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O fim da Tradição e a desconsideração do passado

No documento 2017CleristonPetryTese (páginas 43-53)

1 AS ORIGENS DA DESCONSIDERAÇÃO DO PASSADO PELO “NOVO CAPITA LISMO” E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA A EDUCAÇÃO E À SINGULARIDADE

1.3 O fim da Tradição e a desconsideração do passado

Podem argumentar que todos estamos em constante mu- tação. Sim, também eu não sou o mesmo de ontem. A única coisa que em mim não muda é meu passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre (AGUALUSA, 2011, p.59).

Determinados elementos do “novo capitalismo” não tem uma origem nele mesmo, mas foram possibilitados pelas condições sob as quais foi estruturado o mundo moderno. A rela- ção com o passado é um deles que quero me ater com mais detalhes. Sennett, nas obras supra- citadas, evidencia o que denomino de “desconsideração com passado” promovido pelo “novo capitalismo” e pela sua respectiva cultura. Contudo, há aspectos na Era Moderna que podem ter contribuído para essa “desconsideração” e compreendê-los possibilita-nos ter um parâme- tro mais profundo da situação que nos encontramos. Para tanto, Hannah Arendt colabora am- plamente para essa reflexão que empreendo a partir de agora.

Para Arendt, na Era Moderna, os indivíduos herdaram um tesouro sem um testamento. No testamento estava estabelecido o que era seu de direito, legando posses do passado para um futuro. “Sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição [...] parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempiterna mudança do mundo e do ciclo biológico das criatu- ras que nele vivem” (2007, p.31). A tradição seleciona e nomeia, transmite e preserva, indica os tesouros importantes do passado constituído e construído pelos homens. Sem o testamento, há uma grande possibilidade do passado se perder, assim como a continuidade do tempo. Sem a tradição e, possivelmente, sem o passado, perdemos um aspecto muito importante do que é comum, que pertence a todos os homens e que todos têm o direito de herdar. A crise da mo- dernidade é a ausência da tradição, que nos permitia compreender o mundo19 com a referência do passado.

A Modernidade se deparou com uma tradição que não servia mais para compreender o mundo, porque suas referências eram “inapropriadas” para pensar o que de novo surgia. A metafísica, representando o pensamento tradicional, se mostrou insuficiente para explicar o

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“Mundo” é diferente da “Terra”. Na Terra construímos e constituímos um mundo. O conceito de “mundo” em Arendt, que é polissêmico, significa o lugar em que as histórias humanas acontecem; onde estabelecemos rela- ções e nos revelamos como pessoas; é construído pela fabricação (work) e pela ação (action); é o único espaço em que é possível ser livre; é construído pelo conjunto de objetos duráveis e concretos, pelas formas de realiza- ções culturais; extrapola os interesses privados e imediatos, como a família e a condição biológica, sempre di- zendo respeito ao que compartilhamos com os outros (ARENDT, 1998; Almeida, 2011).

mundo. As velhas questões metafísicas se tornaram desprovidas de sentido, isto é, “quando o homem moderno começou a despertar para o fato de ter chegado a viver em um mundo no qual sua mentalidade e sua tradição de pensamento não eram capazes de formular questões adequadas e significativas, e, menos ainda, respostas às perplexidades” (ARENDT, 2007, p.31-35). Era como se descobríssemos que a mente deixou de funcionar adequadamente e que para compreender o que havia acontecido era preciso construir uma nova base de referências ou voltar ao passado sem a tradição.

Portanto, a tradição é uma espécie de “fio condutor” no passado, uma cadeia de com- preensão do mundo. Com a tradição, os “novos” que adentrariam ao mundo tinham a possibi- lidade de ter acesso àquilo que era significativo para que se pudesse conhecer e pensar o mundo, no qual entraram como uma “novidade”. “Com a derrocada da tradição, que indica e fundamenta o agir, as ações humanas tornaram-se sem justificação no momento de engendrá- las” (SCHIO, 2006, p.33). A relação entre a tradição e a fundamentação para o agir reside na compreensão dos romanos, os primeiros a utilizar a palavra e o conceito, de que a tradição fundamenta a autoridade20, justificando e fornecendo parâmetros para o agir. A tradição co- meça a exercer uma influência formativa na medida em que se adotou a cultura e o pensamen- to gregos, preservando-os do esquecimento e permitindo aos romanos transmitir a cada nova geração um “fio condutor” do passado. Nesse sentido, “a tradição revela a dignidade histórica daquilo que aconteceu, indica o alcance universal desse acontecimento singular do sentido” (ROVIELLO, 1987, p.73). Roviello argumenta, ainda, que Arendt retoma o sentido da tradi- ção, para os romanos, e a insistência no acontecimento21, que é o produtor de sentido na histó- ria, para os gregos. Ambas as concepções são importantes para Arendt, pois as experiências totalitárias apresentaram uma nova forma de governo que “não pode ser compreendida medi- ante categorias usuais do pensamento político, e cujos crimes não podem ser julgados por padrões morais tradicionais” (ARENDT, 2007, p.54), porque quebraram com a continuidade

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Arendt aprofunda essa temática na obra Entre o passado e o futuro, no capítulo “O que é a autoridade?” (2006, p.127-187).

21 O acontecimento não é produto de causas externas, oriundas de um passado que possui o poder explicativo do

presente. Essa concepção nega que os eventos do passado sejam únicos, desconsiderando particularidades, singu- laridades e os respectivos agentes. O acontecimento é singular e único porque se origina da ação de seres tam- bém singulares e únicos. O acontecimento, segundo Arendt, “ilumina o próprio passado; jamais pode ser deduzi- do dele” (1993, p.49). Se o totalitarismo foi um acontecimento inédito, a respectiva compreensão não se volta ao passado em busca de causas ou tendências. Essa é a principal lição de Origens do Totalitarismo (1951): Arendt interpreta as origens a partir do acontecimento que iluminou o passado, revelando um início. O evento parece, aos olhos do historiador, um final, mas é um novo início. Buscar as origens implica compreender que “os movi- mentos totalitários brotaram no mundo não-totalitário (cristalizando elementos que ali encontrou, pois os gover- nos totalitários não foram importados da Lua)” (ARENDT, 1993, p.41). Se o totalitarismo pode ser considerado um final, a terrível novidade revela a possibilidade de ser um novo começo.

da História Ocidental e se apresentaram como uma novidade tal que nenhuma tradição era capaz de compreender.

Por outro lado, a insistência no “acontecimento” evidencia a preocupação de Arendt com a concepção Moderna de História e, novamente, com a tentativa do totalitarismo de su- primir a singularidade em detrimento da raça ou da classe. Por isso, os governos totalitários se utilizavam de uma “profecia científica” que justificava as práticas e as realizações do terror por meio de referências às leis da História ou da Natureza. Em Origens do Totalitarismo a autora argumenta que “o terror é a realização da lei do movimento. O seu principal objetivo é tornar possível a força da natureza ou da história propagar-se livremente por toda a humani- dade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea” (2011a, p.517, grifos meus). A tradição garante uma “continuidade de sentido”, partilhado entre as gerações e vin- culando-as entre si. Portanto, a tradição não é retrógrada, reacionária ou nostálgica. Ela repre- senta “o quadro estável necessário para que a ação inovadora <<não caminhe nas trevas>>”, argumenta Roviello (1987, p.73). Para os romanos, o momento da fundação era o aconteci- mento que deveria ser preservado, lembrado e repetido. Os princípios que o constituíram pre- cisavam ser reavivados na mente e nas ações dos indivíduos e das gerações posteriores. Pre- servar, lembrar e repetir não é “fazer” o mesmo, mas agir segundo aqueles princípios funda- dores. O momento da fundação rompe com a continuidade do tempo e da História ao mesmo tempo em que é um novo começo, a instituição de uma nova ordem de coisas. A fundação abre-se para o futuro de uma tradição, sendo um veículo de princípio, isto é, portadora de sen- tido. De algum modo a tradição, mas em especial a História, permite a memória, a lembrança. Arendt, em Sobre a Revolução, ao tratar da política externa norte-americana, apresenta as consequências de se esquecer do passado, o momento fundador que foi a Revolução Ameri- cana e a promulgação da Constituição dos Estados Unidos. O mundo que ignora a Revolução Americana se esquece dela e de seu legado. Segundo Arendt, “foi uma revolução que deu origem aos Estados Unidos e que a república nasceu não por uma necessidade histórica nem por um desenvolvimento orgânico, e sim por um ato deliberado: a fundação da liberdade. Essa falta de memória é responsável em larga medida pelo medo americano às revoluções” (2011b, p.276) e o patrocínio de governos autoritários e avessos à liberdade política. A ignorância deliberada do passado, do momento fundador, leva aos americanos a traírem seu próprio pas- sado e os Pais Fundadores (Founding Fathers). Equivocadamente, reduziram a liberdade polí- tica à liberdade econômica, como se o crescimento econômico fosse o parâmetro para avaliar o grau de liberdade de um país.

Se não há mais uma tradição a preservar, nomear e transmitir o que é digno do passa- do, Arendt considera que a História e a compreensão têm um papel fundamental - mas não a História constituída a partir da Era Moderna que, geralmente, desconsidera acontecimentos particulares e seus atores, em favor de um processo, do que é mais geral. Essa concepção de História é constituída, na Modernidade, principalmente pelas Filosofias da História. Se pen- sarmos que Kant, em sua resposta sobre o que é o esclarecimento, evidenciou a mentalidade dos homens da época de que estavam vivendo um novo tempo e de que tinham consciência disso, sabiam que se tratava de uma ruptura com o passado, a filosofia da história foi uma espécie de “resposta ao desconcerto que produz nos modernos sua ruptura com o passado e a aparição de um tempo estritamente novo e conscientemente diferente” (RAMOS, 2003, p.5). Uma filosofia da história que prescreve e explica, que justifica os acontecimentos e volta-se ao futuro. Em nome dela tudo está justificado, porque ela é algo “maior” que os homens mesmos. A filosofia da história, pensada por Kant, em seu primeiro princípio (2010, p.5) es- tabelece que a História possui um fim, no caso dos homens, o pleno desenvolvimento das ca- pacidades racionais. Para Arendt,

uma vez que olhamos para a História em seu conjunto (im Grossen), e não para acontecimentos isolados e para as eternamente frustradas intenções de agentes hu- manos, tudo faz sentido subitamente, pois há sempre, pelo menos, uma estória a contar. O processo como um todo parece ser guiado por uma ‘intenção da natureza’ desconhecida pelos homens em ação, mas compreensível àqueles que os sucedem. Ao perseguirem seus próprios alvos sem rima ou razão os homens parecem ser con- duzidos pelo ‘fio condutor da razão’ (2007, p.117).

O motivo da fuga, para a autora, é que os filósofos viam a ausência de sentido do par- ticular. A partir disso, os acontecimentos, eventos ou particularidades são apenas acidentes ou são significados a partir de um relato universal, um grande relato único que, para Ramos (2003, p.11), trata-se de um dos mitos da Ilustração voltado à ideia de progresso num sentido global e globalizante22.

É inevitável que o passado perdera seu status de exemplo, de que uma fundação não poderia mais ser veículo de sentido, porque o sentido da história estaria no fim, naquilo que seria “produto” e não em particularidades ou histórias individuais.Ao mesmo tempo em que o passado perde seu poder normativo, há o pathos do novo evidenciado por Arendt em seu es- crito sobre a educação (1972, p.227). Interessante destacar que as reflexões da autora sobre a

22 “En lugar de múltiples historias sueltas, relatos de hechos notables ya ocurridos y que se repetían de nuevo en

cada instancia humana, apareció la historia como un suceso único y singular, una cadena de sucesos individuales, nuevos cada vez, en lo que, obviamente, ninguno de ellos podía ser ejemplar” (RAMOS, 2003, p.17).

educação não estão em um contexto isolado de sua obra, mas fazem parte de um projeto de estudos acerca da compreensão da Modernidade e de sua crise. Arendt escreve nos anos 1950, a partir de uma realidade específica, a norte-americana, mas atenta que é uma regra geral de nossa época o fato de que “tudo que se pode suceder num país, pode também, num futuro pre- visível, suceder em todos os outros países” (1972, p.224). O caso particular da crise na educa- ção americana, nesse sentido, é examinado por Arendt como revelador da modernidade.

O pathos do novo que influenciou a mentalidade dos fundadores da República Ameri- cana se transformou num mal-entendido (LOMBARD, 2003, p.21), talvez orientado pela perspectiva Moderna de História e de sua respectiva concepção de progresso. Nesse pathos a educação se converteu num meio político, isto é, fundar um novo mundo por meio da educa- ção das crianças - que são novas por natureza e nascença. Tal desejo trata-se de um erro de concepção e de uma ilusão que “graças à educação das crianças um mundo novo se edifica”, argumenta Arendt (1972, p.228). A educação como um meio ou instrumento para a política explicita uma concepção instrumental da escola e da tarefa educativa que interpretarei no pró- ximo capítulo. Interessa-me, nesse momento, localizar A crise na educação, de Hannah Arendt, dentro de um projeto de estudos acerca da Modernidade que, implicitamente ou expli- citamente, iniciou a desconsiderar o passado como algo relevante para a educação ou para o mundo. Quer dizer, sem passado não há mundo e isso significa que estamos ante a destruição do mundo iniciada pela mentalidade moderna baseada no anseio à novidade pela própria no- vidade.

A ilusão proveniente do pathos do novo conduziu a consequências muito graves na educação, segundo interpreta Arendt. Entre elas está a adoção das modernas teorias educacio- nais nos Estados Unidos sem qualquer reflexão. Teorias baseadas no pressuposto de uma “educação progressista”23

que, de um dia para o outro, derrubou todas as tradições e métodos de ensino e aprendizagem, revolucionando toda a estrutura e práticas educativas (ARENDT, 1972, p.229). Implícita nas escolhas está a desconsideração do passado, exemplificado pelas teorias educacionais tradicionais que, por simplesmente serem mais velhas que as novidades, foram descartadas sem qualquer reflexão. O novo representaria o mais avançado, o mais com- plexo e o mais próximo das necessidades educativas dos novos tempos ou noutros termos, e parafraseando Ortega y Gasset, aquilo que estaria à altura dos tempos (2014, p.95). Tal opção evidencia, outra vez, uma característica da Modernidade, especialmente em relação à política:

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Não só a Filosofia da História adota o paradigma do “progresso”, bem como algumas Filosofias da Educação. Ambas, Filosofia da História e Filosofia da Educação são respostas aos anseios de uma Modernidade que se sabe Moderna.

que as regras do “bom senso” foram postas de lado. “Tal procedimento tem sempre uma sig- nificação cheia de consequências, sobretudo num país cuja vida política se fundamenta de tal modo no senso comum ” (ARENDT, 1972, p.229). A desaparição do “senso comum” é, para a autora, o melhor sinal da crise atual. E ela repercute na educação, assim como o passado, a história e a tradição.

O fim da tradição e a desconsideração do passado obliteram relações éticas entre gera- ções. Tais relações fundamentam-se na responsabilidade dos adultos frente ao mundo e como os adultos são os mais velhos em relação às crianças, estão mais próximas do passado que as segundas. Esse era o elemento fundamental de uma relação pedagógica. O passado não apenas aportava autoridade ao adulto, mas o conhecimento, oriundo do passado, era a fonte mais legí- tima da autoridade do professor (ARENDT, 1972, p.234). A pedagogia passa a ser uma ciên- cia do ensino em geral e o professor está habilitado para ensinar qualquer coisa. Os alunos são abandonados aos seus próprios recursos ou, sob a influência das modernas teorias, só se aprende “fazendo” ou a partir dos princípios de “aprender a fazer” ou “aprender a aprender”. É inevitável não pensar que o passado deixa de ser respeitado e ser inspiração de respeito24. Como ele é desconsiderado, as relações “normais” entre adultos e jovens também explicitam outra face da crise moderna da educação. A educação se encontra sem o aporte ao passado e a autoridade (que residem nos adultos e em suas tarefas). Os fatos se agravam se pensarmos que a crise da educação surgiu num contexto de uma sociedade de massas e em resposta às suas exigências (ARENDT, 1972, p.230)25. A existência de conflitos não é o sinal da crise na edu- cação. Lombard argumenta que “a educação é, portanto, o lugar de um conflito entre o espaço privado e o espaço público e também, entre o espaço privado e o espaço social” (2003, p.34). No contexto do fim da tradição, da desconsideração com o passado e no advento do “novo capitalismo”, é urgente pensar qual o sentido da escola como um espaço pré-político, inter- mediário entre a vida doméstica/privada e o espaço público e o mundo comum26.

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Para Ortega y Gasset (2013, p.95), os homens de cada sociedade de um determinado período histórico se sen- tem em um nível relativo ao tempo que ocupam. Os que respeitam o passado o fazem porque sentem que veem ele como um tempo mais amplo, mais rico, mais perfeito e mais difícil. O passado se torna inspirador e, é possí- vel, fonte de nostalgia. Os homens, da Modernidade, se sentiam como se tivessem chegado num tempo mais exitoso e superior ao passado. Em nota de página o filósofo esclarece o que é a Modernidade: “El sentido origi- nal de <<moderno>>, <<modernidad>>, con que los últimos tempos se han bautizado a sí mismos, declara muy agudamente esa sensación de <<altura de los tempos>> que ahora analizo. Moderno es lo que está según el mo-

do; se entiende el modo nuevo, modificación o moda que en tal presente ha surgido frente a los modos viejos,

tradicionales, que se usaron en el pasado. La palabra <<moderno>> expresa, pues, la consciencia de una nueva vida, superior a la antigua, y a la vez el imperativo de estar a la altura de los tiempos. Para el <<moderno>>, no serlo equivale a caer bajo en nivel histórico” (ORTEGA Y GASSET, 2013, p.100).

25 No seguinte capítulo pensarei sobre as consequências de uma educação no contexto da ascensão da esfera

social e do advento da sociedade de massas

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A tarefa da História para os gregos, em especial para Hesíodo, Heródoto e Homero, era salvar os feitos humanos da futilidade que provém do esquecimento. Diferentemente da natureza e dos deuses, que eram imortais, os homens eram os únicos seres mortais e que, por isso, buscavam sua imortalidade específica. Não só a historiografia, mas também a poesia garantia aos mortais a lembrança para as futuras gerações, o tipo específico de imortalidade dos mortais. Homero, na Odisseia, canta, inspirado pelas musas, “o multifacetado, que muitos males padeceu, depois de arrasar Tróia, cidadela sacra” (2007, I, 1-2).

A História não trata apenas das vitórias, assim como o poeta não canta só as glórias, mas também as vergonhas e não apenas as vergonhas dos inimigos, mas as do próprio povo. Esse era o sentido da imparcialidade aspirado pela historiografia de Heródoto, segundo Arendt. Era a história de um ator singular que o poeta e o historiador procuram salvar da mor- talidade, da futilidade inerente à vida humana. “É isso a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha retilínea em um universo onde tudo, se é que se move, se move numa ordem cícli- ca” (ARENDT, 2007, p.71 e ARENDT, 1998, p.19).

Os homens não têm apenas uma vida (zoé), mas também existem (bíos) e são capazes de feitos que rompam com o ciclo biológico, de constante deterioração, e com os processos históricos. “Por sua capacidade de realizar atos imortais, por sua habilidade de deixar marcas que não se apagam, os homens, apesar de sua mortalidade individual, alcançam sua própria imortalidade demonstram ser de natureza <<divina>>” (ARENDT, 2005, p.44). Portanto, é a ação que cria condições para a história, para a lembrança. São os eventos, os acontecimentos, as rupturas, as fundações, o que há de singular e imprevisível que se torna objeto da narrativa histórica. Esses não são vistos como partes de um processo mais amplo, de uma totalidade que lhe confere sentido e a possibilidade de explicação. O sentido da História não está no pro- cesso, na totalidade, mas nos próprios acontecimentos, eventos, situações de ruptura em que

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