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3 – O JOGO DE XADREZ E A CIÊNCIA COGNITIVA 3.1 – INTRODUÇÃO

Em 1946, Adriaan D. de Groot (1914-2006) publicou um estudo inédito intitulado “Het denken van den shaker”, na sua versão original em holandês. Em 1965, esse trabalho foi traduzido para o inglês com a denominação de “Thought and choice in chess” (GROOT, 1965, 1978, 2008). Nesse célebre trabalho, Groot surpreendeu a ciência cognitiva, então embrionária, ao afirmar que grandes jogadores de xadrez não apresentavam diferenças significativas nas capacidades de cálculo, memória ou mesmo na velocidade de raciocínio. O que realmente os diferenciava, segundo Groot (2008), era um modo de percepção altamente elaborado e específico, capaz de reconhecer um maior número de padrões com mais rapidez, estreitando a faixa de opções a serem calculadas, e que, associado à construção de um sistema de métodos rotineiros de jogo (ambos baseados na experiência e conhecimentos adquiridos através de uma dedicada e continuada prática, estudo e análise de partidas), permitia-lhes uma melhor tomada de decisão8.

Com seu trabalho, destaca Shenk (2007), Groot acabou contribuindo significativamente para a consolidação de um novo campo de estudos – a ciência cognitiva – que visava sistematizar e destrinchar o processo de pensamento. De acordo com Shenk:

A ciência cognitiva foi criada por membros de disciplinas mais antigas e bem estabelecidas: psicologia, neurologia, linguística, sociologia e antropologia. Era intrinsecamente interdisciplinar, ou seja, reconhecia que o melhor conhecimento da mente só é possível por meio de um sólido diálogo entre os especialistas desses diversos campos. O xadrez foi considerado um instrumento essencial para a nova ciência, permitindo que os pesquisadores estudassem como a mente operante se assemelha à máquina, combinando memória, lógica, cálculo e criatividade. (2007, p. 133).

8 A pesquisa de Adriaan de Groot será discutida em maiores detalhes ao longo do texto desta tese, sendo que os protocolos verbais estudados em uma das posições por ele testada – posição “A” (GROOT, 2008), serviram de base para a reinterpretação apresentada no capítulo seis (“Protocolos Verbais e Partidas Comentadas”).

Segundo Santaella (2007), em uma visão muito geral, entende-se como ciência cognitiva, “os estudos interdisciplinares para as questões da mente, cérebro, pensamento, consciência e todos os seus sucedâneos” (p. 74), tendo suas raízes filosóficas em Descartes e Hobbes, mas tendo suas raízes científicas apenas nos idos de 1930, quando o matemático inglês Alan Turing propôs uma formalização matemática da noção abstrata de máquina.

Como a física nuclear ou a química inorgânica, a psicologia cognitiva9, um dos braços mais fortes da ciência cognitiva, constitui um campo autônomo de pesquisa, assevera Saariluoma (1995), que define independentemente seus tópicos de pesquisa, métodos e conceitos teóricos. A mais nova abordagem concentra-se no processamento de informação humano e substituiu os tópicos previamente dominantes tais como o condicionamento. Assim, por meio do uso de métodos experimentais a psicologia cognitiva passou a se concentrar na própria atividade do conhecimento, no que diz respeito à sua aquisição, organização e utilização.

Saariluoma (1995) destaca que, do ponto de vista da teoria dos jogos, o xadrez é um jogo finito. Suas regras garantem que nenhuma partida pode ser continuada indefinidamente. A árvore de um jogo de xadrez é profunda, mas não infinita. Embora o número médio de lances em uma partida de torneio esteja na casa dos quarenta lances, informa Saariluoma, raramente passando de cem, o tamanho total da árvore de jogo no xadrez é grande o suficiente – em torno de 10120 nós – para prevenir os modernos computadores de encontrarem uma “solução” para o jogo – ou, seja, situação em que, assumindo que ambas as partes sempre escolham seus melhores lances, sabe-se de antemão se uma posição inicial é uma vitória forçada para as brancas, ou para as pretas, ou um empate (SAARILUOMA, 1995).

O xadrez é um jogo com informação perfeita e sem o uso de instrumentos de sorte, como dados ou qualquer outro recurso que possa ser utilizado para este fim. “[...] Chance e sorte, é largamente conhecido, não desempenham praticamente nenhum papel no xadrez e, portanto, qualquer medição baseada no desempenho dos jogadores é objetiva.” (SAARALIRUOMA, 1995, p. 18, tradução nossa). Isto

9 Psicologia Cognitiva pode ser definida como o “estudo dos processos de informação que habilitam o conhecimento, onde conhecer varia em grau, tempo, e contexto. Grau, tempo, e contexto são limitados pelos contrastes entre noviço e expert, entre criança e adulto e, em alguma extensão, entre contextos culturais.” (GOBET; VOOGT; RETSCHITZKI, 2004, p. 2- 3).

significa, complementa o autor citado, que “uma posição no xadrez contém todas as informações que são necessárias para se fazer uma correta escolha de lance. No pôquer, por exemplo, algumas das informações estão ocultas.” (p. 21, tradução nossa). Em termos de psicologia, complementam Gobet, Voogt e Retschitzki (2004), os jogos de loteria atraem os psicólogos interessados em jogos de azar e tomada de decisão sob condições incertas, enquanto os jogos de tabuleiro apresentam oportunidades para estudar a percepção, memória e o pensamento. O xadrez é, por sua vez, além de ser um jogo de tabuleiro, um jogo rico em conhecimento ou, em outras palavras, é um jogo de conhecimento intensivo (CHI, 2007).

Kasparov (2007) menciona que no romance “Chess Story” de Stefan Zweig (ZWEIG, 2006, p. 14-15), o autor apresenta uma cativante descrição do jogo de xadrez:

Mas não fazemos já uma restrição ofensiva qualificando de jogo o xadrez? Não é ele também uma ciência, uma técnica, uma arte, que paira entre essas categorias, como o esquife de Maomé entre o céu e a terra, não é uma união sem igual de todos os conceitos contraditórios? Antiquíssimo e sempre novo, mecânico no plano e eficiente só mediante a fantasia, limitado no espaço geométrico e, ao mesmo tempo, ilimitado em suas combinações... como demonstrado pelas evidências, o xadrez é mais duradouro em sua existência do que todos os livros e obras, o único jogo que é de todos os povos e de todas as épocas. Ninguém sabe que Deus o trouxe ao mundo a fim de matar tempo, aguçar a mente e excitar o espírito... Qualquer criança pode aprender suas primeiras regras, qualquer desajeitado pode experimentar jogá-lo e, apesar disso, esse jogo consegue gerar dentro desse quadrado imutável uma espécie particular de mestres, que não se pode comparar com qualquer outra, pessoas com uma inteligência exclusiva para ele, gênios específicos, nos quais a visão, a paciência e a técnica atuam com uma distribuição tão exatamente determinada como no matemático, no poeta, no músico, mas com outra estratificação e união. (p. 15-16).

Nesse sentido, Shenk (2007) também arrisca dizer que o xadrez: É um jogo intoxicante e, embora muitas vezes dificílimo, jamais cansativo. A sofisticada interação entre o simples e o complexo é hipnótica: as peças e as jogadas são suficientemente elementares para que qualquer criança de cinco anos as possa assimilar, mas as combinações no tabuleiro são tão vastas que a totalidade de jogadas possíveis jamais pode ser realizada, ou mesmo conhecida por uma só pessoa. Outros jogos de salão propiciam suficiente diversão, entretenimento, desafio, distração. Mas o xadrez se apodera. Ele não apenas ocupa a mente, mas assenhora-se da mesma de um modo que nos faz pensar em uma conexão primitiva codificada no cérebro humano. (p. 18, grifos do autor).

O xadrez tem sido frequentemente citado, ao longo da história, em diversas discussões sobre destino versus livre-arbítrio. De acordo com Shenk (2007, p. 19), “o xadrez provocou e aplacou brigas; facilitou e sabotou romances; fertilizou a literatura desde Dante até Nabokov.” No século XX, segundo o autor, o xadrez ajudou os cientistas da computação a criar máquinas inteligentes, além de ser intensamente usado para se estudar a memória, a linguagem, a matemática e a lógica, e recentemente emergiu como uma ferramenta de aprendizado utilizada em escolas do ensino fundamental e médio. Em mais de 1.400 anos de história, o xadrez tem sido repetidamente caracterizado como uma ferramenta para “explicar o inexplicável, para tornar visível o puramente abstrato, para mostrar verdades simples em mundos complexos.” (p. 26). Embora seja um jogo sobre a guerra, complementa Shenk, em toda sua longa história evolutiva, ele tem sido apresentado com uma metáfora para examinar uma grande variedade de coisas, desde o amor romântico até a economia.

É muito comum os historiadores se depararem com casos de xadrez oriundos de praticamente todas as culturas e épocas – histórias abordando a consciência de classe, o livre-arbítrio, a luta política, as fronteiras da mente, os mistérios do divino, a natureza da competição e, talvez mais fundamentalmente, o surgimento de um mundo

onde o cérebro frequentemente derrota a força física [...]. O xadrez é um instrumento de ensino e aprendizado mais antigo que os quadros de giz, os livros impressos, o compasso e o telescópio. (SHENK, 2007, p. 27).

A metáfora – a arte da comparação simbólica – não é um acessório opcional, e sim uma necessidade cultural de importância vital, assevera o autor supracitado. “A metáfora nos ajuda a organizar nossos pensamentos, e ao mesmo tempo nos liberta de restrições contextuais anteriores.” (p. 66). Uma utilidade especial da metáfora simbólica é a de propiciar um auxílio para se navegar pela complexidade, reduzindo-a a conceitos mais simples e manejáveis. O xadrez, destaca o autor, é um poderoso agente de redução.

Saariluoma (1995) também afirma que o jogo de xadrez e o pensamento de seus jogadores são combinações de simplicidade e complexidade. Os elementos do xadrez compreendem somente trinta e duas peças e sessenta e quatro casas, mas, como já destacado, as possibilidades combinatórias tem o tornado impossível para qualquer computador corrente ou para os milhões de entusiastas encontrarem uma “solução” para esse jogo. Dessa forma, essa combinação de aparente simplicidade e grande complexidade tem provado ser muito útil na pesquisa psicológica. “A simplicidade o faz fácil de investigar experimentalmente, e a complexidade provê processos de pensamento ecologicamente válidos para a pesquisa.” (SAARILUOMA, p. ix, tradução nossa).

No século XV o xadrez assumiu sua forma moderna, tornando-se um “símbolo da emergente era do conhecimento.” (SHENK, 2007, p. 75). Em outras palavras,

[...] O jogo agora chegava ao fim do seu primeiro milênio. Tinha sido uma extensão das guerras e da matemática do século VI, na Índia; uma marca cultural na Pérsia do século VII; um instrumento de pensamento eficaz para os filósofos guerreiros muçulmanos do século VIII; uma das ocupações favoritas dos muçulmanos na Espanha, nos séculos IX e X; e um espelho da sociedade para os cavaleiros, reis e clérigos da Europa medieval, entre os séculos XI e XIV. Agora, com a sociedade tornando-se mais iluminada, o uso metafórico do jogo cresceu rapidamente,

movendo-se ao mesmo tempo em diversas direções. (SHENK, 2007, p. 80).

Simon e Chase (1973) declararam ser o xadrez a drosophila da psicologia cognitiva, um papel que o matemático russo Alexander Kronrod sugeriu anteriormente para a inteligência artificial (GOBET; VOOGT; RETSCHITZKI, 2004). Assim como a mosca da fruta é um modelo ideal de laboratório para o estudo da hereditariedade – com uma complexidade genética adequada, uma reprodução rápida e características físicas facilmente manipuláveis nas recomposições genéticas –, também o xadrez o é para o estudo da mente humana. Seus atributos o tornam particularmente apropriado para decifrar questões sobre tomada de decisão, atenção e consciência (SHENK, 2007).

Sobre a tomada de decisão, afirma Saariluoma:

[...] Os jogadores de xadrez precisam com frequência tomar suas decisões como se fossem gerentes sob circunstâncias incertas, pelo fato de a complexidade das posições enxadrísticas na maioria dos casos não permitir aos jogadores que calculem todas as variantes até chegar a uma conclusão. Eles não sabem o que estará além do horizonte da sequência de lances calculáveis e eles precisam fazer suas escolhas de lances com base em informações estratégico-enxadrísticas de alto nível, mas incertas. (p. 18, tradução nossa). O intercâmbio entre busca e conhecimento tem dominado a pesquisa em psicologia, tornando-se a questão central em torno dos jogos de tabuleiro em geral, com especial destaque para o xadrez na ciência da computação e inteligência artificial (GOBET; VOOGT; RETSCHITZKI, 2004). Para esses autores:

Mais do que pesquisa em algoritmos de busca e funções de avaliação, é a pesquisa sobre o aprendizado de máquina e a modelagem do oponente que frequentemente oferece os picos mais altos de fertilização cruzada entre a inteligência artificial e a psicologia. Tópicos como planejamento, reconhecimento de padrões e, naturalmente, aprendizado, foram endereçados nesses estudos, tópicos que são todos essenciais para a compreensão do processo humano de

tomada de decisão. Alguns dos modelos podem ser usados diretamente para derivar hipóteses específicas sobre a cognição humana e investigar questões sobre o aprendizado e erros humanos, quando comparados ao aprendizado e erros da máquina. (p. 30, tradução nossa).

Sobre os processos de atenção e consciência, Durso et al. (1995), destaca que “talvez mais que em outras atividades, diferenças em expertise no xadrez são diferenças em Consciência da Situação.” (p. 295, tradução nossa).

Outro resultado prático do trabalho com o xadrez computacional, salienta Hearst (1983), envolve suas potenciais contribuições para a educação. Em 1983 esse autor observou que:

Se alguém pudesse projetar um programa de xadrez razoavelmente forte baseado no conhecimento de como os humanos realmente resolvem problemas, sua estrutura poderia se provar aplicável em uma variedade de áreas além do xadrez. [...] o computador poderia quebrar um problema em subobjetivos ou passos, e expor os estudantes humanos sucessivamente a estes problemas intermediários assim que eles progredissem em direção a uma solução final pelo domínio dos passos anteriores. Tais contribuições para a educação pode se provar um importante resultado do trabalho a partir do xadrez computacional – e os resultados poderiam permitir aos professores humanos gastarem tempo extra orientando os estudantes em como atacar mesmo os mais abstratos problemas em suas áreas particulares de interesse. (p. 169, tradução nossa). Enfim, várias ideias-chave no estudo da cognição humana têm sido formuladas e refinadas dentro do campo dos jogos de tabuleiro, principalmente com o uso do xadrez, declaram Gobet, Voogt e Retschitzki (2004). Segundo esses autores

Estas ideias incluem busca seletiva, aprofundamento progressivo, e o papel da percepção e do conhecimento na resolução dos problemas. As ideias centrais são agora suplementadas por dados sobre o

desenvolvimento e o envelhecimento, e sobre como o conhecimento é transmitido através da educação. Em uma extensão menor, essas ideias estão também sendo estendidas por evidências empíricas mostrando como a cognição se relaciona ao talento e inteligência, como ela é mediada pelas emoções e motivações, e como é implementada no cérebro. O microcosmo dos jogos de tabuleiro pode, portanto, ser visto como um reflexo da pesquisa na psicologia cognitiva em geral. (p. 205-206, tradução nossa).

3.2 – CONEXÕES E ESTUDOS DE RELEVÂNCIA 3.2.1 – Xadrez e Criatividade10

Todas as atividades criativas possuem suas regras. O artista ama os vínculos assim como o jogador ama as regras, afirma Domênico De Masi. A diferença entre trabalho criativo e trabalho executivo é que “no primeiro caso as regras representam um desafio, no segundo são apenas um limite.” (DE MASI, 2000, p. 227). O xadrez, talvez por sua expressão notadamente racional e conjunto de regras bem definidas, normalmente não é associado a processos criativos mais do que é entendido como um domínio de conhecimento onde só existe espaço para decisões estritamente lógicas e desprovidas de um elemento mais inovador. O fato é que é necessário conhecimento tanto quanto capacidade para utilizar esse conhecimento de forma totalmente criativa. O conhecimento separa o novato do expert, mas é o domínio do elemento criativo que separa o verdadeiro Mestre dos demais jogadores (KASPAROV, 2007).

Groot (2008) diz que um expert em xadrez raramente se depara com ideias completamente novas ou desconhecidas. As surpresas e deleites dos primeiros anos de envolvimento com a arte do xadrez já não são mais os mesmos, pois a maturidade da experiência também traz o conhecimento das diversas técnicas de jogo, atenuando o encanto vivenciado normalmente por um iniciante apaixonado. Mas Groot

10 Uma versão adaptada deste texto foi publicado em um artigo de nossa autoria em Pereira et al. (2008).

(2008) afirma que tal condição não decreta o xadrez como “estereotipado”, como conjeturou Emanuel Lasker em certo momento de sua carreira, ele que foi campeão mundial por vinte e sete anos (1894-1921). O próprio Lasker é tomado como exemplo por Groot, para evidenciar a possibilidade de uma contínua inovação na forma de se jogar o xadrez, dados os feitos conquistados em sua longa carreira, demonstrando sempre uma continuada capacidade para inovar e surpreender. Para Groot, o xadrez permite tanto o pensamento dogmático, baseado em métodos típicos de jogo aplicados a situações familiares, quanto o pensamento qualificado por ele como “relativista”, mais produtivo que reprodutivo, que estaria na base de uma postura criativa e que justamente procura fugir de um comportamento estereotipado. Em suas palavras: “[...] Como um todo, cada partida de xadrez é sempre algo nova, uma combinação completamente nova de antigos padrões. Isto é, de fato, o charme do jogo!” (GROOT, 2008, p. 305, tradução nossa).

O escritor, psiquiatra e sério jogador de xadrez, Charles Krauthammer, citado por Shenk (2007, p. 153), destaca com entusiasmo:

O amador vê as peças e suas movimentações. O expert vê, além disso, 64 casas, com espaços, linhas e áreas de influência. O gênio apreende um campo unificado, em cujo interior o espaço, a força e a massa são valências interativas: um bispo divide o tabuleiro em dois, um peão curva o espaço ao seu redor, da mesma maneira como a massa pode remodelar o espaço, no universo einsteiniano.

De Masi inclui o xadrez como uma das atividades que podem se encaixar no que ele chamou de ócio criativo. Sua visão é que se deve preencher o tempo com ações escolhidas por vontade própria, em vez daquelas que se faz por coação, como os trabalhos rotineiros de escritório ou na linha de montagem. “É a situação do poeta, do cientista, do estudioso, do amante do xadrez [...]” (DE MASI, 2000, p. 259). A criatividade se nutre de milhares de horas de reflexão ou exercício, que podem parecer perda de tempo. Mas, complementa o autor, esse “desperdício” de tempo é na verdade uma perambulação do corpo e da mente que acabará por desembocar-se numa obra de arte, num novo teorema, num romance e, porque não, numa brilhante partida de xadrez.

O xadrez é, pois, normalmente conectado a um elemento artístico. É comumente denominado esporte-arte-ciência (KASPAROV, 2007), referindo-se às suas qualidades de esporte/competição, de apresentar-se como uma forma de expressão, pela profundidade de ideias e concepções criativas que provocam deleite e admiração, e de sua contínua evolução como um campo de estudo em constante aprimoramento. Marcel Duchamp, que além de artista foi também um forte e dedicado jogador de xadrez (KASPAROV, 2007; NAUMANN; BAILEY, 2009), ousou afirmar: “cheguei à conclusão pessoal de que, enquanto todos os artistas não são jogadores de xadrez, todos os jogadores de xadrez são artistas.” (KASPAROV, 2007, p. 18-19).

Groot (2008) salienta, contudo, que embora possam ser encontrados elementos de beleza tanto nas produções artísticas por excelência como nas produções enxadrísticas, trata-se apenas de uma analogia e não de uma identidade. Pode-se jogar xadrez pelo simples prazer da atividade em si, pela profundidade e estética das combinações e planos produzidos, gerando partidas passíveis de serem imortalizadas na literatura enxadrística. Mas identificar o xadrez como uma forma de arte é concebível apenas nesses aspectos mais superficiais, afirma Groot. A diferença entre o xadrez e outras artes (música, dança, literatura, artes plásticas, etc.) configura-se em seu plano fundamental: os objetivos. O objetivo principal de um jogador de xadrez, em essência, não é produzir uma bela partida de xadrez (isso pode ser até um objetivo secundário), mas sim o de vencer o seu oponente. É, portanto, um domínio de conhecimento de caráter agonístico (RETONDAR, 2007), objetivado e finalista, diferentemente de outros meios reconhecidamente artísticos. Curiosamente, complementa Groot (2008), o caso do problemista de xadrez é diferente. Um problemista ou compositor de estudos enxadrísticos produz situações-desafio configuradas por determinadas relações de peças, gerando conceitos específicos, relacionados a concepções temáticas, estratégias, mecânica de realização das ideias, etc. (CARVALHO, 2004). Tais problemas são avaliados por diversos critérios em concursos de composições, mas, além da complexidade e grau de dificuldade na resolução, a originalidade e a estética estão entre os mais importantes. Para Groot (2008), é aceitável considerar um compositor de estudos enxadrísticos como um artista, mas o enxadrista convencional é muito mais um lutador, um jogador. Essa condição não o impede de ser criativo, apenas estabelece que sua criatividade seja orientada por uma finalidade objetiva: superar seu adversário.

Holding (1985) destaca que o xadrez é definitivamente uma atividade criativa, pelo menos no sentido de que o enxadrista deve

construir ou enfrentar muitas posições novas no tabuleiro, embora a possibilidade de criação seja limitada pelas regras do jogo.

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