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O ideal constitucionalista e o povo entre a irracionalidade e a fraqueza da vontade

O ideal constitucionalista está relacionado à limitação do poder político. No debate contemporâneo, essa limitação dirige- se, sobretudo, à atuação legislativa, que é tomada como possível violadora de direitos fundamentais. Autores que se dedicam à história e ao conceito deste tema ressaltam seu aspecto de limitação ou restrição. Nesse sentido, McIlwain, em seu clássico estudo sobre a história do constitucionalismo, sustenta que em todas as fases do constitucionalismo o elemento que mais se destaca é a “limitação legal sobre o governo”.2 Outras definições deste conceito, do mesmo modo, chamam a atenção para este elemento. Gordon sustenta que o termo constitucionalismo é

2 Cf. McILWAIN, 2007, p. 21. Todas as traduções são de minha autoria, salvo quando indicado diversamente.

usado “para denotar que o poder coercitivo do Estado é restrin- gido”.3 Sajó define o constitucionalismo como “um conjunto de princípios, modos e arranjos institucionais que foram usados tradicionalmente para limitar o governo” e que deve servir como “um limite à democracia funcionando descontroladamente”.4 Dworkin entende que o constitucionalismo é “um sistema que institui direitos individuais legais que a legislatura dominante não tem poder para anular ou comprometer”.5

Um dos modos que tem sido adotado para justificar a legitimidade das restrições constitucionais à soberania popular é o recurso à teoria do pré-compromisso, segundo a qual as limitações constitucionais são restrições autoimpostas e, por essa razão, não há comprometimento do elemento volitivo que confere legitimidade à retirada de alguns temas do debate político. Desde os anos de 1960, quando Hayek considerou que a constituição é um mecanismo que permite o “apelo do povo bêbado ao povo sóbrio”,6 a ideia do pré-compromisso cons- titucional tem sido utilizada para indicar a harmonização desses dois ideais. No final dos anos de 1970 e durante as duas décadas seguintes, a ideia de pré-compromisso voltou ao centro do debate da filosofia constitucional com a comparação que se estabeleceu entre o pré-compromisso e o mito de Ulisses, retomada de Spinoza7 e também por Holmes.8

Tal como o mito é narrado por Homero, Ulisses, em sua via- gem de retorno para Ítaca, queria ouvir o canto das sereias. Mas tinha consciência de sua falibilidade ao ouvir a melodia, então, deu ordens bastante precisas à sua tripulação (que deveria estar

3 GORDON, 1999, p. 05. 4 SAJÓ, 1999, p. xiv. 5 DWORKIN, 1995, p. 02. 6 HAYEK, 2011, p. 268. 7 Cf. SPINOZA, 1994; e ELSTER, 1989. 8 Cf. HOLMES, 1988b, p. 195-240.

com os ouvidos tapados) para atá-lo ao mastro de seu navio e não soltá-lo, nem mesmo se ele reformulasse sua intenção original e desse novas ordens. Deveria permanecer atado ao mastro até que se afastassem do perigo. Do mesmo modo, recorre-se à figura de uma pessoa sóbria que, antes de começar a beber entrega a chave do carro para um amigo por saber que ao final da noite não terá discernimento para tomar a decisão mais prudente. Os exemplos de Ulisses e do bêbado aproximam-se do ideal defen- dido pelo constitucionalismo quando estabelece que as normas constitucionais que protegem direitos, tendo sido estabelecidas por meio de decisões racionais, devem permanecer de fora da discussão política eventualmente realizada em momentos de comoção social ou falta de racionalidade.

Segundo Elster, “a estratégia de Ulisses consiste em comprometer as gerações posteriores estabelecendo uma constituição que inclua cláusulas que lhes impeçam de alterá-la facilmente”.9 Holmes, ao explicar essas metá- foras recorda que elas equiparam a constituição ao agente racional do seguinte modo:

A constituição é Pedro sóbrio enquanto o eleitorado é Pedro bêbado. Cidadãos precisam de uma constituição assim como Ulisses precisava ser atado ao seu mastro. Se fosse permitido aos eleitores conseguir aquilo que desejam, eles inevitavel- mente naufragariam. Ao vincular a si mesmos a normas rígidas, eles evitam tropeçar em seus próprios pés.10

Ao se analisar essa estratégia, percebe-se que ela reforça o caráter restritivo da constituição em termos de uma autolimita- ção para afirmar que a tensão entre constituição e democracia, reconhecida por autores do constitucionalismo moderno como Jefferson e Madison, na realidade não existe, pois a constituição

9 ELSTER, 1989, p. 160.

10 HOLMES, 1988b, p. 196. Esse não é exatamente o enfoque dado por Holmes ao pré-compromisso constitucional, como se verá a seguir. O autor usa essa definição apenas para ilustrar como o tema é frequentemente abordado.

é uma limitação colocada pelo povo sobre si mesmo, cujas res- trições são necessárias para assegurar o exercício da liberdade (dos antigos) e das liberdades (dos modernos).

A assunção dessa perspectiva está ancorada em determi- nadas concepções de constituição, povo e democracia, as quais serão analisadas a partir dos argumentos apresentados por Holmes.11 Partindo da tese apresentada por Ely em Democracy

11 A teoria de Holmes é tomada como exemplo porque apresenta de forma bastante clara o que se pode chamar de “tese constitucionalista” no que diz respeito à relação entre constituição e democracia, a saber, de que a democracia e a soberania popular devem ser limitadas a fim de proteger os direitos fundamentais. Muitos outros autores compartilham este entendimento, como por exemplo, aqueles que vem sendo chamados em países como Brasil, Itália e Espanha de neoconstitucionalistas. O neoconstitucionalismo é definido por Miguel Carbonell como um “termo ou conceito que explica um fenômeno relativamente novo dentro do Estado constitucional con- temporâneo” que pode ser caracterizado pela reunião de teorias que enfrentam as seguintes questões: a) a tentativa de explicar o surgimento de textos constitucionais, a partir da segunda metade do século XX, que não se limitam a estabelecer as competências do Estado ou a promover a separação e controle do poder político, mas também contêm uma grande quantidade de normas cujo conteúdo condiciona a atuação do Estado, ou seja, um amplo rol de direitos fundamentais apresentados como princípios ou valores; b) inovação no exercício das práticas jurisprudenciais, que passam a se deparar com a necessidade de interpretar esses princípios e valores abstratos, fazendo com que entrem em cena novas técnicas de interpretação, a ponderação, a proporcionalidade, a razoabilidade e a ampliação dos efeitos normativos dos direitos fundamentais; c) o desenvolvi- mento de novas teorias, baseadas em textos constitucionais cujo aspecto substantivo é predominante, cujo objetivo não é apenas explicar um fenômeno jurídico, mas também criá-lo, de modo que “se constitui como uma espécie de meta-garantia do ordenamento jurídico em seu conjunto.” São considerados neoconstituciona- listas autores de diversas vertentes teóricas como Luigi Ferrajoli, Gustavo Zagrebelsky, Carlos Santiago Nino, Roberty Alexy e Ronald Dworkin, entre outros. Cf. CARBONELL, 2007, p. 09-11.

and Distrust,12 segundo a qual as constituições e as restrições impostas ao debate político não são antidemocráticas, mas, ao contrário, reforçam a democracia, Holmes assume uma postura que pode ser chamada de “madisoniana”, muito embora negue uma tensão que Madison certamente reconheceu.13

Holmes, entretanto, defende um modelo de pré-compro- misso constitucional que se afasta tanto do modelo de Ulisses (pois entende que as normas constitucionais possibilitam ao invés de incapacitar a autonomia coletiva) quanto do modelo da embriaguez (pois pensa que “mesmo uma geração futura perfeitamente racional, lúcida e virtuosa poderia se beneficiar com procedimentos preestabelecidos para resolver conflitos”).14

12 John Hart Ely, que é comumente apontado como o mais influente expoente da visão procedimentalista da democracia constitucional. Em um livro de 1980, Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review, ele critica o que chama de tese dos “valores fundamentais” de acordo com a qual as cortes constitucionais têm poderes para invalidar a legislação que infringe os princípios-chave consagrados na constituição. Ely propõe um enfoque alternativo: em seu entendimento o quê as cortes constitucionais deveriam realmente fazer é assegurar que o processo político, que é o mecanismo por meio do qual esses valores são propriamente identificados, pesados e acomodados, esteja aberto para todos os pontos de vista de forma igual. As restrições constitucionais funcionariam então como proteções ao próprio pro- cesso democrático e as cortes constitucionais teriam a atribuição de guardar a democracia. Cf. ELY, 1997. Holmes parte da conclusão de Ely, mas considera que o constitucionalista, por limitar-se à análise das controvérsias jurídicas contemporâneas, não consegue o suporte teórico necessário para sustentar sua tese. Por essa razão, Holmes volta os olhos para os argumentos apresentados pela teoria política e constitucional moderna. Cf. HOLMES, 1988b, p. 198.

13 O que se chama aqui de postura “madisoniana” é a desconfiança da ação popular na política sem instituições que promovam o devido controle e coloquem limites à participação de cidadãos ou represen- tantes nas decisões coletivas.

Segundo o autor, seria mais apropriado pensar o pré-com- promisso em termos de auto paternalismo, no qual as “[p]essoas podem voluntariamente renunciar sua capacidade de escolha (em algumas matérias) a fim de realizar sua vontade (em outras matérias). A autolimitação coletiva pode ser um instrumento do autogoverno coletivo”.15 Exemplos cotidianos podem ser invocados para demonstrar como pré-compromissos individuais são feitos na forma de autopaternalismo, como quando se coloca o despertador longe da cama para obrigar-se a levantar para desligá-lo e assim evita-se que se volte a dormir, ou quando se está fazendo dieta e evita-se ter em casa alimentos calóricos. Embora considere o auto paternalismo uma categoria útil para esclarecer a função democrática das restrições constitucionais, Holmes considera que o auto paternalismo constitucional difere do auto paternalismo individual em três aspectos.

Em primeiro lugar, o auto paternalismo constitucional não deve ser pensado em termos de auto incapacitação, uma vez que as constituições possuem mecanismos que fomentam a discussão, estabelecem prazos para a tomada de decisões e acabam por melhorar a qualidade das escolhas. Sendo assim, “[q] uando uma assembleia constituinte estabelece um procedimento de decisão, ao invés de restringir a vontade preexistente, ela de fato cria uma estrutura na qual uma nação pode, pela primeira vez, ter uma vontade”.16

Em segundo lugar, em questões individuais, o auto paternalismo permite a substituição da força de vontade pela auto obrigação, como no caso da pessoa que quer emagrecer e não tem chocolates em casa. No caso de sociedades, essa substituição não se estabelece nos mesmos termos, pois a exi- gência de manutenção de uma “virtude coletiva inabalável” é algo que “sobrecarregaria a consciência individual, forçaria a padronização do caráter dos cidadãos e privaria a sociedade

15 HOLMES, 1988b, p. 237. 16 HOLMES, 1988b, p. 238.

de uma variedade extra política de selves”.17 Por essa razão, os dispositivos constitucionais, como, por exemplo, os freios e contrapesos, são concebidos como superiores à virtude pessoal dos cidadãos e à força de caráter. Em terceiro lugar, o auto paternalismo constitucional “é intencionalmente delineado para ser útil a propósitos futuros ainda desconhecidos”.18

A partir desta definição do pré-compromisso constitu- cional como auto paternalismo, pode-se chegar aos seguintes conceitos de constituição, democracia e povo:

A constituição não é apenas um mecanismo que limita o poder, ela é também um mecanismo que cria o poder e organiza as regras de seu funcionamento. Contudo, o aspecto restritivo prevalece sobre o aspecto criativo. Diz Holmes: as constituições são definidas como “ordens de restrições gigantescas motivadas por uma paixão pela prevenção. Elas são impelidas pelo desejo de escapar de resultados políticos perigosos e desagradáveis”.19 Assim, o elemento essencial aqui é que a rigidez constitucional pode criar espaço para a flexibilidade. Isso ocorre, por exemplo, quando as normas constitucionais estabelecem a estrutura de governo, garantem a participação popular no processo político, regulam o modo como os poderes são empregados, asseguram a igualdade de tratamento. Desse modo, no entendimento de Holmes, as normas constitucionais possibilitam ao invés de incapacitar a democracia. Por essa razão, o autor considera insatisfatória a identificação do constitucionalismo unicamente com a limitação do poder. Nesse sentido, o modelo de pré-com- promisso de Ulisses não pode ser tomado como análogo ao ato

17 HOLMES, 1988b, p. 238. Itálico acrescentado na palavra não traduzida do original.

18 HOLMES, 1988b, p. 238.

19 SAJÓ, 1999, x. Trata-se aqui do Prefácio elaborado por Holmes para o livro de András Sajó Limiting Government: An Introduction to Constitutionalism.

de criar e ratificar constituições, exatamente por centrar-se nos aspectos restritivos e não abarcar o aspecto criativo e organizacional inerente às constituições.

Como resultado, tem-se que embora Holmes sustente que o constitucionalismo tem como uma de suas funções precípuas o estabelecimento de limites à democracia a fim de preservar os direitos fundamentais, esse não é seu único papel, haja vista que a própria constituição é compreendida como um mecanismo capaz fortalecer a democracia na medida em que cria as ins- tituições nas quais se realizarão as práticas democráticas. Por essa razão, pode-se dizer que ele nega a existência da tensão entre constituição e democracia.20

O conceito de democracia adotado pelo constitucionalismo é delineado por Holmes a partir de dois aspectos complemen- tares, a saber: a retirada de alguns temas do debate político (gag rules) e a autovinculação (self-binding). O primeiro aspecto é defendido em Gag rules or politics of omission, o segundo em

Precommitment and the paradox of democracy, ambos de 1988.

Nesses textos, Holmes ressalta os benefícios que podem advir para a vida pública excluindo-se certas questões, sobretudo aquelas extremamente controvertidas, da discussão política.

20 Nesse sentido também é o posicionamento de Dworkin. De acordo com o autor, para saber se a democracia prevalece em um país deve ser perguntado o que suas leis dizem e não quem, como e quando estas leis são feitas. As leis básicas devem prevenir o uso opressivo do poder do Estado, assim como discriminações legais arbitrárias, devem respeitar a liberdade de pensamento, de expressão, de asso- ciação e, devem ainda assegurar a independência moral e intelec- tual de cada cidadão. Assim sendo, Dworkin entende que o conflito entre direitos individuais e autogoverno do povo não ocorre, pois a liberdade depende da relação entre o governo e todo o conjunto de cidadãos considerados em sua coletividade e não do governo e cada indivíduo. Por isso, a liberdade positiva é aquela que vigora quando o povo controla aqueles que governam, e não o contrário; e é esta liberdade que se afirma quando se impede que a maioria faça valer a sua vontade. Cf. DWORKIN, 2006, p. 32-33.

Nesse sentido, seria o conceito negativo de liberdade, ou seja, a ausência de interferência em alguns campos, que daria o tom para a democracia.

Apoiando-se na tese de Rawls,21 Holmes sustenta que a exclusão de alguns temas da agenda política se justificaria porque para se estabelecer uma concepção de justiça que possa ser aceita por todos dos membros de uma sociedade diversificada é preciso abstrair questões que suscitam um desacordo radical. Sendo assim, questões afetas à religião, por exemplo, devem ficar fora da pauta, haja vista a dificuldade de se chegar a um acordo sobre elas. Do mesmo modo, ele menciona o aborto, tema extremamente controvertido para o qual argumentos (“pró- vida” e “pró-escolha”) podem ser suficientemente fortes para sustentar um desacordo genuíno entre os opositores. A colocação dessa espécie de temas na pauta, no entendimento de Holmes, apenas promoveria o retardamento da discussão de outros temas para os quais um acordo seria possível. Nesse sentido, “direitos privados contribuem vitalmente para o governo democrático expurgando disputas insolúveis da esfera pública”.22 A função desses direitos não é apenas proteger o espaço privado dos indivíduos, mas liberar o espaço público.

A necessidade de imposição de limites está relacionada à concepção que o povo carece de uma virtude inabalável ou mesmo de fibra moral para não causar a si mesmo ou às gerações futuras um mal irreparável ou de difícil reparação, como por exemplo, a auto escravidão que, aliás, seria extremamente contraditória na medida em que por meio de um ato voluntário um indivíduo (ou povo) abdicaria do direito de voluntariamente concordar ou discordar de algo. Assim, os limites ou obrigações impostos pela constituição são um parâmetro a partir do qual os

21 Holmes está se referindo ao seguinte texto de RAWLS: Justice as fair- ness: political not metaphisical. In: Philosophy and Public Affairs, vol. 14, nº 3 (Summer, 1985) 223-51.

[c]idadãos podem somente reforçar sua vontade por meio de eleições mantidas sobre a base de um plano de distribuição preexistente, um plano que pode ser injusto ou obsoleto. Como resultado, a responsabilidade pela redistribuição deve ser alojada fora da legislatura popularmente eleita (por exemplo, na Corte). Para preservar a democracia, votantes devem parcialmente abdicar do poder de distribuição, isto é, devem removê-lo das mãos dos representantes eleitos e responsáveis. Este é um notável exemplo do paradoxo da democracia: cidadãos podem aumentar seu poder atando suas próprias mãos. A democratização limitada é útil para a continuidade do governo democrático.23

Desse modo, “para preservar a voluntariedade, a própria voluntariedade deve ser restringida”.24 A principal caracterís- tica é então que, para que a democracia exista, a própria ação democrática precisa ser limitada. A democracia, diz Holmes, “nunca é simplesmente o governo do povo, mas sempre o governo do povo dentro de certos canais predeterminados, de acordo com certos procedimentos preestabelecidos (...)”.25 A necessidade de imposição de limites está relacionada à concepção de indivíduo e de povo.

A definição do conceito de povo é de fundamental impor- tância para a discussão acerca da relação entre constituição e democracia. Para examinar esse conceito nas teorias cons- titucionalistas aqui estudadas, adoto a distinção feita por Pinzani entre povo em sentido diacrônico (povo entendido de forma abstrata, compreende a geração presente, as passadas e as futuras) e povo em sentido sincrônico (indivíduos concretos que formam em um dado momento o corpo de cidadãos).26 Pinzani equipara o povo diacrônico à vontade geral de Rousseau, aquela que transcende as vontades particulares dos indivíduos, e o povo sincrônico à vontade de todos, equivalente à vontade de

23 HOLMES, 1988b, p. 232. 24 HOLMES, 1988b, 239. 25 HOLMES, 1988b, 231. 26 PINZANI, 2013, p. 135-168.

todos os indivíduos concretos que formam o corpo de cida- dãos em um determinado momento histórico. Segundo ele, a dificuldade de se assumir a perspectiva do povo diacrônico é a de não se conseguir chegar à definição de vontade geral, pois se torna difícil até mesmo estabelecer quem é o povo; o risco da perspectiva do povo sincrônico seria o da tirania da maioria ou, para evitar que a maioria seja tirânica, retira-se da agenda de debate um rol de temas (os direitos fundamen- tais protegidos constitucionalmente) e chega-se justamente ao conflito entre constituição e democracia.

Nas teorias que equiparam a constituição a um pré-com- promisso observa-se uma concepção diacrônica de povo, haja vista o povo ser pensado a partir dos direitos assegurados pelas gerações passadas e que devem ser preservados pela geração presente para as gerações futuras. Predomina uma concepção pessimista da natureza humana, que joga com a dicotomia lucidez/embriaguez, força e fraqueza da vontade, de modo que a lucidez e a vontade racional encontram-se sempre presentes naqueles que erigem as restrições consti- tucionais e abandonam os que almejam mudanças. Ou seja, uma racionalidade rara deve regular a vida daqueles que, na maior parte do tempo, não são racionais.

Holmes afasta o argumento da irracionalidade do povo enquanto agente político, mas sua defesa do pré-compromisso como auto paternalismo ainda guarda certa desconfiança da capacidade de autonomia coletiva, uma vez que embora o auto paternalismo não se apoie na irracionalidade do agente, ele parece se basear em uma espécie de fraqueza da vontade, que também compromete a ideia de autonomia. Contudo, em seu entendimento o pré-compromisso constitucional coaduna-se com o autogoverno na medida em que as restrições constitu- cionais são consideradas restrições auto impostas.

A leitura constitucionalista da democracia, nos termos daquela feita por Holmes, embora atribua aos cidadãos facul- dades morais que os capacitam ao compartilhamento dos mais

elevados princípios políticos de uma determinada sociedade, fia-se mais nas instituições políticas criadas pela constitui- ção do que no povo para efetuar o controle do poder político, principalmente no poder judiciário que, por meio da corte constitucional, é a instituição que assume maior relevância nessas teorias. Essa relevância fica ainda mais evidente quando se trata de assegurar direitos e liberdades fundamentais, os quais são colocados como limites ao exercício da soberania popular e cujos mecanismos de proteção são essencialmente jurídicos, quais sejam, sua interpretação e ponderação pelo poder judiciário. Compreendidos desse modo, não obstante o argumento do pré-compromisso constitucional, os direi-