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O indivíduo em fissura (craving) na perspectiva cognitivo-

Como foi apresentado, no que se refere ao tratamento da toxicomania, em uma operação quase cirúrgica, a psiquiatria contemporânea encontra na corrente comportamentalista – uma abordagem expressamente antipsicanalítica – uma nova roupagem moderna: a psicologia cognitivo-comportamental. Com isso, localiza-se, enquanto prática terapêutica, no avesso da psicanálise.

A consideração empreendida pela abordagem cognitivo-comportamental se baseia, principalmente, na conceituação cognitiva dos chamados processos de pensamentos, emoções e comportamentos. Neste sentido, a terapia cognitiva pretende-se uma teoria da personalidade, que dá ênfase às crenças e à produção de pensamentos na mediação de comportamentos, emoções e respostas fisiológicas. Com isso, confere uma primazia ao sistema cognitivo em seu desenvolvimento de respostas aos estímulos eliciadores (BORDIN; FIGLIE; LARANJEIRA, 2004).

A cognição, portanto, é considerada um pensamento ou uma imagem visual, isto é, uma avaliação de eventos, de qualquer perspectiva de tempo (passado, presente ou futuro), que em geral é vista como a representação factual da realidade. “O modelo cognitivo tem como hipótese que as cognições (percepção e interpretação dos eventos) influenciam as emoções e os comportamentos dos indivíduos.” (BORDIN; FIGLIE; LARANJEIRA, 2004, p.189). Nesta perspectiva, não é uma situação por si só que influencia o comportamento do indivíduo, mas sim o modo como ele interpreta o evento ocorrido. Com isso, o modelo cognitivo- comportamental pretende ampliar sua intervenção sobre o abuso de drogas, considerando as chamadas crenças disfuncionais como o núcleo do quadro de dependência química. De acordo com essa abordagem, a terapêutica deve possibilitar uma reestruturação cognitiva através de procedimentos terapêuticos específicos, fomentando consequentemente mudanças comportamentais.

Com efeito, do ponto de vista da conceituação cognitiva sobre o que foi amplamente denominado de abuso ou dependência de substâncias psicoativas, apresenta-se uma proposição que consiste em evidenciar a influência da estrutura cognitiva de um indivíduo e o estado de humor associado86. Portanto, a tendência de recorrer às substâncias psicoativas seriam uma

86 Desse modo, o modelo cognitivo da adição às drogas configura-se em uma estratégia diagnóstica que defende

estratégia compensatória, bem como uma tentativa de regulação do humor – uma espécie de automedicação. Neste sentido, há no comportamento de recorrer às drogas um efeito feedback, pois o uso continuado favorece a ocorrência ou exacerbação dos mesmos problemas dos quais se pretendia atenuar. Com efeito, a dependência química é vista, segundo essa abordagem, como o sintoma de um quadro disfuncional primário.

A racionalidade diagnóstica do modelo cognitivo do abuso ou dependência química, propõe que durante o desenvolvimento do indivíduo, experiências relevantes de vida podem resultar na formação de um sistema disfuncional – um esquema de respostas afetivas e comportamentais disfuncionais –, bem como uma ineficácia em seu enfrentamento às adversidades, configurando, assim, um quadro disfuncional primário. Nota-se, portanto, que o surgimento do abuso de substâncias psicoativas reflete uma estratégia compensatória – comportamento que busca compensar esquemas e crenças disfuncionais –, ou o produto de uma estrutura cognitiva falha cuja instalação, por certo, antecedeu a experimentação das substâncias psicoativas. O resultado dessa combinação potencialmente patológica possibilita a observação do terapeuta cognitivo-comportamental das crenças disfuncionais relacionadas ao consumo de drogas (BORDIN; FIGLIE; LARANJEIRA, 2004).

Dessa forma, a disfuncionalidade do sistema cognitivo fomenta, como consequência inevitável, o uso continuado das substâncias. A ativação de crenças a respeito de si, do mundo e das substâncias psicoativas, registradas na chamada memória implícita, implicam na ocorrência de pensamentos automáticos negativos, que ativam a motivação ou fissura (craving) para o consumo – associada às sensações fisiológicas de desconforto. Portanto, configura-se um “conflito”, no qual crenças e pensamentos automáticos, que favorecem e/ou desfavorecem o consumo se chocam. O indivíduo vivencia a ativação das crenças facilitadoras – ou crenças permissivas – que apresentam duas direções opostas que se chocam, transtornando o indivíduo. As crenças permissivas facilitadoras para o uso e as crenças permissivas e facilitadoras para

o não uso. Com isso, a prevalência de uma sobre a outra pode tanto encerrar o processo (não usar) como focar a atenção do indivíduo em estratégias instrumentais de obtenção da droga (usar) (BORDIN; FIGLIE; LARANJEIRA, 2004).

A conceituação do craving87 , ou “fissura”, pode implicar uma definição geral, que

consiste em considerar um intenso “desejo” de utilizar uma substância específica, ou, então,

como situações proponentes ao uso, isto é, desencadeadoras do comportamento aditivo (BORDIN; FIGLIE; LARANJEIRA, 2004).

87 Com efeito, o conceito mais utilizado de craving é o que se refere a esse intenso “desejo” para consumir

determinada substância. Dessa forma, seu estatuto pode ser mais amplamente definido como o reflexo de um

desdobrar-se em uma variedade de acepções, como por exemplo: no desejo de experimentar os efeitos da droga; no irresistível impulso para usar a droga; no pensamento direcionado à substância de preferência; no alívio para os sintomas de abstinência; no incentivo para auto- administar a substância; no processo de avaliação cognitiva, que instrumentaliza estratégias de obtenção da substância (BORDIN; FIGLIE; LARANJEIRA, 2004).

Portanto, pelo viés da dependência química, o craving pode ser definido como um “desejo” de repetir a experiência dos efeitos de uma dada substância. De acordo com essa abordagem, esse “desejo compulsivo” pode ocorrer tanto na fase de consumo quanto no início da abstinência, ou após um longo tempo sem utilizar a droga, podendo ser acompanhado de alterações no humor, no comportamento e no pensamento (ALMEIDA et al., 2010).

O craving, portanto, pode ser classificado nas seguintes circunstâncias: como resposta à síndrome de abstinência; como resposta à falta de prazer; como resposta condicionada a estímulos relacionados às substâncias psicoativas; e como tentativa de intensificar o prazer de determinadas atividades. Neste horizonte, os teóricos da dependência química entendem o

craving como uma condição neurobiológica, influenciado pelas expectativas associadas a um resultado positivo (estado motivacional subjetivo), estado este que pode induzir uma resposta na qual o comportamento desejado esteja envolvido (BORDIN; FIGLIE; LARANJEIRA, 2004).

Neste sentido, no campo da dependência química dois modelos propõem-se a explicar o funcionamento do craving: o cognitivo-comportamental e o neurobiológico. Desse modo, a conceituação do craving pode ser entendida como o reflexo de respostas condicionadas e estabelecidas pela aprendizagem da associação entre determinado estímulo e o “prazer” que acompanha a resposta de usar a droga. Com isso, um apontamento consensual consiste em afirmar que os sintomas de abstinência parecem estar positivamente correlacionados com o

craving, o que implica tanto sua intensidade quanto sua diminuição (ALMEIDA et al., 2010). Uma imagem comumente utilizada é a de uma onda, que após um nível ascendente sofre um declínio descendente. Portanto, o craving é considerado um evento momentâneo.

Apesar dos esforços para tentar definir o craving no plano do terreno psicológico, existe um entendimento privilegiado em descrevê-lo como um fenômeno que resulta de alterações em vários sistemas de neurotransmissão cerebral, desencadeado pela falta da droga. Isto é, o comportamento direcionado para obter as drogas reflete a ativação do mecanismo neurobiológico para o entendimento do craving. Nesta perspectiva, a dependência de drogas

consiste na alteração neuroquímica nos sistemas de recompensa cerebral, que altera o funcionamento normal do organismo. Portanto, esse procedimento enfoca: regiões cerebrais associadas à excitação; comportamentos compulsivos; memória e integração de estímulos sensoriais ativadas durante a exposição a fatores relacionados à droga. Com isso, as especificidades de cada substância psicoativa e as características individuais dos dependentes químicos são alguns dos determinantes da forma e da intensidade com os quais o craving se apresenta (ALMEIDA et al., 2010).

Esse caminho conduz aos protocolos de avaliação da natureza do craving, bem como de seu manejo no chamado dependente químico. Dessa forma, estabelece-se um programa de mensuração do craving, que pelo relato do indivíduo dirigido pelo terapeuta, conduz ao registro diário dos pensamentos disfuncionais, no qual são descritos aspectos relacionados aos episódios do craving. O craving é amplamente entendido como uma experiência individual, necessitando, portanto, de planejamento personalizado de estratégias para o seu manejo. E aqui surge o chamado treinamento de habilidades comportamentais. Essas técnicas de manejo do craving, provenientes da terapia cognitivo-comportamental, são ensinadas desde o início do tratamento, sendo considerado, nessa abordagem, um instrumento terapêutico privilegiado. O resultado eminente, por certo, é a instrumentalização do dependente químico através de várias técnicas de manejo do craving. Com isso, o terapeuta pretende preparar o paciente para lidar com as situações de risco, interferindo, assim, na intensidade do craving, já que o desenvolvimento da auto-eficácia tornará mais fácil o seu manejo (BORDIN; FIGLIE; LARANJEIRA, 2004).

Certamente, os modelos cognitivo-comportamental e neurobiológico quando combinados procuram simplificar o significado do craving, por meio de um paradigma reducionista e, consequentemente, delinear técnicas terapêuticas a partir de um ponto de vista consensual (ALMEIDA et al., 2010). Dessa maneira, os teóricos da dependência procuram no tratamento dos dependentes químicos integrar “a prática terapêutica” à farmacoterapia (ZANELATTO, 2010).

Portanto, o argumento comumente utilizado consiste em evidenciar a estrutura biológica do humano, entendendo, assim, que as modificações geradas no psiquismo pelo consumo de substâncias psicoativas – que possui a capacidade de atuar sobre o cérebro –, é um mecanismo considerado como fenômeno universal da humanidade. Com efeito, essas alterações podem originar ou acentuar a natureza compulsiva dos comportamentos associados ao uso dessas substâncias, o que consequentemente provoca uma diminuição na capacidade de interromper o consumo (SILVA; LARANJEIRA, 2004).

Assim, desenha-se uma lógica que busca nas funções vitais do organismo o primado do prazer, ou seja, as sensações de prazer entendidas como um movimento primordial do ser vivo. Nisto, obviamente estão relacionadas aquelas necessidades básicas conhecidas, como a alimentação, a proteção e a procriação, que geram constantes indagações, como por exemplo, do que vou me alimentar? Onde vou me abrigar? Como vou manter relações sexuais? Ou seja:

Cada indivíduo tem motivações pessoais para alcançar aquilo que possibilita sua própria sobrevivência e a de sua espécie. Tais motivações são mediadas por circuitos neuronais, como o sistema de recompensa e, ao atingir seus objetivos, o indivíduo se sente bem (prazer e recompensa). Além disso, as estratégias e os pensamentos que utilizou para alcançá-los o amadurecem e passam a fazer parte de seu ‘patrimônio neurobiológico’. (LARANJEIRA, 2012, p. 26).

Estes comportamentos que geram prazer são denominados recompensas naturais, entretanto, é considerada uma outra possibilidade de se obter prazer de uma forma não “natural”, ou seja, através do uso de substâncias psicoativas. Com isso:

O estímulo motivacional normal é perdido, uma vez que o mesmo resultado pode ser obtido pelo uso de substâncias psicoativas, capazes de agir sobre os circuitos neuronais de modo mais intenso. Esse novo circuito corrompe o anterior e vai se consolidando operacionalmente no SNC – quanto mais perdurar, menos reversível será. (LARANJEIRA, 2012, p. 26).

As pesquisas que fundamentam esse campo de investigação pretendem apresentar uma suposta maior precisão anatômica e fisiológica do sistema de recompensa cerebral. Surge, no interior dos ditos trabalhos “científicos” o questionamento, que se tornou, portanto, norteador, ou seja, a proposta de isolar as regiões cerebrais responsáveis pelo prazer. Contudo, obviamente, existem tanto semelhanças quanto diferenças nas formas de se obter prazer. Os teóricos da dependência química apresentam uma explicação estritamente neurobiológica, recorrendo aos mecanismos de ação e reação das substâncias psicoativas em determinadas regiões cerebrais (SILVA; LARANJEIRA, 2004).