assim como as demais associações voltadas para a prática da ajuda mútua, a entidade previa auxiliar:

[...] a todos aqueles [...] membros a quem a fortuna adversa tenha colocado em más circunstâncias, quer por efeito de enfermidades e idade avançada que os inabilite para o trabalho, quer por infortúnios casuais merecedores de auxílio, reembolsável ou não, a juízo da diretoria.

Prestar socorros, quando possível, às viúvas ou órfãos dos sócios que, no futuro, deles venham carecer, regulados pela forma prescrita nos estatutos.87

Além disso, a sociedade dos ourives preocupava-se em “promover o melhoramento da arte e comércio da ouriversaria”.88 Objetivo este que foi enaltecido por Bernardo de Souza Franco, Marquês de Olinda e Visconde de Sapucaí em parecer lavrado na Seção Império do Conselho de Estado em 15 de fevereiro de 1864, logo na abertura do veredito, quando afirmava

86 A Sociedade Animadora da Corporação dos Ourives foi fundada na Corte em 1° de abril de 1838, década que

assistiu à constituição das primeiras formas de associação mutual erigidas por categorias profissionais. Seus estatutos foram reformados pela primeira vez em 11 de novembro de 1842 e alterados em 1860. ANRJ – CE: Caixa 531, Pacotilha 3, Envelope 1, Documento, 37.

87 Joaquim da Silva Mello Guimarães, op. cit., pp. 41-42.

88 Manuel Duarte Moreira Azevedo, “Sociedades fundadas no Brazil desde os tempos coloniais até o começo do

actual Reinado. Memoria lida nas sessões do Insituto Historico em 1884”, Revista Trimensal do Instituto Historico,

Geographico e Etnographico do Brazil, Tomo XLVIII – Parte II. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert &

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que a sociedade dos ourives representava um rol de associações “a favor das quais a seção tem mantido a honra de pronunciar-se, porque bem merecem ser animadas”.89

Nos estatutos, aprovados pela assembléia geral dos sócios em 25 de novembro de 1860, os parágrafos do artigo 13º legislavam sobre os “os fundos da sociedade e sua aplicação”, demonstrando o interesse dos artífices em garantir o prestígio de sua atividade e a qualidade de seus produtos. Assim, procurava destinar investimentos:

§2. Para [a] compra de livros de mecânica, química, física e de metalurgia, que interesse a corporação em geral, para aquisição de moldes e desenhos, de que a sociedade se queira proprietária e daquelas matérias primas necessárias ao ofício, nas quais a associação possa lucrar.

§3. Para o estabelecimento de uma oficina em a qual se possam colher e desenvolver os conhecimentos teóricos e práticos dos diferentes ramos do ofício de ourives.90

Uma década depois, Souza Franco, Sapucaí e o Barão do Bom Retiro, atentos à natureza dos pedidos de criação e/ou reforma de sociedades, argumentaram em parecer de 08 de fevereiro de 1871, que a sociedade dos ourives:

Conserva ainda o caráter triplo [...] de socorros mútuos, de montepio e de instrutiva ou promotora dos processos de ofício de ouriversaria. Hão de ser precisos grandes esforços para cumprir todos estes fins e depois de tanta insistência parece á seção que será conveniente dar lhe ocasião para conhecer praticamente os embaraços da instituição e removê-los.91

É interessante destacar que a associação dos ourives pretendia conjugar outras formas de socorro mútuo: o montepio e a instrução. A criação de montepios dentro de uma mesma

89 ANRJ – CE: Caixa 531, Pacotilha 3, Envelope 1, Documento 37: Parecer da Seção Império do Conselho de

Estado sobre o estatuto da Sociedade Animadora da Corporação dos Ourives, exarado em 15 de fevereiro de 1864.

90 Idem. Ibidem.

91 ANRJ – CE: Caixa 550, Pacotilha 3, Envelope 1, Documento 33: Parecer da Seção Império do Conselho de

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sociedade ocorria com freqüência entre as mutuais de ofício, e talvez fosse uma das estratégias adotadas por essas instituições para manter em dia as finanças e a concessão de auxílios aos associados ao longo do tempo. No entanto, na ótica dos conselheiros que aplicavam as normas de 1860, formas distintas de organização e, por conseguinte, o acúmulo de suas respectivas funções numa mesma sociedade, poderia ocasionar “embaraços” que dificultariam a execução dos objetivos previstos nos estatutos.

A introdução do ensino profissionalizante, por meio da criação de uma oficina “promotora dos processos do ofício da ourivesaria”, resultava do esforço em deter o controle da produção e da comercialização de peças manuseadas pelos ourives. Também demarcava, em certa medida, a sobrevivência de uma tradição associativa que remontava às corporações de ofício.92

Assim como os ourives, os trabalhadores do setor gráfico, em especial os compositores tipógrafos, empenharam-se em construir uma identidade coletiva baseada na valorização do ofício. Conforme assinala Arthur Vitorino, o recurso à greve em 1858 e a criação da Associação Tipográfica Fluminense, em 1853, voltada para “quaisquer cidadãos nacionais ou estrangeiros”,93 foram expedientes utilizados por esses trabalhadores para expressar os “anseios de reconhecimento do trabalho naquela sociedade marcada pelo escravismo e pela desqualificação do trabalho manual”.94

Em outras palavras, pressupunha-se que o reconhecimento seria conquistado por meio do empenho coletivo da categoria em nobilitar socialmente o ofício. João Paulo Ferreira Dias, presidente da Associação Cooperadora dos Empregados da Tipografia Nacional, argumentou em assembléia que os fins da sociedade não deveriam “só cingir-se às beneficências”, mas também “envidar todos os esforços para o engrandecimento da arte tipográfica”. Para tanto, cada um dos diretores da associação “deveria ser um guia para os jovens sócios e fazer-lhes compreender o

92 Cf. para o caso francês William H. Sewell Jr., op. cit., em especial o capítulo 8: “Workers‟ Corporations”. Para o

Brasil oitocentista, a tese de Marcelo Mac Cord sobre os artesãos recifences no século XIX é referência no estudo da manifestação dos costumes corporativos dos ofícios na constituição de sociedades mutualistas. Marcelo Mac Cord,

Andaimes, Casacas, Tijolos e Livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880, Tese de Doutorado, Campinas,

IFCH/UNICAMP, 2009, capítulos 1 e 2. Cf. mais sobre esse tema em Mônica de Souza Nunes Martins, Entre a cruz

e o capital: mestres, aprendizes e corporações de ofício no Rio de Janeiro (1808-1820), Tese de Doutorado, Rio de Janeiro,

UFRJ/IFCS, 2007, principalmente o capítulo 3.

93 ANRJ – CE: Caixa 556, Pacotilha 1, Envelope 3, Documento 21: Estatuto da Imperial Associação Tipográfica

Fluminense (1879).

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cumprimento de seus deveres estimulando-lhes ao trabalho”.95 O mesmo desejo parece ter conduzido a Associação Tipográfica Fluminense em estabelecer na reforma estatutária de 1878, a construção de uma biblioteca e de uma oficina que formaria uma “escola tipográfica”, a fim de promover “o melhoramento do sistema de trabalho”, “sem ônus para os cofres sociais”.96

Ainda segundo Arthur Vitorino, a destreza e a qualidade do trabalho dos tipógrafos, a despeito das clivagens de classe inerentes aos ofícios gráficos, representavam o alto grau de especialização que caracterizava o universo profissional desses trabalhadores:

quem exercia esse ofício realizava tanto uma atividade mecânica quanto uma atividade intelectual. Esse ofício era concebido como uma arte, porque, além de ele ser um trabalho manual que necessitava de inteligência e disciplina para compor as letras no compressor e imprimi-las nos prelos, esse mesmo ofício ainda exigia o domínio da representação da escrita [...], fazendo-se dela uma atividade criativa.97

Em suma, os interesses e as necessidades sociais conduziam a pretensão de grupos de artesãos e operários a estatuir objetivos materiais e culturais para além da dimensão dos riscos inerentes à sua existência. Edificar bibliotecas ou publicar jornais respondia, em parte, aos anseios de valorização do ofício e da figura do trabalhador manual, numa sociedade cujas relações de trabalho definiam-se em função das diferenciações jurídicas e sociais próprias da lógica do escravismo. Nessas condições, aos trabalhadores reunidos em associações de socorros mútuos parecia importante demarcar o valor positivo do trabalho exercido com destreza.

***

A narrativa deste capítulo procurou dar conta das práticas da ajuda mútua, focalizando os diversos socorros e finalidades pretendidas pelas mutuais de ofícios. A experiência associativa

95 ANRJ – CE: Caixa 551, Pacotilha 2, Envelope 3, Documento 38: Ata de Assembléia da Associação Cooperadora

dos Empregados da Tipografia Nacional.

96 ANRJ – CE: Caixa 556, Pacotilha 1, Envelope 3, Documento 21: Ata?

97 Arthur José Renda Vitorino, “Os sonhos dos tipógrafos na Corte Imperial Brasileira”, in Claudio H. M. Batalha,

Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes (orgs.)., Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado, Campinas/SP, Editora da UNICAMP, 2004, p.175.

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dimensionada em torno dessas associações de artesãos e operários qualificados representava a conexão entre, por um lado, “mobilizações e movimentos coletivos com a finalidade de defesa de interesses profissionais e/ou de classe” e, por outro, a estruturação de veículos fundamentais para a construção da identidade e formação da consciência de classe.98 Portanto, evidencia-se no universo mutualista a combinação entre a prática do socorro mútuo e a estruturação dos elos de solidariedade que caracterizavam o exercício da proteção social, e ao mesmo tempo alimentava os desejos de nobilitação de segmentos da classe trabalhadora oitocentista. Essa complexa combinação de funções revela o quão multifacetado era esse universo ao longo do século XIX, deixando evidentes as dificuldades em homogeneizar os significados dessas instituições.

98 Marcelo Badaró Mattos, Experiências comuns: escravizados e livres na formação da classe trabalhadora carioca, Tese

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APÍTULO III

“FUNDANDO IDEIAS DE ORDEM, PREVIDÊNCIA E MORALIZAÇÃO”

As sociedades de auxílio mútuo não „provêm‟ de uma idéia: tanto as idéias quanto as instituições surgem em resposta a certas experiências comuns.

E. P. THOMPSON1