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O ideário pastoral

No documento Casas no Campo (páginas 107-112)

Em traços largos, na sua forma inicial, o pastoralismo corres- ponde a um movimento literário que exalta o mundo rural em contraponto à vida urbana. Em Portugal, este movimento literá- rio adquire expressão em obras como A Morgadinha dos Canaviais (1952 [1868]), de Júlio Dinis (1839-1871). Neste livro, sob a forma de contos de aldeia, o autor advoga a ideia de que a vida urbana exerce uma acção moralmente deprimente sobre os in- divíduos e que a vida rústica produz um efeito morigerador. O personagem principal da obra, Henrique de Souzelas, um jo- vem rico que leva em Lisboa uma vida ociosa, começando a sentir as consequências da saciedade e do tédio, doente de cisma, é aconselhado pelos médicos a procurar na aldeia alívio para a saturação da vida na cidade. A pureza salutar dos ares campestres,

o sedativo conforto do lar minhoto e as relações sociais aí de- senvolvidas são os factores que contribuem para olvidar os males imaginários de que padece e as seduções pecaminosas da capital. A paisagem campestre que é objecto de descrição integra elemen- tos reveladores da intervenção humana, como carros de tracção animal, pomares, casas rústicas, «uma ou outra casa apalaçada», campos cultivados, eiras e certos componentes da tecnologia tra- dicional, como moinhos, azenhas e noras. São estes os principais instrumentos utilizados pelo personagem na construção de uma imagem idílica de uma aldeia minhota do século XIX. O encan-

tamento que a visualização da paisagem narrada exerce em Henrique de Souzelas desperta-lhe uma vontade indomável de se incorporar nela e absorver os seus sons, odores e texturas. É, em síntese, uma paisagem idílica, que deve ser vista, tocada e cheirada (Dinis 1952, 38-42).

A ideologia pastoral contida neste tipo de textos constitui uma tradição literária do mundo ocidental, desde o período greco- -romano, como mostram Leo Marx (1967), Raymond Williams (1993) e Yi-Fu Tuan (1974). Produzida por citadinos, a sensibi- lidade pastoral

é gerada por um desejo de se retirar face ao poder e complexidade crescentes da civilização. O que é atraente no pastoralismo é a felicidade representada por uma imagem da paisagem natural, um terreno intocado ou, se cultivado, rural. O movimento em direcção a esta paisagem simbólica pode também ser entendido como um movimento para longe de um mundo artificial […]. Noutras palavras, este impulso dá azo a um movimento simbólico para longe de centros da civilização em direcção ao seu oposto, natureza, para longe da sofisticação em direcção à simplicidade, ou, para introduzir a metáfora principal do modo literário, para longe da cidade em direcção ao campo [Marx 1967, 9-10].

Acresce que o campo que atrai e fascina estes escritores cor- responde àquilo que Tuan (1974, 109) considera ser uma «paisa-

gem intermédia», que não é selvagem, totalmente desprovida de marcas de acção humana, nem tampouco inteiramente humaniza- da, citadina: «é o mundo intermédio ideal do homem colocado entre as polaridades da cidade e da natureza». É, resumidamente, uma paisagem rural, nos termos propostos por Van der Ploeg: o rural não deve ser definido simplesmente como o oposto do urbano – deve também ser definido em relação ao oposto da civilização, isto é, ‘o meio selvagem’. A procura do rural não pode ser baseada numa única equação. Esta procura envolve a discussão de duas fronteiras: a fronteira entre o urbano e o rural e a fronteira entre o rural e o não civilizado [Van der Ploeg 1997, 41-42]. De acordo com Marx (1967), existem dois tipos de pastora- lismo, um de cunho sentimental e popular, outro de pendor imaginativo e complexo. Diferentemente do que se passa com a vertente imaginativa e complexa do pastoralismo, própria da li- teratura, a de cariz sentimental e popular, embora difícil de de- finir, expressa-se numa miríade de comportamentos, sendo a «fuga da cidade» o mais recorrente [idem, 5]. Ao procurar na aldeia alívio para a saturação da vida urbana, Henrique de Souzelas, personagem principal da obra A Morgadinha dos Cana- viais, realiza este último género de pastoralismo. Neste trabalho, procuramos desenvolver o argumento de que o turismo em es- paço rural evidencia a apropriação que as classes médias urbanas fazem de uma prática até há pouco tempo exclusiva das elites, que consiste na realização de um ideário de tipo pastoral de cunho sentimental e popular. O turismo em espaço rural permite, de facto, que um número crescente de indivíduos de classe média sem casa no campo (própria ou de familiares) tenha acesso a uma prática de consumo que até há alguns anos era privilégio de um grupo restrito de pessoas com elevado capital cultural e financeiro, sem que para isso tenha de despender avultadas quantias de dinhei- ro. Com efeito, a frequência do campo por motivos de lazer foi

durante muitos anos um privilégio das elites citadinas ou de uma certa nobreza de província radicada nos meios urbanos, que, por vezes, se deslocava ao campo para visitar as suas propriedades. Tal facto vai de encontro ao argumento de D. Greenwood (1976, 130), segundo o qual «o século XX assistiu a um colapso abrupto

do monopólio da classe alta sobre o turismo e ao aparecimento de uma classe média activamente envolvida no mesmo». Neste senti- do, deve sublinhar-se o facto de em Portugal as classes médias terem tido um crescimento significativo no período compreendido entre 1960 e 1973 (Barreto 1995, 37), o que viria a acentuar-se após o derrube da ditadura, como mostram João Ferreira de Almeida, Firmino da Costa e Luís Machado:

A nova classe média ou pequena burguesia técnica e de enquadramento, composta, no fundamental, por quadros técni- cos assalariados das empresas, dos serviços públicos e da admi- nistração estatal, regista taxas de crescimento bastante significati- vas a partir de meados dos anos 70 – acompanhando e protagonizando processos sociais de escolarização superior, de desenvolvimento do Estado-Providência, de modernização eco- nómica e cultural. É nesta classe social que se verifica, designada- mente, terem vindo a ocorrer as mudanças mais significativas nos quadros dos valores culturais, em boa parte segundo uma lógica associável aos comparativamente elevados níveis de escolarização que a caracterizam [Almeida, Costa e Machado 1994, 326]. Para o processo de difusão das práticas turísticas em Portugal contribuíram igualmente a redução dos horários de trabalho, o aumento dos rendimentos e a melhoria dos meios de transporte e das vias de comunicação. Nos últimos anos, também por causa da urbanização do país, do aumento das sensibilidades ambientais e da rejeição de destinos turísticos massificados, o campo constitui um local de predilecção para gozo de férias de uma parte signifi- cativa da população portuguesa. Em 2000, o campo acolheu 29% da população do Continente que gozou férias fora da sua residên- cia habitual, sendo apenas superado pelo ambiente de praia, com

52% (DGT 2001b, 76). Em 2006, estes valores sofreram alteração, com o campo a ser o destino de eleição de apenas 12% da po- pulação que gozou férias fora da sua residência habitual, a maioria da qual (66%) foi para a praia (TP 2007c, 36).1 Por outro lado,

como veremos mais à frente, a procura do turismo em espaço rural tem aumentado de modo significativo nos últimos anos, quer no mercado nacional quer no internacional. Os factores de atracção do campo em Portugal têm sobretudo a ver com as qualidades intrínsecas e/ou os atributos reais ou imaginários do mesmo, que se crêem ausentes da actual vida citadina, incluindo as sensações de liberdade, paz, tranquilidade e espaço, bem como as paisagens pastorais, a tradição e a autenticidade. Em França e noutros países europeus, as coisas passam-se de maneira similar (cf. Lane 1994b; Moinet 2000, 72-93; Sharpley e Sharpley 1997, 60-65). Tal facto empresta validade empírica à indicação de Van der Ploeg (1997, 40) segundo a qual «a ruralidade é onde os turistas vão descobrir a contra-imagem da cidade da qual desejam escapar. A ruralidade é o ‘paraíso perdido’.»,2 No entanto, deve chamar-se a atenção para

1 A categoria «campo» não inclui, nos estudos referenciados, os ambientes de

montanha, barragens/lagos e termas. O registo de 2006 contradiz a indicação de Richard e Julia Sharpley (1997, 1), segundo a qual «na Europa, cerca de um quarto da população passa a maioria das férias grandes num destino rural; estes valores ascendem a cerca de um terço quando consideramos outros períodos de descanso […] e, em ambos os casos, estes valores duplicam se incluirmos as áreas de montanha nos destinos turísticos». A asserção relativamente ao ambiente de montanha não se regista em Portugal, país em que o mesmo acolheu apenas 5% da população que passou férias fora da sua residência habitual em 2006 (TP 2007c).

2 Van der Ploeg (1997, 66) defende que a cidade e o campo não são apenas

relacionados, i. e., opostos e combinados em termos materiais, mas também simbólicos. Através das imagens usualmente utilizadas para descrever o campo, a cultura urbana fornece informação sobre si própria. Quando as cidades são vistas como espaços feios, o rural é pastoralizado, se não reificado. Quando as cidades são vistas como uma fonte de alteração, progresso e dinamismo, o campo é visto como lugar de estagnação e os camponeses e os agricultores como retardatários.

o facto de, no caso de Portugal, esta imagem do campo ser acentuadamente idílica e idealizada, na medida em que deixa de fora problemas que afectam o mundo rural, como a pobreza, a falta de emprego e de serviços, o encerramento de escolas, a falência da agricultura, o ressurgimento dos incultos e a dureza do trabalho no campo.

No documento Casas no Campo (páginas 107-112)