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Capítulo 3. Os Neerlandeses e a aprendizagem da Ásia

2. Jan-Huygen van Linschoten e o seu Itinerário

2.1. O Itinerário e a Holanda da década de 1590

Dada a natureza das informações contidas no Itinerário, poderia pôr-se a questão de saber se Linschoten terá sido ou não um espião holandês, que premeditadamente colheu informações acerca da Carreira da Índia e sobre o império português na Ásia, para as transmitir mais tarde às autoridades empenhadas na expansão marítima holandesa. Contudo, não há dados empíricos que permitam afirmar que Linschoten foi para a Índia como espião. Linschoten partiu da Holanda em 1579, numa altura em que a guerra contra a Espanha ainda não tinha atingido proporções que justificassem tais aspirações, nem Portugal podia sequer ser considerado inimigo dos neerlandeses.301 E, para além disso, só muitos anos depois de 1580 se começou a pensar nas Repúblicas Unidas em explorar os caminhos marítimos para a Ásia.

Em todo o caso, na década de 1590, as tentativas por parte de comerciantes holandeses em adquirir deliberadamente informações sobre as navegações portuguesas, por meios mais ou menos ilícitos, não oferecem dúvidas. Entre 1592 e 1594 os irmãos

298 Cf.infra o capítulo 5, pontos 4, 5 e 8.

299 Linschoten, Itinerário, Viagem ou navegação: p. 9.

300 Em anos posteriores, o Itinerário foi lido essencialmente pelas suas descrições de plantas e produtos

tropicais.

holandeses Cornelis e Frederick de Houtman estiveram em Lisboa, sendo as suas atividades na capital do reino um exemplo claro de espionagem.302 O grupo de comerciantes que os havia enviado preparava aquela que viria a ser a primeira viagem holandesa à Ásia pela rota do Cabo.303 Entre outros desígnios, estava o de adquirirem mapas da Ásia.

Aparentemente, a informação não seria difícil de conseguir, pois cartógrafos proeminentes na Europa trocavam frequentemente novidades, enquanto fazedores de mapas individuais ofereciam os seus mapas para venda. A centralização da feitura dos mapas no ofício do cosmógrafo-mor em Portugal foi entendida primeiramente para garantir a qualidade dos mapas e não para monopolizar o seu uso. Nos primeiros tempos, a cartografia que se tinha desenvolvido na cidade flamenga de Antuérpia, baseava-se essencialmente nos conhecimentos portugueses.304 Entre um dos refugiados que deixaram esta cidade após 1585 encontrava-se Petrus Plancius (1552-1622), um pastor protestante de Bruxelas, que também era um celebrado geógrafo e cartógrafo.305 Os seus conhecimentos da Insulíndia foram grandemente potenciados por estudos minuciosos de mapas ibéricos, em particular um mapa mundi português, assim como catorze (talvez vinte e quatro) cartas marítimas de Bartolomeu de Lasso.306 Plancius tornou-se, depois de 1590, um dos fundadores da tradição cartográfica das Províncias Unidas, tornando a influência portuguesa nos mapas holandeses evidente após esta data. A atestar tal afirmação, no título do seu mapa do sudeste asiático de 1595, que mais tarde foi incorporado no Itinerário, Plancius averbou o seu reconhecimento anotando «os mapas corretíssimos usados pelos navegadores portugueses».307

Para o grupo de comerciantes que procuravam informações sobre rotas e mapas portugueses, pode considerar-se como uma feliz coincidência a fixação de Plancius em Amesterdão e o regresso de Linschoten à Holanda na mesma altura. Ambos possuíam conhecimentos técnicos importantes, que iam ao encontro das suas mais secretas

302 Stapel 1930: 38; Parmentier 1998: 153; Witteveen 2002: 28; Van Goor 2004:25. 303 Sobre este assunto cf. infra o capítulo 5, ponto 1.

304 Pos 1998: 135-151. 305 Witteveen 2002: 28-29.

306 Parmentier 1998: 153. A primeira referência a este cartógrafo Quinhentista colhe-se de uma carta

régia, datada de 17 de maio de 1564, na qual o monarca autoriza Bartolomeu de Lasso a exercer a sua profissão de cartógrafo, por ter sido «achado auto e suficiete para fazer cartas de marear e estrellabios e agulhas». Refere a mesma carta ter o cartógrafo sido examinado pelo cosmógrafo-mor Dr. Pedro Nunes, tendo por assistente o cartógrafo Jorge ReineI. Sousa 2002: http://cvc.instituto- camoes.pt/navegaport/b08.html (acedido a 02.03.2013).

307 Vaz Dourado terá sido um dos outros cartógrafos cujo trabalho foi provavelmente usado nesse tempo

aspirações e, de facto, contribuíram para o sucesso inesperado da primeira viagem holandesa ao Índico.

Depois de 1596, data da publicação do Itinerário, para além de contribuir como suporte técnico-informativo para todas as futuras navegações das Províncias Unidas para o Índico, a obra de Linschoten teve um impacto não menos desprezível ao nível das representações. Linschoten, que viveu a sua juventude como católico e esteve ao serviço do arcebispo de Goa, após a chegada à Holanda converteu-se ao calvinismo. Descreveu Goa em 1583 como uma grande cidade, com cerca de 20 mil habitantes e edifícios imponentes, entre os quais 34 igrejas, um grande estaleiro naval e arsenal. No entanto, na Holanda, já em meados da década de 1590, a imagem que deixou transparecer da sociedade goesa foi de decadência e dolência. Esta imagem foi bem acolhida na sociedade holandesa, já marcadamente calvinista à época.308 As possessões portuguesas na Ásia estariam, segundo os holandeses, imbuídas do mesmo espírito católico que perpassava na metrópole, favorecendo a ideia geral existente nas Províncias Unidas de que se não era justo, pelo menos não seria moralmente incorrecto uma intervenção contra este tipo de sociedade.309 Havia um forte conflito religioso na questão, na medida em que os portugueses, católicos romanos, e os holandeses, calvinistas, se consideravam arautos das suas respetivas fés e, consequentemente, consideravam que travavam batalhas de Deus contra os seus inimigos.310 Tais afirmações adiantadas por Linschoten poderiam sustentar inimizades, facilmente aproveitadas pelos oponentes de Espanha e proveitosas para quem as soubesse manipular. Neste capítulo, o Itinerário poderá ter funcionado como meio de propaganda e assim contribuir para o ambiente febril com que, em 1598, em todas as partes da Holanda e da Zelândia, se preparavam expedições ao Índico.

Reunidas as motivações a as condições técnicas e financeiras na década de 1590, para a organização de expedições à Ásia por parte das Províncias Unidas, parte-se agora para a sua concretização formal.

308 Witteveen 2002.

309 Boxer 1980: 130.

310 No regimento de Olivier van Noort, que comandou a expedição ao Índico pelo Estreito de Magalhães

em 1598, lê-se que não devia infligir danos a súbditos alemães, ingleses, suecos, dinamarqueses ou outros da verdadeira religião cristã, excluindo portanto os espanhóis e portugueses desta lista. Van Veen 2000: 148.