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CAPÍTULO 1: AGÊNCIAS, ENQUADRAMENTOS E CONTROVÉRSIAS:

1.1 O INSTITUCIONALISMO CONSTRUTIVISTA

Hall & Taylor (1996; 2003) realizaram um esforço de sistematização dos institucionalismos da teoria política contemporânea, denominados pelos autores como: institucionalismo da escolha racional (IER), institucionalismo histórico (IH) e institucionalismo sociológico (IS). As três vertentes apresentam em comum uma tentativa de avançar para além das explicações altamente centradas no comportamento do indivíduo, tal como pregava o behaviorismo em suas elaborações sobre mudanças sociais. O behaviorismo foi inovador no contexto do seu surgimento, mas tendeu a analisar os fenômenos sociais a partir da noção de “agência sem estrutura” (VENTURA, 2016).

As três vertentes criadas por Hall & Taylor (1996), o IER, o IH e o IS, no entanto, buscaram olhar para o que é externo aos agentes, ou seja, para as estruturas, e perceber como essas condicionavam a ação individual. Por um lado, os interesses e o cálculo racional do IER foram explicados pela estrutura de incentivos e limites oferecidas pelas instituições. Já o IH visava demonstrar a influência do passado institucional nas definições de opções de escolha presente dos indivíduos. Por fim, o IS buscou explicar a ação individual pela sua mediação com as normas culturais vigentes. No entanto, Schmidt (2008) nos mostra que, independente da abordagem, os agentes nos três institucionalismos citados foram considerados mais determinados pelas estruturas e suas regras do que como sujeitos com a capacidade de agência sobre tais estruturas. Os institucionalismos reduziram, portanto, o escopo de análise da realidade quando procuramos explicar a criação de instituições ou mudanças institucionais.

De modo simplificado, podemos afirmar que para o IS os agentes são definidos como seguidores de regras; para o IH os agentes são definidos como seguidores de regras que se tornaram regras por mediação de interações e padrões históricos difíceis de serem alterados; e, por fim, para o IER os agentes são indivíduos “calculistas”, ou seja, agem por cálculos racionais entre custos e benefícios de sua ação. Os três institucionalismos deixaram à margem de suas teorias a possibilidade de entender as capacidades ou habilidades institucionais criativas ou transformativas dos agentes.

Portanto, nas lacunas do IER, do IH e do IS novas abordagens começam a ser teorizadas, tal como o institucionalismo construtivista (HAY, 2008; SCHMIDT, 2008)19. A proposta desta vertente é complementar as limitações dos institucionalismos anteriores. O institucionalismo construtivista (IC) visa tratar mudanças pós-formativas, ou seja, mudanças institucionais advindas da trajetória das instituições, não como necessariamente advindas de rupturas críticas, mas que sejam mobilizadas incrementalmente por desequilíbrios dinâmicos das instituições. Este olhar para a mudança institucional complexa também considera os contextos de criação das instituições, pois não é possível considerá-las como instituições “dadas” e, só a partir de dadas, explicar a ação individual, tal como faziam as vertentes anteriores (SCHMIDT, 2008).

A primeira das pressuposições teóricas do IC é a de que os sujeitos são subjetivados por socializações prévias em distintas instituições, carregando consigo a influência de suas trajetórias, principalmente, através de ideias, que pretendemos entender aqui a partir da noção de enquadramentos interpretativos (REIN; SCHON, 1994; BENFORD; SNOW, 2000; SUREL, 2000; HULST; YANOW, 2014), como veremos adiante. Além disso, precisamos considerar que os sujeitos se comportam de variadas formas, não podendo ser reduzidos a agentes orientados por cálculos exclusivamente materiais ou por valores e hábitos unilaterais. Os sujeitos são considerados agentes complexos que, ao mesmo tempo, são transformados e transformam essas estruturas. Como derivação dessa primeira pressuposição teórica do IC, segundo Schmidt (2008), a agência dos sujeitos em instituições se funda, principalmente, em habilidades ideacionais e habilidades discursivas. As habilidades ideacionais são orientadas por ideias sobre interesses e preferências. As habilidades discursivas, por sua vez, dizem respeito às formas dos agentes pensarem, falarem e agirem, que são alternativas às instituições.

19 Por afinidades teóricas consideramos o institucionalismo discursivo como uma expressão do institucionalismo

construtivista e apresentaremos suas visões em comum. Portanto, as contribuições teóricas sugeridas cabem em ambas as perspectivas.

A segunda das pressuposições teóricas do IC é a de que é necessário explicar o desequilíbrio institucional não somente em momentos de grandes rupturas ou crises, mas em termos endógenos da evolução institucional complexa, suas adaptações e suas inovações. Esta última ideia, inclusive, deriva de uma tensão do IC e o institucionalismo histórico, que contribui sobremaneira para o surgimento do institucionalismo construtivista. Segundo Hay (2008), o IH tende a privilegiar a gênese institucional deixando de lado análises sobre mudanças institucionais pós-formativas, que são centrais para o IC. Para o IH as mudanças pós-formativas seriam apenas consequências de rupturas, tais como revoluções ou guerras, ou de efeitos de bloqueio ao caminho da dependência institucional (path dependence). No entanto, Streek & Thelen (2005) e Mahoney & Thelen (2010) certamente tentam resolver esta questão. Os autores incluem uma discussão ideacional ao IH, sem discutir em profundidade o papel das ideias na mudança institucional, mas sugerindo que a mudança gradual pode ocorrer em função de mudanças de interpretações das regras.

A terceira pressuposição teórica do IC é a de que as instituições são sistemas codificados de ideias e práticas que as sustentam. A união entre ideias e práticas é central para o IC (HAY, 2008). A relação entre ideias e agências para o IC, portanto, existe na medida em que as ideias constrangem os atores e, ao mesmo tempo, são criadas por eles. Assim, “as instituições são consideradas simultaneamente como estruturas e construtos, moldando o comportamento dos agentes e ao mesmo tempo em que são moldadas por esses agentes” (VENTURA, 2016:27)

Segundo Hay (2008), os atores são vistos como sujeitos estratégicos, que visam realizar objetivos complexos, contingentes e constantes. Nesta realização de seus objetivos, alguns contextos favorecem determinadas estratégias em relação a outras. Dessa forma, os atores elaboram percepções dos contextos, que são sempre incompletas e podem ser entendidas como imprecisas após os eventos. Essas percepções são frutos de ideias que orientam os atores normativamente sobre seus modos de agir, a partir do que entendem o que “deveria ser” para os seus contextos. Ou seja, as percepções dos atores sobre quais estratégias de ação tomar em contextos incompletos é mediada por orientações normativas advindas de suas ideias. Para Schimdt (2008) temos dois tipos de ideias: background ideas e foreground” ideas. As primeiras ajudam os atores a interpretar e estruturar suas compreensões das instituições; já as seguintes ajudam a contribuir para que os atores possam criar e adaptar ideias.

Tanto Hay (2008), quanto Schmidt (2008), referem-se a uma dupla qualidade das ideias como estruturas e construtos. Aqui encontramos uma ligação teórica importante com a

teoria dos enquadramentos. No âmbito das políticas públicas, os enquadramentos, como veremos adiante, são sistemas cognitivos de significados, produzidos por interações históricas e que constituem matrizes de ideias que orientam a ação de sujeitos que, por sua vez, se ancoram neles (SUREL, 2000). Para nós, a noção de enquadramento tem a mesma qualidade das ideias discutidas por Hay (2008) e Schmidt (2008). Por um lado, um enquadramento prévio de um ator afeta a maneira que ele enxerga um problema e produz suas agências em diferentes estruturas (noção muito próxima da noção de background ideias, apresentada acima). Por outro, o ator também contribui para a criação de novos enquadramentos através de suas interações (processo, por sua vez, análogo a noção de foreground ideias) e busca convencer outras pessoas que esses enquadramentos são adequados. No entanto, a noção de enquadramentos interpretativos nos permite conectar as ideias do IC a um histórico de interações entre movimentos sociais, acadêmicos e políticas locais como construtores de enquadramentos (BENFORD; SNOW, 2000), que orientam agências de atores políticos relevantes, inclusive de burocratas, no âmbito de políticas públicas (REIN; SCHON, 1994) - em especial no caso analisado sobre o PAA.

Ainda no que tange a relação entre ideias e agências, para o IC os desejos, as preferências e as motivações dos atores não são fatos “dados” ou mediados única e exclusivamente pelas regras das instituições que estes atores habitam, mas são reflexões normativas, orientações ideacionais em direção aos seus contextos institucionais. Segundo Schmidt (2008) as ideias constituem narrativas, discursos e enquadramentos que ajudam os atores a compreenderem seus interesses e a orientarem suas agências no seio das instituições que habitam. É importante perceber que nas abordagens de IR, IH e IS as ideias tendem a ser tomadas como “dadas” ou pré-estabelecidas. O efeito deste congelamento das ideias como variáveis dadas é que não se torna possível entender os processos de como ideias se tornam institucionalizadas, orientando agências e construindo ou transformando arranjos institucionais complexos.

Schmidt (2008) classifica as ideias em dois eixos analíticos: generalidade e conteúdo. No que tange a sua generalidade as ideias são ou políticas, ou programas ou filosofias. No que se refere ao conteúdo as ideias podem ser cognitivas ou normativas. Filosofias são as ideias mais genéricas desta classificação, pois representam uma visão de mundo, ideias públicas que sustentam os programas e as políticas. Já os programas, nesta classificação, são mais abrangentes que as políticas. Os programas definem problemas, metas, normas, métodos e instrumentos. As políticas, por sua vez, são as ideias mais específicas desta classificação, pois tratam de propostas imediatas de resolução de problemas concretos. Além da generalidade,

Schmidt (2008) classifica as ideias em termos de conteúdo. Os conteúdos das ideias cognitivas dizem respeito ao “como” a ideia classifica problemas e soluções. As ideias cognitivas legitimam a perícia técnico-científica de uma ação. O conteúdo de outras ideias, no entanto, é classificado como normativo. As ideias normativas se estruturam em termos de princípios mais gerais sobre como certos problemas deveriam ser resolvidos, ou seja, dizem respeito ao “dever ser” e não necessariamente ao “como” nas ideias cognitivas.

A partir da relação entre atores e ideias, o IC conclui que os agentes não são substituíveis, já que o conjunto de suas preferências ou sua lógica de conduta não são determinadas pela estrutura em que estão localizados. Além das percepções, os interesses dos atores também são construções sociais e não são apenas resultado de condicionantes materiais, embora a materialidade, para esses atores, seja importante. Portanto, para os IC os interesses são de muito mais difícil explicação do que normalmente é assumido pelos institucionalistas da escolha racional, pois são mais variáveis em relação às ideias que orientam os atores do que se imaginava. De um modo geral, é possível afirmar que o IC não analisa apenas o caminho da dependência institucional como fazem os institucionalistas históricos, mas o caminho da dependência ideacional. Não se trata apenas de uma relação entre instituições, regras e agentes, como para os institucionalistas sociológicos, mas entre os agentes e suas ideias e as instituições e as ideias sobre as quais essas foram criadas. Essa interação informa o desenho e o desenvolvimento das instituições, bem como os limites e liberdades da ação individual no interior dessas instituições.

Por fim, resta-nos, ainda, discutir uma última dimensão das propostas do IC. Para esta abordagem teórica as instituições são palco de lutas políticas, ou, como pretendemos incluir no escopo de análise, de controvérsias que suscitam justificativas, provas e agências conflitivas entre diferentes grupos de atores atuantes no âmbito destas instituições (no caso aqui analisado, de burocratas atuando na criação e implementação de políticas públicas). Os contextos endógenos e externos às instituições, portanto, contam muito na análise dessas instituições, principalmente, de suas transformações pós-formativas complexas, pois estes contextos são analisados por diferentes óticas, podendo ensejar disputas cognitivas entre diferentes agentes pela interpretação e etiquetamento sobre o que representam. Desta forma, é importante para o IC que a mudança institucional seja vista não apenas como fruto da ação individual dos agentes, o que nos aproximaria do behaviorismo, mas numa relação entre agentes e contextos institucionais entrelaçados e recursos (materiais e cognitivos) disponíveis nestes, o que Hay (2008) chama de “arquitetos institucionais” e “instituições” ou “sujeitos institucionalizados” e “ambientes institucionais”. Assim, a mudança institucional pode ser

vista “em termos da interação entre uma conduta estratégica e um contexto estratégico dentro da qual é concebida, e, também, no desdobramento posterior de suas consequências, tanto intencional como não intencional (HAY, 2008:64). A conduta estratégica só é passível de ser analisada se identificamos, detalhamos e interrogamos a extensão das ideias e codificações que agem como filtros cognitivos para agência e para a interpretação dos contextos, marcados por controvérsias. Dessa forma, argumentamos aqui que é possível entendermos burocratas como sujeitos que atuam a partir de enquadramentos que especificam não apenas os objetivos da política em que atuam ou os tipos de instrumentos que podem alternar nessas política, mas também a natureza dos problemas que enfrentam ao fazer parte da trajetória de implementação da política que implementam. Isso é particularmente importante para analisar momentos de mudança incrementais e momentos de mudanças excepcionais, relacionados com verdadeiras crises institucionais.

Em contextos de crises, especificamente, é importante observar que ocorre uma intensa contestação ideacional entre diferentes agentes habitando uma mesma instituição. Os agentes lutam para produzir diagnósticos dos problemas suscitados pela crise, bem como para propor inovações, reformas, para resolução da mesma. Dessa forma, para o IC é importante que percebamos as crises institucionais como dependentes não apenas dos contextos endógenos ou externos que a produziram, mas como momentos de mobilização de ideias. As ideias são, portanto, causas independentes e constitutivas da mudança institucional, seja em situações de crises, seja nas mudanças incrementais. Nas crises, as percepções sobre interesses dos atores se tornam problemáticas. Os agentes lutam para produzir diagnósticos que atinjam o regime institucional e passam a produzir, também, soluções para resolução da crise.

À título de conclusão, nesta seção discutimos os principais pressupostos do institucionalismo construtivista, principalmente, a partir das propostas de Hay (2008) e Schmidt (2008). Mostramos como o IC pretende ir além dos institucionalismos da escolha racional, histórico e sociológico. A literatura do institucionalismo construtivista incorpora a agência na explicação sobre criação e mudança institucional, no entanto, foca-se demasiadamente na dinamicidade ideacional das instituições. Falta-lhe um debate mais interativo que envolva mudança e criação institucionais como dinâmicas ideacionais e agênticas simultaneamente, além de faltar uma reflexão aprofundada sobre as relações de poder na interação entre atores situados em contextos institucionais entrelaçados e complexos, daí a importância do conceito de enquadramentos interpretativos, bem com da discussão sobre controvérsias, discutidos adiante neste Capítulo. Pretendemos, portanto, contribuir com esta

literatura com mais três outras literaturas, como proposta teórica frutífera para a discussão do papel da burocracia na formulação e na implementação de políticas públicas.

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