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O início de uma relação: arqueologia e restauro

2.1 A PRESERVAÇÃO E O RESTAURO NO CONTEXTO INTERNACIONAL E

2.1.6 O início de uma relação: arqueologia e restauro

Somaram-se a Ruskin outros críticos. Dentre eles, destaque para Camilo Boito, que instituiu o Restauro Moderno. Dentre outros pontos, ele afirmou que as intervenções deveriam ser realizadas com um caráter diverso do monumento, de modo a não enganar o olhar do observador. Como documento da história do homem, os monumentos deveriam resguardar todas as informações sobre sua vida:

29 Escritor inglês nascido em 1819 e falecido em 1900. Ficou muito conhecido por seus trabalhos de

arquitetura e de crítico de arte.

30 Escritor britânico nascido em 1788 e falecido em 1824. Um dos maiores personagens do Romantismo,

deixou entre suas maiores obras o livro Don Juan.

31 Escritora londrina, nascida em 1797 e falecida em 1851. Conhecida principalmente pela sua novela

gótica Frankenstein.

32 Lord Byron assim demonstrava seu amor, ou melhor, pessimismo romântico pelo antigo no Poema

The Age of Bronze: “The "good old times" — all times, when old, are good” (1837). Pessimismo que assumia durante o Romantismo um sentimento de inadequação à realidade e desgosto de viver (BYRON, 2008).

marcas do tempo, acréscimos e modificações. Isto é, Boito oscilava sua teoria entre le-Duc e Ruskin.

Excetuando-se a Inglaterra, no entanto, praticamente por toda Europa o princípio mais aceito foi aquele propagado por Viollet-le-Duc. Talvez um dos casos mais extremos tenha sido aquele de Cnossos, no qual sir Arthur Evans praticamente materializou imagens arquitetônicas que ele havia concebido, transformando o sítio arqueológico radicalmente, quase o caracterizando como um ‘set’ cinematográfico nos dias atuais.

A Arqueologia durante este tempo tentava se firmar no campo científico33. No

fim do século XIX a Arqueologia estava concentrada em resolver os problemas da Pré-História e da História Antiga Oriental. A partir das teorias evolucionistas de Darwin as investigações dos restos de sítios paleolíticos na Europa Ocidental teve início as classificações atuais: Neandertal, Cro-magnon e homo erectus. Fora da Europa, grandes escavações começaram a desvendar o passado do Egito, Mesopotâmia e no Mar Egeu.

Do ponto de vista teórico pouca mudança havia acontecido desde a publicação da síntese de Christian Thomsen34, em 1836, precursor da classificação

estratigráfica. Logo, ainda que avanços consideráveis tivessem sido dados com relação a teorias sociológicas na Arqueologia e que fizeram com que fosse reconhecida importância de conhecimento arqueológico para o restauro de edifícios arqueológicos, as ferramentas científicas necessárias e o perfil profissional eram vagos.

As indagações arqueológicas utilizadas neste período para compreender o processo evolutivo de um edifício eram ainda vagas e tiradas das bibliografias e documentações historiográficas, acompanhadas de análises críticas de estilo analógico feito por arquitetos. A Arqueologia era até então carregada de um viés eminentemente literário e artístico, com pinceladas românticas. Concentrava seu

33 Desde o século XVII, pesquisadores vinham incorporando um crescente número de técnicas e

métodos geocientíficos, como o estratigráfico e o geocronológico. A Geologia Arqueológica, criada no fim do século XIX, utiliza métodos e técnicas do campo das geociências para investigar temas relacionados à Arqueologia.

34 Christian Jürgensen Thomsen, arqueólogo dinamarquês, nascido em 1788 e falecido em 1865.

Propôs um período anterior ao aparecimento da escrita, classificando a Pré-História em Idade da Pedra, Idade do Bronze e Idade do Ferro.

discurso tanto no método científico, como no método sistemático e exaustivo dos diferentes estados culturais da Pré-História e da Antiguidade, assim como nos processos evolutivos (MANNACORDA, 1982; TRIGGER, 2004).

Mesmo assim algumas instituições para defesa do patrimônio arqueológico começaram a surgir em todo o mundo. Em Portugal, por exemplo, a Sociedade Archeologica Lusitana, em 1850, e a Comissão Geológica do reino, em 1857, podem ser considerados verdadeiros marcos fundadores da ciência arqueológica. Foi realizada também a primeira grande intervenção arqueológica em solo português no sítio Tróia de Setúbal. Pouco tempo depois é criada a Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP) em 1863.

Importante destacar que após a Guerra Peninsular e a Guerra Civil, aquela última associação se tornou a primeira em defesa do patrimônio do país, contando com o apoio da Casa Real e de outras personalidades destacadas do regime liberal. A partir de sua atuação foram elaboradas as primeiras listas de edifícios a proteger e a classificar como Monumentos Nacionais, e salvas obras de arte em risco de destruição; posteriormente conduzidas para formar o mais antigo museu de história da Arte e Arqueologia daquele país.

Como Tunbridge e Ashworth observaram em sua obra Dissonant Heritage (1996) não chega a ser coincidência que a ascensão das nações europeias tenha ocorrido concomitantemente com o despertar do interesse sobre artefatos histórico, arqueológico, artístico e mesmo geológico que poderiam nos contar a estória de uma nação e de um povo. Fato que, como já relatado, teve início no século XVIII e se desenvolveu vertiginosamente no XIX35.

Já na Inglaterra, Willian Morris (1834-1896), atuou fortemente em diversas campanhas preservacionistas, tendo procurado alargar as discussões para a paisagem das common lands36 inglesas.

A paixão deste pesquisador é contada ter surgida a partir de um passeio a cavalo, quando observou uma igreja ser parcialmente destruída para restauração.

35 Importante notar que na África ocidental, os movimentos de independência e o surgimento de

algumas nações pós-coloniais foram articuladas através de instituições culturais. O curioso é notar que parte destas instituições foram introduzidas pelos próprios colonizadores e em alguns casos apoiados pelo governo colonial (BASU, 2008).

36 Terra coletiva ou de uma pessoa, sobre a qual outras pessoas possuem direitos como pastagem de

Sua atuação forte em defesa do patrimônio edificado culminou com a proposta de criação urgente de uma associação. Esta proposta foi divulgada no semanário The Athenaeum e alertava que era necessário “observar os monumentos antigos, para protegê-los contra todos “os restauros” que signifique mais do que proteger contra o vento e a umidade, e de toda forma, despertar um sentimento de que nossas edificações antigas não são meramente brinquedos eclesiásticos, mas monumentos sagrados do crescimento e da esperança da nação” (MORRIS in COWELL, 2008, p. 76).

Este intelectual tornou-se assim o símbolo máximo do movimento ‘anti-

raspagem’37, que se opunha à prática corrente de restauro a partir da raspagem de

superfícies gastas.

Surge assim, em 1878, a Sociedade para Proteção de Edificações Antigas (SPAB)38, que em seu manifesto aponta que “Tendo em vista a falsificação

deplorável que tem ocorrido nas edificações antigas em nome do restauro, esta Sociedade dará apoio para todos aqueles que estejam interessados em arte, arqueologia e história” (COWELL, 2008, p. 76).

Assim o SPAB surgia como um movimento que tinha como um dos seus principais objetivos preservar qualquer coisa que pudesse ser observada como artística, pitoresca, antiga e substancial. Em seus primeiros trabalhos a organização buscou atuar em igrejas históricas como a Saint Mary em Londres, ou mesmo a de São Marco, em Veneza, Itália.

O próprio Morris durante sua atuação em defesa do patrimônio buscou sempre deixar claro que as edificações não pertenciam apenas ao homem presente, mas também a todos aqueles que surgiriam depois de nós. As implicações deste raciocínio eram evidentes: a vigilância através do cuidado e proteção são uma ação constante. Era necessário mudar o foco, isto é, a Proteção se sobrepõe ao Restauro.

Este enfoque atraiu críticos que não enxergavam com bons olhos a mudança de paradigma. Robert Kerr, por exemplo, um dos fundadores da Associação de

37O termo em inglês é ‘anti-scrape’, onde o termo scrape significa o ato de raspar.

38 Manifesto de Fundação da SPAB. Para visualizar a versão completo recomenda-se a versão em

Arquitetos, escreveu, em 1874, que o enfoque do SPAB era totalmente indiscriminado, levando ao extremo as ações de preservação.

A própria Igreja Anglicana em vários momentos condenou a postura da SPAB de não serem abertos às necessidades de modernização ou melhorias (tornar mais agradáveis) os lugares de adoração religiosos que precisam ser adaptados para novos fins.

Mesmo assim, apesar das controvérsias e de não ter grande atraído muitos membros (até 1910 eram apenas 443), a SPAB marcou definitivamente a institucionalização das ações de preservação no mundo ao fixar grande parte da reflexão sobre patrimônio arquitetônico. Fenômenos que se expandiria ao longo do século XX.