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2. INDIVÍDUO, CULTURA E CONSUMO.

2.1 O INDIVÌDUO

A concepção de indivíduo deve ser vista, antes de tudo, como uma construção social do

mundo moderno. Sua ideia, fundamentada essencialmente em meados dos séculos XVII e XVIII6,

articula as noções de indivíduo sob a perspectiva de uma unidade egóica centrada em ações reflexivas substancializadas a partir de uma concepção de existência única e que enfatiza o valor de sua própria singularidade. “O individualismo é uma categoria que toma a substância última da personalidade, elevando essa abstração, simultaneamente, como valor último da personalidade.” (SIMMEL, 1998, p. 4).

Essa ideia é concebida em contraponto à ideia das “grandes narrativas” em que predominavam valores rígidos e determinações normativas de ordenamento metafísico (RETONDAR, 2008; LYOTARD, 1998). Ao longo dos séculos XIX e XX a concepção de indivíduo foi sendo abordada sob um perspectiva diferente, mais estrutural, segundo a qual o seu papel resume-se a uma atuação passiva do processo histórico. O Estado-nacional e a atividade industrial ocupavam espaços de destaque nas abordagens dos diversos autores deste período. Em Simmel, ao mesmo tempo em que no novo século o homem era um indivíduo liberto das restrições do Estado e da Igreja, dono de sua história, responsável por suas decisões, e absolutamente livre para executar suas escolhas de acordo com sua vontade, ele estava irremediavelmente exposto à necessidade de especialização a fim de encontrar sua identidade no “novo mundo”.

Na busca de uma autodefinição entram os temas das escolhas, dos gostos, dos desejos e das emoções, que permeiam o debate acerca das novas configurações das individualidades. O indivíduo enquanto um ser único dotado de autonomia nas decisões torna-se uma concepção corrente nas sociedades ocidentais industrializadas. No entanto, ainda sobre as teorias do consumo, se deixou muito a desejar nas mudanças de paradigmas das análises. Mas, visto que o objetivo da análise é muito menos sob um ponto de vista sócio-econômico do que uma abordagem das formas que as mercadorias tomam enquanto projeto individual, apresento uma abordagem teórica distinta daquelas colocadas em moldes deterministas e fundamentadas a partir de estratégias emulativas de bases econômico-estruturais, que acreditam serem as regras do capital toda a base de sustentação da sociedade de consumo.

Em meados do século XVII na Inglaterra já se podia traçar alguns contornos da importância das mercadorias manufaturadas na relação entre indivíduos, mas grande parte da literatura da época foi voltada para a compreensão das consequências da produção e não conseguiam dar conta de todas as ordens do fenômeno do consumo, dando ao tema abordagens tautológicas que apenas se referem a observações superficiais sobre o assunto. Em termos de orientações dos consumidores 6

Remete as ideias emblemáticas do Iluminismo, do Renascença e da Reforma Protestante. Desde Descartes e kant, atinge no século XIX seu ápice no movimento romântico, por definição, a exaltação do ego.

para a compra de determinadas mercadorias, muitos teóricos do consumo, com destaque a Veblen e Sombart, tinham uma forte tendência a restringir o “motivo” do consumo às emoções de cunho psicológico embasadas em interpretações como luxo, disputa e ambição como uma tendência do indivíduo para aumentar suas satisfações. Ao contrário disso, a proposta teórico-metodológica central do trabalho restringiu-se às estreitas relações entre os processos sociais contemporâneos e os modos de apreensão (sensorial e cognitivo) individuais. Toma fundamentalmente como unidades de análise dois princípios: a já anteriormente discutida mercadoria, e as noções de indivíduo. A primeira, sumariamente, pode ser vista como uma unidade referencial que participa ativamente do processo de socialização deste segundo. O indivíduo, por sua vez, é visto como um participante interativo na formulação dos conteúdos retóricos e classificatórios do primeiro.

A captação desses conteúdos retóricos se concretiza mediante as justificativas individuais que apresentam um caráter muito particularizado e que respondem a um posicionamento do indivíduo centrados na imagem de um “eu”, ou seja, em justificativas fundamentadas a partir de experiências individuais que figuram na fala dos entrevistados através da primeira pessoa do singular. Centrando-se na análise dos “motivos” que levam às escolhas de determinadas mercadorias em detrimento de outras, devemos, nos ater a essas motivações enquanto um conceito, ou unidade perceptiva que é adquirida socialmente, e que, se apresenta sob a forma de justificativas. No que tange ao conteúdo destas justificativas, e nos elementos envolvidos em sua elaboração, é importante que se tenha clareza de um importante princípio direcionado aos estudos sobre consumo na contemporaneidade: o hedonismo moderno, cuja principal característica a centralidade dada aos estímulos emocionais promovidas por um estado prazeroso individual (CAMPBELL, 2001).

Campbell, em sua obra intitulada “A ética romântica e o espírito do consumismo moderno”, desenvolve frutíferos princípios que auxiliam o entendimento do fenômeno do consumo contemporâneo. Ao contrário de muitos autores, Colin Campbell atenta para o fato de que não há uma descontinuidade e dissociação entre produção e consumo, e aponta a importância do consumo enquanto orientação de conduta individual irredutível às abordagens que priorizam as bases econômicas para a definição de papéis sociais. Sua principal preocupação era “traçar a maneira pelo qual as mudanças nas concepções da verdade, do bom e do belo por parte da sociedade influenciam os padrões de comportamento, não de qualquer forma direta e prescritiva, mas de modo pelo qual os ideais orientam a conduta que confirma o caráter.” (CAMPBELL, 2001, p. 24).

Sua proposta consiste em correlacionar dois momentos chave: o egoísmo hedonístico e o idealismo romântico. Segundo o autor, o espírito do consumismo moderno tem por base o

hedonismo autoilusivo, que se caracteriza por um anseio de experimentar na realidade os prazeres criados e desfrutados na imaginação, entretendo os indivíduos a partir de agradáveis estímulos relacionados a uma atitude sobre seu próprio valor reflexivamente elaborado “O hedonismo moderno apresenta todos os indivíduos com a possibilidade de ser o seu próprio déspota, exercendo total controle sobre os estímulos que experimentam e, consequentemente, sobre o prazer que obtém” (CAMPBELL, 2001, p.112)

Concomitantemente, o consumismo moderno também apresenta composições com base nos ensinos românticos, nas distinções entre o bem e o mal, do belo e do feio, apresentando uma das principais características do Romantismo, que é o caráter idealista de suas concepções. Ambos mantêm afinidades eletivas com as experiências que constroem e modelam formas tipificadas da vida moderna, como aquelas da moda e de tantas outras esferas que buscam com avidez novas experiências.

Em termos de estética, ou melhor, das imagens das mercadorias, podemos dizer que a criação de um ideal está também direcionado a uma conduta orientada para realização de um imaginário egoístico, mostrando que o “idealismo”, em vista do cumprimento de um ideal, deve responder a uma dimensão de expectativas, simultaneamente ao resultado da elaboração reflexiva dessas imagens no imaginário do consumidor. Esta lógica relacional que sustenta seu argumento é homóloga aos estudos de Weber (1987) acerca da relação entre o desenvolvimento da tradição religiosa e a vida social econômica.

Assim como Weber, Campbell sustenta a construção de uma teoria social embasada no sujeito como o centro realizador da atividade social, ou seja, a ação social se faz a partir do sentido subjetivo que é concebido pelo sujeito da ação. Quero dizer que, a subjetividade em Weber não é um dado a priori, mas um contorno significativo segundo o qual o indivíduo realiza ações sociais e atribui sentido a ela. Ela está, portanto, diretamente relacionada com as formas de interação com o mundo e com as outras subjetividades. As relações intersubjetivas, então, dão sentido às ações individuais no sentido de representar e dar sentido a partir de uma construção mútua. O sujeito, desse modo, confere um sentido subjetivo a sua ação, reciprocamente orientado, encerrando assim um processo de significação cultural. Porém, anterior aos modelos de orientação que conferem uma comunicabilidade com um “outro”, há uma importante atividade significativa centrada na autopercepção do sujeito, o que confere a ele orientações pautadas na satisfação e nos prazeres individuais.

deslocamento das emoções que passaram a se localizar “dentro” dos indivíduos, ao contrário do que se configurava, por exemplo, na Idade Média, em que a ordem de organização das emoções era estabelecida por meio de uma conexão necessária entre o lugar do homem no mundo e a sua reação a este de acordo com uma ordem metafísica de organização da realidade. Houve um desencantamento do mundo externo e um encantamento do mundo psíquico interior. O self, o ego, se estabeleceu como imperativo crucial no reordenamento das formas de experiências, incluindo transformações das crenças, ações, preferências estéticas e respostas a estímulos emocionais. O que anteriormente era automaticamente ditado pelas circunstâncias, agora é “determinado” pelos indivíduos.

O princípio de uma ética e de uma moral hedonista, centradas na incitação subjetiva através da experiência, promove um panorama diferenciado acerca das teorias do consumo, principalmente no que tange a relação entre a satisfação e o prazer. Ambas são atividades muito distintas.

A primeira sugere um processo de privação que tem por princípio o fim de restaurar um equilíbrio perturbado, relacionando-se muito mais com um estado do ser, que é carente de algo de que foi privado. O prazer, por sua vez, implica uma disposição motivacional, de experimentação de estímulos em que o indivíduo, no dizer de Campbell (2001), é “puxado” de fora com o fim de experimentar um estímulo maior.

A satisfação, imbricada aos termos de perdas e carências da experiência do indivíduo, se mistura aos estímulos do desejo e forma, mesmo que paradoxalmente, uma vivência de satisfação e prazer orientados para um modo de vida hedonista. O prazer necessita de mudanças constantes; não se pode sentir prazer em apenas um estímulo repetidamente, por isso, se aliada ao princípio de necessidade, atinge uma hiato importante para a manutenção do estado de insaciabilidade: o hiato entre o necessitar e o alcançar. Um exemplo dessa operação pode ser visto no conceito de paixão autoconsumptiva de Sennett (2006), que ilustra bem esse momento do encanto e do desencanto. Segundo ele, uma das características dessa paixão consumptiva, a imagística, se refere a uma impulsão a algo no seu momento primeiro no consumo; para ali convergem expectativas provenientes da imaginação do indivíduo. O objeto consumido perde seu valor momentos depois de sua compra, caindo na obsolescência, mostrando assim que essa “paixão” se sustenta de um imaginário de completude, mas que não passa de um desejo que se finda no efêmero, no passageiro. Frente à tentativa de muitos autores de desvendar a gênese do espírito consumista, assume-se, em base a inúmeros relatos anteriores à Revolução Industrial, que a insaciabilidade é uma das características humanas que contemplam estruturalmente o universo do consumo. Em outras

palavras, a questão da insaciabilidade constante é uma marcante característica das sociedades de consumo e alia-se de forma efetiva na junção da satisfação imbricada às qualidades do ser, e do prazer, referido à qualidade das experiências. Para uma melhor visualização em termos analíticos, podemos pensar, por exemplo, uma mercadoria comum nos dias atuais, mas que, em um primeiro momento, aparece como um artigo luxo, algo secundário, em termo de necessidade como é o caso do celular em meados dos anos 90. Porém, com o avançar dos anos, o que antes era experimentado como um artigo de luxo, que incitava novas experiências, como as de exclusividade, agora se tornara algo “necessário”, quase como uma extensão do ser que, se privado, responde a um estado de carência que busca o re-estabelecimento do equilíbrio. Percebemos então que a mercadoria em contextos de sociedades de consumo hedonistas está situada em uma corrente de experiências muito fluída e sempre particularizada que apenas pode ser apreendida em termos históricos e localizados.

Há, portanto, mercadorias em termos sócio-históricos, com valores que tornaram-se uma necessidade e consolidaram padrões que eram anteriormente vistos como um luxo. Ao estipular padrões para que sejam estabelecidos sob a forma de necessidade, como ocorrem as transformações destes em experiência de desejo e prazer que garantem a rotatividade e a volatilidade da mercadoria? Richard Sennett, em sua obra “A cultura no novo capitalismo”, propõe neste sentido que, a partir da construção de uma plataforma estabelecida que sugere um padrão básico de mercadoria, muitas das vezes atrelada a um valor “utilitário”, são inseridas algumas alterações que distinguem os produtos nos espaços de exposição, como por exemplo, as vitrines ou supermercados. A essa alteração o autor vai chamar de laminação de ouro (SENNETT, 2006), que consiste no princípio de que, mesmo compartilhando uma plataforma padrão de mercadoria, a indústria investe nos diferenciais que esse produto pode levar ao consumidor, flexibilizando ao ponto de satisfazer desejos pessoais “customizados”, expressando gostos personalizados, novas experiências que ele pode estimular. É nesse sentido que podemos ver que alterações de embalagens, cores e caracteres secundários ao principal uso do produto acabam por ocupar um papel importante no momento da compra, pois são elas fundamentais na construção das marcas. É na profusão de marcas e estilos que se constroem as diferenças estéticas e preferências individuais, e mesmo que o “DNA” dos produtos seja o mesmo, o que se vende é a diferença. É nesta diferença que residem os estímulos do desejo. É também nela que o consumidor projeta um imaginário criativo que em certo momento é transferido ao objeto:“necessidade é algo funcional em função dos sensos de situação em que o self se encontra e onde ele mantém o desejo” (CAMPBELL, 2005, p.12).

direcionado e está situado em um estado de tradutibilidade dos objetos. O indivíduo na atividade criativa toma para si estados de desejo formulados a partir de suas experiências pessoais em que, na presença de determinadas mercadorias, ocorre um impulso que transfere estas diferenças em estilos e estéticas nas mais diversificadas formas de mercadoria.

Percebemos que, o valor individualizado da mercadoria é um importante aliado na construção das diferenças, estilos e gostos. No entanto, este valor é ao mesmo tempo uma construção social, sendo fundamental pensarmos o consumo de mercadorias sob o duplo aspecto, quais sejam o das subjetividades e o caráter cultural do prazer, permitindo-se analisar os estímulos prazerosos individuais em termos de potencial socializador. A imaginação individual está sempre em base de uma realidade vivida e experienciada e que, no caso das mercadorias, auxilia na formulação e projeção de ganhos individuais. Isto é, a projeção imaginativa direcionada às mercadorias visando a construção de uma autoimagem é constituída na reciprocidade entre a esfera imaginativa individualizada e a relevância valorativa de uma rede simbólica coletiva no qual o sujeito se situa. Em outros termos, para o consumidor é comum imaginar as realizações que um produto possa potencialmente proporcionar em seu cotidiano. A ideia então pode ser resumida como uma mobilidade semântica do significado dos objetos que possibilita devaneios pessoais, orquestrando contextos semânticos regidos por expectativas recíprocas.

É esclarecedor, neste sentido, a presença de um “eu” que justifica suas ações a partir de uma noção de essência individual, ao mesmo tempo em que modela considerações acerca da participação de um “outro” em suas justificativas. O conceito de “Self” pode assim ser oferecido como uma ferramenta analítica importante na construção de uma relação entre a composição de auto-imagem e a mercadoria. Ele pode ser entendido como um processo reflexivo na capacidade do indivíduo se colocar na posição de objeto, quero dizer, ele surge de uma capacidade reflexiva de colocar-se no lugar do outro. Tomo o termo no sentido dado por Mead (1992), que estabelecia o desenvolvimento do Self dentro de um campo de experiências fundamentalmente sociais em que cada um recebe e compartilha uma particular articulação biográfica. Esta diferença individual, segundo ele, resulta de um processo de significação de si em que há outro generalizado frente a qual o indivíduo se constitui.

Em conferência transcorrida na Suécia, em junho de 2002, na Universidade de Göteborg no Center for Consumer Science (CFK), Colin Campbell, juntamente ao proeminente teórico nos estudos sobre o consumo, Daniel Miller, enfatiza em um de seus debates as formas e níveis de autoridade do self nas pesquisas sobre consumo. A temática envolvia fundamentalmente as questões

de autonomia do self, debate este que se situa tradicionalmente na dicotomia modernista na relação entre o indivíduo e o social. De um lado, havia a proposta fenomenológica de crença na autoridade do grupo, de outro o estabelecimento do self enquanto índice estritamente particularizado. Importante consideração a ser observada nestas duas abordagens não é se há ou não uma tirania do self, mas a forma como indivíduo lida com os seus desejos e a relevância de uma autopercepção nos estudos sobre motivações e intenções do consumidor. O debate centra-se, então, no posicionamento nas tomadas de decisão e suas justificativas, não em um fundamento último das necessidades balizadas por prescrições idiossincráticas, evitando-se assim um recaimento da discussão em moldes psicologizantes.

Os critérios de justificação e autopercepção referente à compra de determinada mercadoria frente a outras opções incorre em certa autoridade que é invocada no momento das escolhas. Nesse sentido, o individualismo metodológico procura avançar nas abordagens do self sob um a perspectiva focada nas observações sobre o que legitima as tomadas de decisão dos indivíduos consumidores. A retórica do consumidor é fundamentalmente importante no sentido de que a autoridade invocada na decisão de compra de determinada mercadoria aparece em sua justificativa. É como tentar captar o funcionamento de um “querer”, de um desejar. Para Campbell o importante é enfatizar que a ocorrência da autoridade do self nas sociedades contemporâneas está na verdade voltada para o consumo da experiência, diz ele: “os objetos são dispositivos que orientam e fazem a experiência” (CAMPBELL, 2005, p.19).

Em toda essa experiência proporcionada pelo objeto, e ao controle por parte do indivíduo sobre os estímulos que experimenta na possessão ou desejo dos objetos, prevalece um importante fator que codifica e de alguma maneira substancializa as experiências, que é uma relação entre a memória individual e a memória coletiva. A primeira pode ser claramente vista como a bagagem de experiências vivenciadas do sujeito exaustivamente exaltado no decorrer deste trabalho. A segunda tem um repertório simbólico compartilhado que permeia o coletivo de forma a conservar unidades de significação que orientam o sujeito. Estas orientações alheias e constitutivas dos indivíduos serão aquelas que exercerão um papel importante se referidas às expectativas e à comunicabilidade.

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