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2.5. Escatologia Cósmica

2.5.1. O futuro da criação: sábado e shekiná

A doutrina acerca da escatologia cósmica deve explicar-se partindo do princípio de que é a criação que deve ser vista à luz da redenção e não o contrário, porque, se assim fosse, isso significaria que a criação era perfeita desde o início, mas que por causa do pecado do homem havia sido “destruída” e como tal a redenção seria fundamentalmente uma restitutio in integrum, ou seja, uma doutrina acerca do retorno à criação original373. Mas se, como defende J. Moltmann, o critério hermenêutico for pensar a criação com base na redenção, então, a criação realizada no princípio por Deus trata justamente de uma história de Deus, cuja meta será precisamente a nova criação de todas as coisas374. Portanto, se no ativermos a este princípio, então, o que temos é uma escatologia cósmica da nova criação, cuja esperança conduz à sua consumação

370

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 331.

371

J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 331.

372

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 333.

373

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 335.

374

73 escatológica. Com efeito, a esperança fundada na experiência da redenção não está orientada para a restauração da criação original, mas para a sua consumação na glória375

A afirmação acerca da criação ser muita boa não atesta, como evidencia J. Moltmann, que esta é uma criação perfeita e sem futuro, mas que, na verdade, a criação está de acordo com a vontade de Deus, porque só o sábado da criação é mais que do que muito bom, é santo, o que aponta para a futura glória da criação, em que o sábado é como que a promessa de futuro inserida no seio da criação inicial376, que há-de consumar-se em criação eterna377. Esta criação é temporal e há-de ser entendida no horizonte do tempo, mas é o tempo que começa com a criação e não a criação que começa no tempo, o que faz com que a criação esteja sujeita à mudança e aberta ao futuro «no qual chega a ser uma criação eterna»378. Assim, a consumação da criação temporal na criação eterna supõe também a redenção do pecado e a destruição da morte.

375

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 337.

376

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 338.

377

Nesta perspectiva J. Moltmann considera que a coroa da criação não é o homem, mas o sábado, enquanto o sábado diz a glória de Deus para a qual toda a criação está orientada (Cf. J. MOLTMANN, Dio nella Creazione (Brescia: Queriniana 1986) [original alemão 1985] 46), pois a “criação” diz o acto criador de Deus ao início, a continuação desse acto na história e a consumação da sua criação. Com efeito, o «fim escatológico da criação de Deus vem descrito com os símbolos de “Reino de

Deus”, “vida eterna” e “glória”. O fundamento intrínseco da criação não é já a alinça histórica – como sustentava Karl Barth – mas apenas o “Reino da glória”, porque este reino eterno representa a base intrínseca dessa aliança histórica» (J. MOLTMANN, Dio nella Creazione,74). O sábado, ao qual J.

Moltmann dedica um belíssimo capítulo (XI) na obra Deus na Criação, é o ponto para o qual deve dirigir- se qualquer doutrina da criação, pois é com o sábado e para o sábado que Deus conduz a sua criação como fim da mesma, uma vez que o sábado abre o criado para o seu futuro.O sábado é antecipação da redenção e consumação da criação, e é ao mesmo tempo a presença da eternidade no tempo. O descanso sabático considera J. Moltmann, refere-se não apenas ao descanso da alma, mas também do corpo, não só ao descanso do indivíduo, mas de toda a criação (Cf. J. MOLTMANN, Dio nella Creazione, 319). Por isso, o sábado é a festa da criação para a qual toda a criação está orientada, sabendo que a festa da criação diz justamente a festa da consumação (J. MOLTMANN, Dio nella Creazione, 320). O sábado da criação, afirma J. Moltmann, expressa o mistério da inabitação redentora de Deus na sua criação, ou seja, é o dia no qual Deus se faz presente à e na sua criação, e deste modo, o sábado diz justamente o início da glória de Deus, o seu repouso, que é o nosso futuro. Com efeito, o sábado «não é um dia da criação, mas o dia

do Senhor» (J. MOLTMANN, Dio nella Creazione, 323). A relação de Jesus com o sábado não é de

ruptura, no sentido de anular o sábado, mas de cumprimento messiânico do mesmo. O oitavo dia, o Domingo, como festa da celebração da ressurreição do Senhor, não substitui nem anula o sábado de Israel, ao invés não só antecipa o repouso sabático do último dia, mas dá início à nova criação de todas as coisas (J. MOLTMANN, Dio nella Creazione, 339).

378

74 Na consumação da criação nada se perde, mas «tudo é restaurado em forma

nova»379. É por isso que para J. Moltmann a «creatio ex nihilo se consuma na

escatológica creatio ex vetere»380, isto é, a consumação diz justamente a restauração da antiga criação não como regresso ao que era, mas como renovação, sendo que é o modo da presença do criador, no sentido em que criação do princípio consuma-se no sábado de Deus, sétimo dia para o qual todas as coisas foram criadas e no qual Deus descansa na sua criação381.

O sábado no tempo da primeira criação estabelece um vínculo entre o mundo presente e o mundo futuro. O sábado, como presença de Deus no tempo e na história, significa a presença dinâmica da eternidade no seio do tempo que «une o começo e o

final, e com ele suscita recordação e esperança»382, sendo a shekiná a inabitação escatológica de Deus no espaço da nova criação383. Deste modo, o sábado e a shekiná encontram-se relacionados, pois «a shekiná escatológica é o sábado consumado nos

379

J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 339.

380

J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 339.

381

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 340.

382

J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 340. O sábado da primeira criação como sinal da

shekiná de Deus permite que nem a escatologia absorva a história (R. Bultmann) nem a história absorva a

escatologia. Antes faz com que a eternidade entre no tempo unindo o princípio e o fim numa história e num mundo em processo, em caminho para a consumação escatológica que leva à sua plenitude aquilo que na morte e ressurreição de Cristo já tinha começado: a nova criação de todas as coisas.

383

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 340. Ao tratar aqui o tema da shekiná relacionado com o sábado, J. Moltmann pressupõe, como próprio refere, o que escreveu na sua pneumatologia. Em síntese temos que o Espírito de Deus (ruah Yahvé), enquanto diz a presença de Deus, não refere, em sentido cristão, aquilo que é o específico da expressão israelita, antes diz a shekiná de Deus, que significa justamente a descida e a inabitação espacio-temporal de Deus na história (Cf. J. MOLTMANN, El

Espiritu de la vida, 62). Por isso, a shekiná não é um predicado de Deus, mas a presença de Deus mesmo

(na arca, no meio do povo, nos necessitados e doentes). Mas se a shekiná de Deus diz a sua presença, a verdade é que não pode ser confundida com Deus em si mesmo, na sua eternidade. O paradoxo está no facto de que a shekiná enquanto «presença terrena, temporal e espacial identifica-se com Deus e por sua

vez distingue-se dele» (J. MOLTMANN, El Espiritu de la vida, 63). Este paradoxo é teológico, no sentido

de que preserva Deus de uma identificação de tipo imanentista com os lugares e tempos da sua inabitação (por meio da sua autodistinção), ou seja, mantém «inalterável ao mesmo tempo a identidade do Deus

único» (J. MOLTMANN, El Espiritu de la vida, 63). Mas qual é o contributo da teologia da shekiná para

a compreensão do Espírito Santo? Três contributos fundamentais podem ser identificados: 1º: Esclarece o carácter pessoal do Espírito Santo, no sentido de que o Espírito diz a presença operante de Deus em pessoa; 2º: A shekiná expressa a sensibilidade de Deus que inabita, que sofre, que se compadece e se alegra. 3º: a shekiná remete para a kenósis do Espírito, pois Deus abre-se ao sofrimento porque quer amar. Ora, o sofrimento do Espírito (teopatia) é uma consequência da sua inabitação nas criaturas (Cf. J. MOLTMANN, El Espiritu de la vida, 66).

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espaços do mundo […] o sábado e a skekiná relacionam-se entre si como a promessa e o cumprimento, o começo e a consumação»384. Isto significa, explica J. Moltmann, que o sábado da criação se encontra desde o início orientado para a shekiná, pois o sábado contém em si «desde o princípio a promessa real da sua consumação»385, que outra coisa não é que o acolhimento da nova criação. A unidade entre o sábado e a shekiná está fundada na Menuhá, isto é, no descanso de Deus que diz não apenas a quietude, mas também a bem-aventurança e a paz eternas do próprio Deus386.

O que é dito no Novo Testamento acerca da encarnação deve ser lido, segundo J. Moltmann, no quadro da recordação e da esperança acerca da shékina de Deus387. Na verdade, a inabitação do Verbo de Deus atesta o cumprimento do tempo (Gl 4, 4-5), e o contrário também é verdade; o tempo cumpre-se onde tem lugar a shekiná definitiva de Deus como pode ser atestado em Lc 4, 18ss: Jesus anuncia que o tempo se cumpriu, uma vez que o (a shekiná do) Espírito de Deus desceu sobre ele para anunciar a libertação. Daqui resulta que a autoridade de Jesus está fundamentada nesta shekiná do Espírito de Deus sobre ele. Por meio de Jesus, Deus pode oferecer aos que andam cansados e oprimidos descanso (Menuhá), isto é, paz e bem-aventurança eternas388. Por fim, considera J. Moltmann, o modo pelo qual Deus habita neste mundo, ainda por redimir e marcado pelo pecado, tem a forma de Cristo crucificado, ao passo que a forma de Cristo ressuscitado antecipa, mediante a presença do seu Espírito, a sua «shekiná

universal na nova criação»389.

384

J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 340.

385

J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 340.

386

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 341. Pois, como refere J. Moltmann ao «princípio

Deus criou, mas no fim Deus descansou: esta é a maravilhosa dialética divina» (J. MOLTMANN, Ethics of Hope, 232).

387

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 341.

388

Cf. J. MOLTMANN, La Venida de Dios, 341.

389

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