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“O Nós do Morro ocorreu aqui por eu morar aqui, quando eu vim morar aqui, aqui era favela e não favela. Eu fui um dos precursores dessa ligação da favela e não favela"

A declaração partiu de uma entrevista concedida pelo diretor geral do Nós do Morro, Guti Fraga, a autora em junho de 2010, quando indagado sobre o porquê do grupo ter surgido no Vidigal e não em outra comunidade pobre do Rio de Janeiro. Não podemos negar que um estudo sobre o surgimento do Nós do Morro implica levar em consideração os caminhos tomados por Guti Fraga nesse processo, o que não abandona, contudo, a sua relação com os demais agentes sociais contemporâneos. Um pouco antes da criação do grupo, ele fazia uma bem sucedida temporada em Nova York com a peça Brincando em Cima Daquilo, de Dario Fo e Franca Rame, estrelada por Marília Pêra onde trabalhava como diretor de cena.

Sobre a importância da atriz em sua trajetória profissional e também pessoal, recorda Fraga:

Eu sempre vivi muito alternativamente, eu fazia artesanato pra sobreviver, pra comer uma vez por dia, era minha vida, normal era isso, pagar um aluguel e poder comer uma vez por dia, eu tava no lucro. E com o Domingos Oliveira, logo na sequencia eu conheci Marília Pêra, nesse período, eu trabalhei com ela durante seis anos e isso foi uma abertura muito grande na minha cabeça porque você sonha como um artista, não é só um artista imigrante que vem do centro do Brasil, não [Fraga é Mato-Grossense] qualquer artista sonha em ter esse eixo Rio - São Paulo nas mãos, onde pulsa a cultura no país (...) Um dia, ela foi visitar o grupo de estudos que eu tinha com o Domingos e ela viu e a nossa alma se bateu. E ela ia montar uma peça com o Domingos, Adorável Júlia, e me convidou pra fazer direção de cena, fazer uma participação como ator e eu topei e minha vida mudou, mudou completamente. E com ela eu tive as oportunidades, eu tive de ficar no eixo Rio - São Paulo, eu conheci grandes pessoas, tive grandes relações, mas principalmente eu acho que a Marília teve principal força na minha vida com relação à questão da autoestima. (FRAGA, entrevista concedida a autora em 16/06/2010).

Segundo Fraga, ao ir pra Nova York apresentar a peça com Marília, teve curiosidade de saber o que era feito não só na Broadway, mas também na off-Broadway,

30 assistir ao blues na praça bem como a manifestação cultural “do negro e do pobre”. Para o diretor era muito legítima sua atitude, já que vivia num lugar onde habitavam também muitas pessoas sem recursos econômicos e sem nenhum acesso a atividades culturais, então ir para Nova York apenas para conhecer o que era produzido nos grandes circuitos não tinha muita graça. Ao voltar da viagem, comunicou ao amigo que também trabalhava na peça, o iluminador já falecido, Fred Pinheiro, a ideia de fundar um projeto de teatro no Vidigal.

Ao trocar a “praça profissional” pela dedicação a um projeto de teatro, naquele primeiro momento amador, Guti Fraga exemplifica o que Pierre Bourdieu chama de “tomadas de posições artísticas”, ou seja, suas escolhas e o impacto delas serão orientadas por sua posição no chamado “espaço dos possíveis”34. Se o fato de morar no Vidigal e o contato com moradores mais pobres influencia na vontade dele em proporcionar acesso ao teatro no local, por outro lado, o fato de ser um artista profissional também contribuiu para dar respaldo ao empreendimento, em um primeiro momento amador. Além disso, o diretor assumiu todos os riscos que implicavam sua decisão, de trocar o equilíbrio financeiro pela possibilidade de “voltar a comer uma vez por dia”.

Portanto, não é nossa intenção desconsiderar a importância de Fraga dentro da trajetória do grupo, no entanto, não podemos nos limitar, para citar Elias (1995:18), à “incomparáveis realizações individuais”35, e abrir mão da análise de outros fatores

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Discutindo o que chama de tomada de posição artísticas, Bourdieu (1996:107-109) diz que a mesma só pode ser compreendida no chamado espaço de posições, ou seja, para analisar a intenção de um autor, seu ponto de vista, será necessário fazer uma análise do universo onde o mesmo estava situado, pois ele terá um papel fundamental em suas escolhas. Ao mesmo, um autor já com credibilidade no circuito oficial acaba tendo certo respaldo dentro deste circuito. O autor exemplifica esse pensamento citando o escritor francês Gustave Flaubert que ao escrever Madame Bovary ou A educação sentimental faz opções que implicam outras tantas recusas, no espaço dos possíveis que se oferecem a ele, ou seja, sua escolha será diferente da de outros autores consagrados, que viam no romance um gênero literário menor.

Ao optar por escrever romances, participa da condição de inferioridade associada ao gênero, mas, por outro lado, também contribui para transformar a representação do mesmo, pois por ser um escritor já legitimado no meio literário, acaba por atrair a atenção de escritores e críticos.

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Para Norbert Elias (1995), o destino individual, a sina do ser humano considerado único e genial, é influenciada por sua situação social, pelas pressões que os indivíduos encontram em suas vidas. Neste estudo, podemos ver como é difícil separar o indivíduo das estruturas sociais da época, neste caso, um artista do século XVIII, Mozart e sua interdependência com outras figuras sociais do período. Elias nos permite compreender a trajetória individual inserida numa perspectiva histórica, as forças sociais que agiam sobre Mozart, como ele se comportou em relação a elas, e em que medida elas influenciaram em sua produção musical. Educado pelo pai para seguir carreira de músico da corte e se sujeitar aos caprichos dela, Mozart acaba se rebelando contra tal situação e com as formalidades que a profissão de funcionário real exigia. Essa ruptura com o esquema socialmente prescrito de sua profissão acabou afetando sua obra como compositor, pois antecipou as atitudes e os sentimentos de um tipo posterior de artista. O autor demonstra que optando por seguir sua própria imaginação, Mozart representou um tipo de artista livre que confia acima de tudo em sua inspiração individual, numa época em que a música mais valorizada pela

31 sociais que também contribuíram para o surgimento do Nós do Morro. Bourdieu compartilhando dessas premissas, também alerta para os perigos do estudo biográfico se sobrepondo ao processo histórico. O sociólogo coloca como indispensável a reconstrução do contexto, da superfície social em que age o indivíduo.

Em seu texto clássico, A Ilusão Biográfica (in AMADO E FERREIRA, 2002:183-191) chama a atenção para o cuidado na relação entrevistado/entrevistador para que se evite ou então se fique atento para a possibilidade de uma criação artificial de sentido do depoimento oral. No caso deste estudo que enfoca aspectos da trajetória de um grupo, podemos utilizar essas considerações para ilustrar seus riscos: a ilusão da singularidade do indivíduo frente às experiências coletivas compartilhadas com pessoas da mesma geração. Portanto, veremos que o germe da ideia do Nós do Morro, que surgiu do diálogo entre artistas e moradores mais humildes, também estava sedimentado no espaço geográfico em questão.