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Estabelece a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, que todos são iguais perante a lei, garantidos aos brasileiros e estrangeiros a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade.

Nesse sentido, Carolina Alves de Souza Lima aduz que, ao consagrar o direito à vida, a nossa Carta Magna não fez qualquer distinção entre a vida intra e extra-uterina, além de não atribuir valor maior à vida extra-uterina em relação à intra-uterina, como fez a legislação infraconstitucional, destacando-se aí a legislação penal.62

Além disso, a República Federativa do Brasil é signatária de tratados internacionais de proteção dos direitos humanos que tutelam o direito à vida. Dentre eles, destaca-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que preceitua, em seu art. 3º, que ―toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal‖.

Já o art. 6º, I do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, estabelece que: ―O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deve ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser privado da vida arbitrariamente‖.

Nesse sentido, o Pacto de San Jose da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, incorporado à legislação nacional com a promulgação do Decreto nº 678/92, é taxativo ao determinar, em seu art. 1º, § 2º, que ―pessoa é todo ser humano‖, não estabelecendo, assim, qualquer desigualdade de trato para com a vida intra ou extra uterina.

Mais adiante em seu art. 4º, § 1º, expressamente anuncia: ―Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.‖

Para o constitucionalista José Afonso da Silva63, a vida constitui fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, se não erigisse a vida humana em um desses direitos.

62 LIMA, op. cit., p.35. 63

Na lição de Maria Helena Diniz64, a vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Logo, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ele o de liberdade religiosa, de integridade física ou mental.

Para Ives Gandra da Silva Martins65, o direito à vida é primário, personalíssimo, essencial, absoluto, irrenunciável, inviolável, imprescritível, indisponível e intangível, sem o qual todos os outros direitos subjetivos perderiam o interesse para o indivíduo.

Contrariamente, destacamos a posição do professor José Roque Junges66 para quem ―a possibilidade de a vida ser um valor moral absoluto só se daria se a vida nunca entrasse em conflito com outros bens e valores e superasse sempre em valor todo bem ou conjunto de bens que conflitassem com ela. Ora, isto não acontece. Ocorre antes o contrário.‖

Com efeito, adotando o raciocínio de Diniz e Gandra, teríamos que os dispositivos normativos do Código Penal Brasileiro que tratam da possibilidade de aborto legal não teriam sequer sido recepcionados pela Constituição Federal de 1988, posto que equivalentes ao assassinato.67

Como já bem destacou o Ministro Joaquim Barbosa Gomes68, a tutela da vida humana experimenta graus diferenciados, de modo que as diversas fases do ciclo vital, desde a fecundação do óvulo, com a posterior gestação, o nascimento, o desenvolvimento e, finalmente, a morte do ser humano, recebem do ordenamento jurídico regimes jurídicos diferenciados.

Não é por outra razão que a lei distingue (inclusive com penas diversas) os crimes de aborto, de infanticídio e de homicídio.69

No que tange ao absolutismo do direito à vida, a histórica demonstra que esse direito fundamental não é nem nunca foi tido como supremo. Entre os povos antigos, por

64 DINIZ, Maria Helena.O estatuto atual do biodireito.3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.24-25.

65 MARTINS, Ives Gandra da Silva. O direito constitucional comparado e a inviolabilidade da vida humana.In:

PENTEADO, Jaques de Camargo e DIP, Ricardo Henry Marques (Orgs.).A vida dos direitos humanos: bioética médica e jurídica. Porto Alegre: SAFe, 1999, p. 133-137.

66

JUNGES, José Roque. Bioética: Perspectivas e desafios. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1995, p.117.

67

PEIXOTO, Francisco Davi Fernandes. Direitos fundamentais da mulher: um olhar sobre a anencefalia..Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI, p. 3608.

68GOMES, Joaquim Barbosa, In, Daniel; PIOVESAN, Flávia. (Orgs.). In: Nos limites da vida: aborto, clonagem

e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 90.

69

exemplo, os valores espirituais ou sagrados eram tidos como superiores aos valores inerentes à vida.70

Aliás, na clássica obra O Federalista, Alexander Hamilton71, citando o jurista britânico Blackstone, salienta que mais grave e perigoso do que matar um homem é prendê-lo secretamente, confiando ao esquecimento em seus tormentos particulares, o que demonstra que a liberdade foi, durante muito tempo, mais valorizada do que a vida.

Ora, como bem aduz Carolina Alves de Souza Lima72 não se discute que o ordenamento jurídico brasileiro proteja o direito à vida como fundamental. Entretanto, cabe à legislação infraconstitucional regulamentar essa proteção, sempre com respeito à Constituição.

A título de exemplo, a legislação penal tipifica os crimes contra a vida e concomitantemente permite a incidência das causas de exclusão da ilicitude, comprovando que os direitos fundamentais, quando em situação real de conflito, podem ser restringidos.73

Assim, pode-se afirmar que o bem jurídico vida nem sempre prevalece quando em conflito como outros bens também constitucionalmente protegidos, como se verá ao longo do presente trabalho. Tratam-se de situações específicas e excepcionais; no entanto, acolhidas pela ordem jurídica constitucional.

Aliás, destaca-se que o fato de a Constituição ter estabelecido a inviolabilidade do direito à vida não significa que seja absoluto. Inviolabilidade não é sinônimo de absolutismo, uma vez que a própria Carta Magna, em seu art. 5º. XLVII, admite a pena de morte em caso de guerra declarada por agressão estrangeira.74

Reforçando esse entendimento, temos a já citada Convenção Americana de Direitos Humanos, que aponta mais uma hipótese de exceção, ao preceituar que ―o direito à vida deve ser protegido pela lei e, em geral, desde a concepção‖.

No que concerne a expressão ―em geral‖, constante do referido artigo, existe a possibilidade de se interpretar que se há uma regra geral que implica a observância do respeito do direito à vida desde a concepção, há da mesma forma, uma exceção que autoriza, em certos

70

PEIXOTO, op. cit., p. 3608.

71

HAMILTON, Alexander.O Federalista-Número LXXXIV: Sobre outras objeções diversas. In MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, Jonh.Os artigos federalistas. Maria Luisa de A. Borges. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1993, p.520.

72

LIMA, op. cit., p.39.

73 Idem, ibidem.

casos, a não observação do preceito. É nesse sentido a interpretação de muitos Estados tendentes a legalizar o aborto.75

Em sentido contrário a esse entendimento, em voz isolada, posiciona-se Hélio Bicudo76, para quem ―...a Convenção de 1969 quis simplesmente afirmar que o direito à vida deve ser protegido ordinariamente, comumente (em geral) a partir do momento da concepção.‖

Destarte, pode-se afirmar que, inegavelmente a Convenção Americana de Direitos Humanos posicionou-se a favor da teoria concepcionista, porém não impôs que os países signatários adotassem essa teoria, mas apenas em geral, ou seja, admitindo exceções. Esse é o entendimento de Julian Emmerick77, que aduz que tal redação foi adotada a fim de harmonizar-se com as legislações vigentes nos países que admitiam o aborto em algumas hipóteses.

Nesse sentido, posiciona-se também Reinaldo Pereira e Silva78, que defende que, embora a Constituição de 1988 não tenha definido a partir de que momento é garantida a proteção do direito à vida, tal momento estaria indicado no art. 4º do Pacto de San Jose da Costa Rica. Assim, o Brasil teria adotado a teoria concepcionista.

Conclui-se, portanto que, à luz do ordenamento jurídico pátrio, o anencéfalo, como qualquer ser humano, goza de proteção à vida desde o momento da concepção, todavia podem existir situações excepcionais nas quais prevaleceram outros bens também constitucionalmente protegidos.79