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2. O GÊNERO FANTÁSTICO E A ESCRITURA CORTAZARIANA

2.2 O autor Julio Cortázar

2.2.2 O foco narrativo

Para criar essa sensação de verossimilhança no leitor e fazê-lo acreditar que as personagens de seus textos experimentam a hesitação e a adaptação ao sobrenatural, Cortázar lança mão da manipulação dos diferentes tipos de discurso e distintos focos narrativos.

Muitas vezes, a voz da personagem está camuflada na voz do narrador, isto é, um narrador em terceira pessoa pode se apropriar da voz das personagens, também é possível que um narrador em primeira pessoa se aproprie da voz de outras personagens com as quais ele se relaciona. Por esse motivo, é necessário determinar quem é o narrador, qual é a sua função na prosa e de que pontos de vista ele fala.

Todorov (1976) refere-se aos diferentes pontos de vista como “percepção” e às diferentes percepções de um mesmo acontecimento ele dá o nome de aspectos da narrativa. Para ele, “o aspecto reflete uma relação entre um ele (na história) e um eu (no discurso), entre

o personagem e o narrador (p. 236). Ele lista e comenta três tipos principais de aspectos da narrativa, de acordo com a classificação proposta por J. Pouillon.

O primeiro deles é o “narrador > personagem (a visão ‘por trás’) ”. Este tipo de narrador é bastante comum, visto que é um narrador que sabe mais que seus personagens. “A sua superioridade pode-se manifestar seja no conhecimento dos desejos secretos de alguém, seja no conhecimento simultâneo dos pensamentos de muitos personagens seja na narração dos acontecimentos que não são percebidos por um único personagem” (TODOROV, 1976, pp. 236 e 237).

Este narrador seria o que se conhece pela tipologia de Norman Friedman (1967) como “narrador onisciente intruso”. Lygia Chiappini M. Leite (1997, p. 27) parte da obra de Friedman para explicar os diferentes tipos de narradores. O narrador onisciente intruso é, então, aquele que narra de um ponto de vista acima das personagens (ou por trás, segundo Puillon). “Seu traço característico é a intrusão, ou seja, comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada”.

Dos contos que estão sendo analisados, um narrador que possui essa característica é o de “No se culpe a nadie”, do livro Final del Juego. Este narrador conta a história em terceira pessoa e, apesar de haver um único personagem, ele sabe todos os pensamentos e desejos do protagonista do relato. Além disso, faz comentários ao leitor que podem ser confundidos com a voz do personagem, mas que na realidade são instâncias de intrusão do narrador, para aproximar-se do leitor, ou para fazer com que este se identifique com as sensações do personagem.

O segundo tipo de aspecto levantado por Todorov, é o “narrador = personagem (ou visão ‘com’) ”. No caso deste narrador, seu conhecimento é mais restrito, já que “sabe tanto quanto os personagens, não pode fornecer uma explicação dos acontecimentos antes de os personagens a terem encontrado” (TODOROV, 1976, p. 237). Aqui, a história pode ser contada tanto do ponto de vista de primeira quanto de terceira pessoa, mas sempre segundo a visão de um dos personagens.

Neste caso, Friedman apresenta dois tipos de narradores que compartilham essa característica comum: o narrador é um dos personagens. Entretanto, Friedman distingue o narrador entre personagem secundário e protagonista, ou “eu como testemunha” e “narrador- protagonista”, respectivamente. De acordo com Leite (1997), o primeiro “narra em 1ª pessoa, mas é um ‘eu’ já interno à narrativa, que vive os acontecimentos aí descritos e que pode, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil, [...] o ângulo de visão é, necessariamente, mais limitado” (p. 37). Já o narrador-protagonista “narra de um centro fixo,

limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos” (LEITE, 1997, p. 43). Neste caso, os fatos narrados ganham um caráter ambíguo, já que eles chegam até o leitor de um ponto de vista apenas, e o narrador não tem acesso à mente das outras personagens.

Verifica-se no conto “Casa tomada”, do livro Bestiario, este tipo de narrador, que é um narrador-personagem e é, simultaneamente, narrador-protagonista. Ele narra os acontecimentos apenas de seu ponto de vista, porém algumas impressões e sentimentos são narrados em primeira pessoa do plural, como se a irmã compartilhasse com ele algumas opiniões e gostos, e ao leitor não resta outra alternativa a não ser acreditar nessas afirmações.

O último aspecto classificado por Todorov (1976), é o “narrador < personagem (ou visão ‘de fora’) ”. Este tipo de narrador “sabe menos do que qualquer dos personagens; pode descrever unicamente o que se vê, ouve etc., mas não tem acesso a nenhuma consciência” (p. 237). Portanto, compreende-se que este narrador descreve ações de outras personagens, bem como os acontecimentos, mas não tece comentários a respeito deles. Este aspecto se aproxima do narrador de “La puerta condenada”, de Final del Juego.

Esse conto é narrado em terceira pessoa e, embora o narrador dê acesso à mente do personagem principal, não é um narrador onisciente intruso. Ele faz comentários ao longo da narrativa que poderiam ser confundidos com os de um narrador intruso, porém, percebe-se que ele utiliza o monólogo interior para aproximar o leitor do protagonista.

Essa característica se posiciona no meio-termo entre a “onisciência neutra” e a “onisciência seletiva” propostas por Friedman. O narrador onisciente neutro “se distingue [do intruso] apenas pela ausência de instruções e comentários gerais ou mesmo sobre o comportamento dos personagens, embora a sua presença seja sempre muito clara” (LEITE, 1997, p. 32), isto é, se interpõe entre o leitor e a história, mas não tem acesso aos pensamentos e sentimentos dos personagens. Já a onisciência seletiva é aquela em que não há um narrador explícito; os pensamentos são apresentados de forma direta, sendo impossível distinguir entre narrador e personagem.

No conto de Cortázar, observa-se que o autor faz uso do discurso direto, ou seja, os diálogos são marcados e anunciados pelo narrador, mas há também alguns comentários que são provenientes do pensamento do protagonista. Alguns desses pensamentos são introduzidos por meio do monólogo interior, e dessa forma o leitor tem certeza que se trata do personagem principal; outros, se misturam à voz do narrador e podem levar a crer que são comentários do narrador para o leitor, mas na verdade são do protagonista.

Neste capítulo foram apresentadas considerações teóricas referentes ao foco narrativo e a partir dos diferentes tipos de narrador e seus distintos pontos de vista, abordou-se de maneira geral como esse recurso é utilizado por Julio Cortázar para estabelecer a relação entre os personagens e o leitor da obra. O foco narrativo será aprofundado nas análises dos contos objeto desta dissertação e suas respectivas traduções para o português do Brasil nos capítulos 3 e 4; e também será dada ênfase aos recursos formais que compõem o discurso utilizado pelo autor, como a pontuação e a seleção de palavras.