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Capítulo 2 – A construção do conceito de Grande Domínio (1844-1973)

2.5 O Grande Domínio para além do eixo Sena-Eifel

François-Louis Ganshof, aluno de Ferdinand Lot e Henri Pirenne, foi professor de história medieval em Gante. Ele publicou o seu primeiro artigo em 1920282 e seu último livro em 1975283. Ao longo destes mais de cinquenta anos, ele se dedicou a temas relativos, quase que exclusivamente à história do direito, principalmente às relações de vassalagem no Período Carolíngio e no período posterior284, mantendo um constante diálogo, não só com a tradição belga, mas também com a francesa, a alemã, a inglesa e a americana285. Apesar de inserido em uma área tradicional da historiografia, a história do direito, Ganshof assumiu uma postura metodológica que rompeu com a tradição anterior e utilizou documentos que, até então, haviam sido ignorados em grande parte, como por exemplo, cartas e poesia, principalmente de Ermoldo, o negro286. A preocupação sobre a organização fundiária e economia medieval permaneceram marginais em seus estudos até o final da década de 1940287. Em 1948, ele publicou uma descrição do domínio bipartido da abadia de Saint-Pierre-au-Mont-Blandin, no

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GANSHOF, François-Louis. Étude sur l'administration de la justice dans la région Bourguignonne de la fin du Xe au début du XIIIe siècle. Revue historique, p. 193-218, 1920.

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GANSHOF, François-Louis. Le polyptyque de l’abbaye de Saint-Bertin (844-859). Paris: Imprimerie Nationale, 1975.

284 GANSHOF, François-Louis. Benefice and Vassalage in the Age of Charlemagne. Cambridge Historical

Journal, vol. 6, nº 2, p. 147-175, 1939; GANSHOF, François-Louis. L’origine des rapports féodo-vassaliques. Settimane di Studio di Spoleto, p. 27-69, 1953. Sua pesquisa sobre o assunto foi sistematizada em seu

conhecido livro: GANSHOF, François-Louis. Qu’est-ce que la féodalité?. Paris: Tallandier, 1982 (1944). 285 O conhecimento de Ganshof da historiografia francesa e alemã, como Guérard, Dopsch, Lot, Bloch e Perrin é profundo. Além disso, uma parte de seus artigos foi publicada em revistas inglesas, como a Cambridge Historical Journal e americanas, como a Speculum.

286 GANSHOF, François-Louis. Notes critiques sur Eginhard, biographe de Charlemagne. Revue belge de

philologie et d'histoire, tomo 3, p. 725-758, 1924.

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Até esse momento, questões econômicas e administrativas só eram abordadas superficialmente ao discutir documentos legais, como os capitulários, cf.: GANSHOF, François-Louis. Charlemagne et l’usage de l’écrit em matière administrative. Le Moyen Âge, p. 1-25, 1951.

Período Carolíngio288. Alguns anos mais tarde, ele publicou uma descrição da organização fundiária, que cobria toda a região dos “Países Baixos”, isto é, a atual Holanda, Bélgica, Luxemburgo e regiões ao norte da França e da Alemanha289. Depois, publicou um artigo que traz uma visão geral da economia franca no século VII, mas, no qual ele aborda também os séculos VIII e IX290. Finalmente, ele publicou o seu último livro, uma edição comentada do Políptico de Saint-Bertin291. Objetivamos compreender a visão de Ganshof sobre a origem de tal organização, suas modificações, sua extensão dentro do reino franco e como seus apontamentos influenciaram a pesquisa a partir da década de 1960.

Primeiramente, vale ressaltar que os Grandes Domínios, analisados por Ganshof, se localizavam fora das regiões tradicionalmente descritas até aquele momento, isto é, os arredores de Paris (mosteiro de Saint Germains-des-Prés) e a região de Eifel (Políptico de Prüm). Em seu primeiro artigo sobre o assunto, Ganshof analisou um domínio da abadia de Saint-Pierre de Gante no século IX, a partir de um Livro de Tradição292 do século X. Nesse domínio, ele identificou todas as características encontradas no domínio modelo de Palatiolo, isto é, uma reserva senhorial com diversos campos e a tenência formada por diversos mansi, cultivados por terratenentes, que deviam pagar tributos ao senhor; contudo, com uma extensão reduzida, em torno de 450ha, enquanto os domínios de Saint Germain-des-Prés atingiam mais de 1000ha.

Já em seu segundo artigo sobre o assunto293, Ganshof aprofundou a sua descrição e a ampliou espacialmente, cobrindo os Países Baixos. Nesse texto, ele rompe com as duas abordagens dominantes até então: aquela iniciada por Inama-Sternegg, que afirmava que o Grande Domínio teria se difundido durante o Período Carolíngio; e aquela iniciada por Fustel de Coulanges, que defendia que o Grande Domínio teria surgido durante o baixo Império. Ganshof defende que no século VII é possível observar na região um domínio bipartido, reserva e tenências, controlado por um senhor, que cobra diferentes tipos de taxas de seus terratenentes. Tal domínio não teria um caráter estático, assim como pressupunha os

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GANSHOF, François-Louis. Le domaine gantois de l'Abbaye de Saint-Pierre-au-Mont-Blandin à l'époque carolingienne. Revue belge de philologie et d'histoire, tomo 26, p. 1021-1041, 1948.

289 GANSHOF, François-Louis. Manorial Organization in the Low Countries in the Seventh, Eighth and Ninth Centuries. Transactions of the Royal Historical Society, vol. 31, p. 29-59, 1949.

290

GANSHOF, François-Louis. Quelques aspects principaux de la vie économique dans la monarchie franque au VIIe siècle. Settimane di Studio di Spoleto, p. 74-101, 1958.

291 GANSHOF, François-Louis. op. cit. 1975.

292 Esse termo foi criado por pesquisadores alemães (Traditionbuch) para descrever um livro que agrupa diversos documentos sobre compra e doações de terras de um mosteiro.

pesquisadores alemães e alguns franceses, como Georges Duby294, mas estava constantemente passando por transformações, o que lhe conferia um caráter dinâmico295. Diferentemente dos domínios de Saint Germain-des-Prés e de Prüm, os domínios nos Países Baixos são muito mais dispersos. Além disso, não é possível comprovar um arroteamento sistemático na região, mas um avanço em direção ao mar, terras chamadas, na documentação, de marisci. Apesar da sua afirmação categórica sobre a existência de Grandes Domínios na região estudada, Ganshof não exclui a existência de camponeses individuais independentes da organização dominial, contudo, ele afirma que não há documentação que permita abordar tal problema296. Assim, pela primeira vez temos um autor que não localiza o surgimento do Grande Domínio no Baixo Império ou no Período Carolíngio, mas no século VII, reconhecendo o seu caráter incipiente. Além disso, ao analisar fontes pouco estudadas até aquele momento, ele reforça a teoria do Grande Domínio ao mostrar que tal estrutura também estava presente em outras regiões do império. Por fim, ele conjuga a dicotomia grande propriedade senhorial/ pequena propriedade camponesa, ao mostrar que, apesar de ser possível comprovar a existência de ambas em uma mesma região, a documentação nos limita ao estudo da primeira, pois as informações sobre a segunda são quase inexistentes.

Em seu último artigo sobre o assunto297, o pesquisador belga procurou delinear as principais características da vida econômica na monarquia franca e reforçou as suas hipóteses anteriores. Para ele, a agricultura tem o papel principal, apesar de não descartar a existência de um comércio regional que se comunicava com um comércio internacional. Ele volta a afirmar que o Grande Domínio teria surgido no século VII, dentro dos territórios francos, e acrescenta a observação que o surgimento de tal organização está intimamente ligado ao surgimento do mansus298, contrariamente do que defendia Marc Bloch. Por último, ele inovou a sua abordagem ao utilizar, não somente os Polípticos e os Livros de Tradição, mas também as leis bárbaras, principalmente a Lex Baiuvariorum.

Contudo, Ganshof ganhou notoriedade nessa área de pesquisa após a publicação da edição comentada do Políptico de Saint-Bertin299, que ele já havia utilizado para o seu artigo de 1949. Diferentemente da edição do Políptico de Saint-Germain-des-Prés, publicado em

294

Ver mais adiante. 295 Ibidem. p. 51. 296 Ibidem. p. 39.

297 GANSHOF, François-Louis. op. cit. 1958. 298

Ibidem. p. 83.

1836, que contava, até aquele momento, com apenas uma edição, o Políptico de Saint-Bertin já havia sido editado três vezes: a primeira por Benjamin Guérard300, a segunda por Oswald Holder-Egger301 e a terceira por M. Gijsseling e A.C.F. Koch302. Porém, nenhuma das três edições tinha como foco o Políptico, mas sim a Gesta do mosteiro, composta no século X. Assim, mesmo já existindo três edições, o pesquisador decidiu elaborar uma quarta, somente do Políptico e detalhadamente comentada. Apesar de suas observações terem como objetivo apenas esclarecer e descrever passagens do texto, sem nenhuma pretensão de análise, esta edição foi importante para o estudo do Grande Domínio, pois pela primeira vez os pesquisadores passaram a ter fácil acesso a um Políptico comentado que não o de Saint- Germain-des-Prés, ampliando de forma definitiva as pesquisas, a área analisada e, mais uma vez, reafirmando a importância dos Polípticos para a análise do período e sua ligação estreita com o conceito de Grande Domínio.

Concluindo, apesar de marginal em suas pesquisas, os estudos de Ganshof reforçaram o modelo de Grande Domínio ao mostrar que tal estrutura não estava restrita a pequenas regiões densamente povoadas do reino franco, isto é, Paris e Eifel. Ao utilizar em suas análises, além dos Polípticos, as leis bárbaras, o pesquisador aproximou dois campos de pesquisa que se constituíam como polo opostos: a história do direito e a história econômica. Por outro lado, os seus apontamentos sobre a origem de tal organização romperam com a tradição anterior e apontaram novas perspectivas de pesquisa, reforçadas, mais tarde, pela descoberta de novos documentos303, assim como a sua visão dinâmica de tais estruturas permitiu aprofundamentos sobre o estudo dos Polípticos304. Por fim, a sua edição do Políptico de Saint-Bertin transformou essa fonte, antes pouco estudada e comentada, em um documento central para o estudo do tema, tanto quanto o Políptico de Saint-Germain-des-Prés.

300

GUÉRARD, Benjamin (org.). Cartulaire de l’abbaye de Saint-Bertin. Paris: Crapelet, 1840, p. 97-107. 301 HOLDER-EGGER, Oswald. Gesta Abbatum Sancti Bertini Sithiensium. In: Monumenta Germaniae

Historica, Scriptores SS, XIII, p. 600-673, 1881.

302 GIJSSELING, M.; KOCH, A.C.F. Diplomata Belgica ante annum millesium centesimum scripta. Bruxelas: Belgisch Inter-Universitair Centrum voor Neerlandistiek, 1950.

303 Para mais detalhes sobre o assunto, cf.; GASNAULT, Pierre. Documents comptables de Saint-Martin de

Tours à l'époque mérovingienne. Paris: Bibliothèque nationale, 1975.

304 As hipóteses de Ganshof sobre a origem do Grande Domínio foram, mais tarde, desenvolvidas com mais profundidade por Adriaan Verhulst, assim como suas observações sobre a dinamicidade do Grande Domínio foram acentuadas por Yoshiki Morimoto. Ambos os autores forma abordados com mais detalhes no capítulo 3.