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O humor negro na construção da comicidade

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1. O CARÁTER HÍBRIDO DO CÔMICO EM O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ: AS

1.5 O humor negro na construção da comicidade

Helena Maria Gramiscelli Magalhães, em sua tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, no ano de 2008 (p. 6), afirma que “diferentemente do gênero humor e do riso, o subgênero humor negro não tem desfrutado do privilégio de, desde a Antiguidade, ser contemplado com muitos estudos ou teorias”.

E, diante desta realidade, torna-se mais interessante e desafiador discutir sobre humor negro, uma vez que a construção da personagem não se reduz a um estereótipo e a sua condição de idealista seduz e desafia ao mesmo tempo.

Para a autora, o humor negro exorciza o homem através do riso, uma forma de humor que é utilizado para se ironizar o mundo contemporâneo e que o esse riso esconde a verdadeira intenção de entendimento do que é proposto.

Breton (1997), no prefácio da Antologia, (apud MAGALHÃES, 2008, p. 53), diz que o “humor negro é o oposto da jovialidade, da alegria ou do sarcasmo; é uma reviravolta sempre absurda do espírito, parcialmente macabra e parcialmente irônica e inimiga mortal do sentimentalismo [...]”. Para o poeta francês a rebeldia da natureza do humor negro é que irá estabelecer um molde para esse subgênero do humor.

Alguns elementos são essenciais para a construção e compreensão de textos com natureza no humor negro, como: o imprevisto, as contradições, os dramas íntimos, o ser humano degradado, as transgressões e sua consequência, os desafios ao religioso e ao socialmente correto, e a ironia.

O humor negro baseia-se em uma combinação de humor e pessimismo, riso e pranto. É uma forma de humor moderno, mais descontraído que acontece sobre a própria vida, seu sentido ou ausência de sentido. Através do humor negro é possível expressar o inconfessável de forma inconsciente que coloca o leitor observador diante de algo que está além daquilo que é apresentado.

O humor negro, como subgênero do humor, expõe o politicamente incorreto, o preconceito, a fraqueza, crueldade, ganância, luxúria, entre outros e que nem sempre é considerado por muitos como de mau gosto. Essa construção textual é proposital a fim de mostrar todas as misérias sociais implícitas nesse subgênero. Na obra de Scliar (1997, p. 72), como o humor negro é assim apresentado:

Acordou suando. A custo levantou a cabeça: havia uma pedra enorme sobre seu peito. ‘Não era sonho!’ — gemeu o Capitão. Agarrou a pedra com as duas mãos e a custo jogou-a para fora da barraca. Na pedra estava amarrada a extremidade de um barbante; a outra extremidade formava uma laçada — em torno o pênis do Capitão.

O cômico, neste caso, é fruto de uma ação brutal, pois, mesmo sabendo da aflição e angústia causada para a personagem, ainda assim, suscita o riso. Esta modalidade de humor negro é causada por quatro trapeiros que amarram a genitália do Capitão e riem da situação, mesmo percebendo que causariam o sofrimento com a brincadeira maldosa. Com isso, o humor sugere, de fato, a maldade social em que o importante é rir a qualquer preço, sem medir as consequências dos atos.

Outro momento em que o humor negro é identificado nesta narrativa ocorre quando há um desentendimento entre Mayer e a autoritária Dona Sofia, proprietária da pensão em que é obrigado a viver. Ao decidir fazer uma reclamação do alimento servido, na pensão, durante uma das refeições...

— A carne está ruim — repete Mayer.

— Tu, Capitão Birobidjan! — berra Sofia, furiosa. — Eu te conheço, velho anarquista! [...] Para dar o exemplo, vais comer esta carne.

— Sofia, cadela velha, — diz Mayer, com um sorriso maligno — eu não vou comer esta pelanca dura que tu chamas de carne.

— Capitão, se tu não comeres — responde Sofia, sorrindo também e falando entredentes — eu te rebento a bofetadas.

[...]

Um segundo depois estão engalfinhados. Caem ao chão, rolam para baixo da mesa, somem sob a toalha xadrez. [...] De sob a mesa vêm gritos e gemidos. Depois, um silêncio e finalmente aparece a cabeça de Mayer: — Uma corda!

— Está na mão, Capitão! — Octávio corre à despensa e volta com um rolo de corda.

Mayer some novamente debaixo da mesa. Reaparece minutos depois. — Está amarrada.

Arqueja; tem o rosto horrivelmente lanhado. (SCLIAR, 1997, p. 155-154)

O riso que surge momentaneamente é espontâneo, surge de forma incontrolável, mesmo que seja posteriormente substituído por um sentimento de compaixão, um misto de pena e culpa. O humor negro aborda as deformações, mutilações, doenças, mortes, entre outras, e provoca um riso que incomoda, causa constrangimento e, ao mesmo tempo, assusta àquele que ri.

— E agora? O que vamos fazer com ela? — pergunta David Benveniste, assustado.

— Se a gente solta ela nos mata...

— Vamos levá-la para o quarto da Santinha — diz Mayer.

O transporte de Sofia é tarefa complicada, mas divertida. Todos têm de ajudar; um pega no braço, outro na perna. E vão. ‘Cuidado! Olha a mesa! Devagar. Mais para a direita!’ Mayer sente dor no peito, mas preocupa-se em animar os outros. De repente o vestido de Sofia se rasga; largam-na ao chão, com estrondo. Santinha se apressa a cobri-la com uma toalha, Os outros riem: Mayer, Octávio, David Benveniste, e até Ana e Santinha, riem, riem muito. Sofia amaldiçoa-os: ‘Quando eu me soltar’. Por fim encerram-na no quarto da empregada.

À noite se banqueteiam: bacalhau preparado por Octávio, bifes macios feitos por Santinha, que anuncia, orgulhosa:

— E ainda tem muita coisa boa para nós! (SCLIAR, 1997, p. 155)

Assim, temos um humor negro que se distingue por uma luta que não é contra, mas a favor de uma sociedade justa, igualitária para todos. Mesmo idoso e doente, Mayer permanece inconformado, porém sem abandonar os seus ideais de vida, que lhe motivaram a vida e também o levam a morte:

A dor arremete. Penetra-lhe no peito, expande-se poderosamente.

O Capitão fica de pé, os olhos muito abertos. Um som chega-lhe aos ouvidos, um som agudo, distante a princípio, depois cada vez mais perto: uma sirena?

— É Sofia, com a polícia!

Está cercado. Sofia e os policiais invadirão a casa pela porta da frente, a quadrilha entrará pelos fundos: resta saber quem o pegará primeiro.

— “No pasarán!” — grita o Capitão. Então percebe que, se alguma esperança ainda existe, ela está no povo, em todo o povo: Sofia, os policiais, Libório, Nandinho, Hortênsio, Fuinha, os choferes, Português, Colomy, os corretores — é para eles que o Capitão Birobidjan grita:

— Companheiros! Iniciamos agora a construção...

Vacila, apóia-se no sofá. As luzes se acendem. É para frente que o Capitão cai. Mergulha no mar escuro. (SCLIAR, 1997, p. 175)

Mesmo abordando o sofrimento humano, o humor negro, assim mesmo, faz rir. O riso proporcionado por este subgênero na obra advém da abordagem das fraquezas humanas, uma doença. A loucura é uma situação “limite entre o racional e o absurdo”, (SCLIAR, FINZI e TOKER, 1991, p. 2) que provoca um riso constrangedor, incerto, ou seja, um riso assustador que incomoda e ao mesmo tempo é engraçado.

No humor negro, o riso que ele instiga é estabelecido entre a amargura, o medo e o engraçado. Nesta perspectiva, este tipo de humor despreza o que é racional e ridiculariza os defeitos, as deformidades, mesmo que a abordagem seja psicológica, física ou social para fundamentar o riso.

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