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2 ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA: MULTIMODALIDADE E

3.2 Os multiletramentos ou letramentos múltiplos

3.2.2 O letramento crítico

Dentro de uma sociedade globalizada, são variadas as práticas de linguagem com as quais estamos envolvidos. O advento da mídia modernizada e difundida promoveu o compartilhamento de informações de maneira instantânea. Ter acesso a esses mecanismos de divulgação de informação, de arte, dos meios de comunicação em geral é um privilégio muitas vezes. Ter o controle dessas informações, dos meios de divulgação empodera uma classe social, provendo, assim, certa manipulação do que é “bom”, “ruim”, “adequado”, “inadequado”, “certo”, “errado”, isto é, o conteúdo divulgado serve a uma classe e, portanto, o controle sob outra se instaura. Todo esse controle, além da questão do (des)acesso, é dado via discurso, o que confirma o pensamento de van Dijk (2008): o discurso controla mentes, e essas, ações.

Reconhecer as ideologias, as armadilhas de um texto não são fáceis quando o leitor não possui uma consciência crítica. Para que este desenvolva essa criticidade, são necessárias estratégias. É nesse contexto que surge o letramento crítico. Essa abordagem teórica tem por principal objetivo engajar o sujeito em uma atividade crítica ou problematizadora que se estabeleça através da linguagem como prática social (STREET, 2014). Não podemos lidar com os textos de forma alienada ou descontextualizada, é necessário um trato ético. Trabalhar na perspectiva do letramento crítico é abordar os textos das diversas mídias e suportes sempre de maneira crítica, sendo capaz de descobrir suas ideologias, finalidades e intenções (ROJO, 2009; BAPTISTA, 2010, 2012, 2014).

O letramento crítico possui várias bases conceituais teóricas, dentre as quais se destaca a pedagogia libertadora do educador brasileiro Paulo Freire. Este conduziu a alfabetização de adultos de modo ideológico-libertador, promovendo a reflexão da situação do aprendiz nos caminhos da aprendizagem do código. Para Freire (1974), a aprendizagem não podia ser conduzida de modo unilateral: professor fala e ensina, aluno escuta e aprende (educação bancária). O discente

tem papel ativo na sua aprendizagem, não obstante cabe ao educador municiá-lo para que uma tomada de consciência seja deflagrada. Juntamente com essas ideias e as questões do modelo pós- estruturalista de discurso, Luke (2012) argumenta que essas tendências direcionaram: em primeiro lugar, a um foco na análise cultural e na crítica da ideologia como elemento primordial numa educação contra a marginalização e a exclusão social; em segundo lugar, a um compromisso com a inclusão da classe operária, das minorias culturais e linguísticas, das indígenas e outras classes marginalizadas; em último e terceiro lugar, um engajamento no entendimento de ideologias, na construção de sentidos do texto, servindo como apoio na constituição das relações sociais e materiais, bem como na vida cultural e política do cotidiano.

O letramento crítico considera a língua(gem), os textos e as estruturas do discurso como principais meios de representar e remodelar os mundos possíveis. Assim, essa abordagem objetiva desenvolver habilidades, capacidades de usar textos para analisar os campos sociais e seus sistemas de trocas, com o fim de promover a mudança nas relações sociais e nas condições materiais. Ademais, o letramento crítico pode promover o entendimento de como os textos e discursos podem manipular ideias de modo a alterar os significados no mundo, mudando-o dessa forma. Dessa perspectiva, o letramento crítico contribui nas práticas linguageiras para mudar as relações de poder (LUKE, 2012; CAZDEN et al., 1996).

Esses direcionamentos estão diretamente ligados ao que propõem e requerem, de forma explícita, as Orientações Curriculares Pa ra o Ensino Médio. O documento orienta que no ensino de línguas estrangeiras se leve em conta os letramentos, primando por uma formação que considere as variadas práticas de linguagem, em diferentes semioses. Desse modo, o documento, em especial, agrega a importância do letramento crítico quando assevera o seguinte sobre essa perspectiva:

[em um] trabalho de leitura, que visa a um letramento crítico, ganham ênfase as representações e as análises a respeito de diferenças, tais como: raciais, sexuais, de gênero e as indagações sobre quem ganha ou perde em determinadas relações sociais. (BRASIL, 2006, p. 116).

Portanto, o objetivo do ensino de línguas, de acordo com a abordagem do letramento crítico, é o de desenvolver a formação cidadã através da leitura e produção de variados textos, promover uma reflexão acurada de questões sociais, políticas e culturais que permeiam as práticas linguageiras, uma vez que “a língua é [...] produtora de uma realidade, já que por meio dela são criados valores e ideias, de forma não transparente, neutra ou fixa” (BAPTISTA, 2010, p. 124).

Esse cunho engajado do letramento advém da mudança de enfoque dessa perspectiva. Street (1984) propõe um ensino de cunho reflexivo, com a mudança de foco do letramento autônomo, perspectiva centrada no indivíduo, em suas capacidades individuais, para a perspectiva do letramento ideológico, que requer um sujeito ativo. Refletindo, o cidadão pode ler os mais variados textos criticamente, problematizando a “palavra no mundo, a fim de redesenhá-lo”, nas palavras de Janks (2013, p. 227).

Há algumas perspectivas que promovem o ensino crítico, tais como a leitura crítica e o letramento crítico. Porém, por compartilharem o adjetivo “crítico” e alguns objetivos, isso não significa que não possuem diferenças, ou seja, esses termos não são sinônimos. A leitura crítica, de base liberal humanística – racionalista, procura apreender as verdades prontas no texto, pois “prevê a clareza e o discernimento de fatos e opiniões” (DUBOC, 2012, p. 83). Já o letramento crítico revela-se mais questionador, deixando de lado a concepção de uma “verdade” pronta que o texto possa veicular, passando à questão problematizadora, uma abordagem mais reflexiva da construção da leitura, indo “além do trabalho objetivo e racional na decodificação dos sentidos do texto” (DUBOC, 2012, p. 83).

Essa acepção de letramento crítico situa a produção de significação sempre em termos do pertencimento sócio-histórico dos produtores de significação, e postula tanto leitores quanto autores como igualmente produtores de significação; como tal, ela recusa a normatividade universal e a crença em verdades universais e não sócio-históricos que sirvam para fundamentar de forma “objetiva” (isto é a-temporal e não social) leituras “certas” ou “erradas” (MENEZES DE SOUZA, 2011, p. 5).

De modo a apresentar como esse letramento crítico pode ser fomentado, Cervetti, Pardales e Damico (2001) fazem uma diferenciação entre o modelo liberal-humanista de leitura crítica e o do letramento crítico, em termos epistemológico, ontológico, autoria e objetivo educativo. Vejamos, a seguir, um quadro proposto pelos referidos autores.

Quadro 1: Diferenças entre Leitura crítica liberal humanística e Letramento crítico

Área Leitura crítica Letramento crítico

Conhecimento (Epistemologia)

O conhecimento é adquirido mediante a experiência do mundo através do pensamento racional; diferenciam-se os fatos, inferências e julgamentos do leitor.

O conhecimento não é natural ou neutro, é baseado sempre nas regras discursivas de uma comunidade específica e, portanto, é ideológico.

Realidade (Ontologia)

A realidade é cognoscível diretamente e, por conseguinte, serve como referência para a interpretação.

A realidade não pode ser conhecida com certeza e não pode ser captada pela linguagem; decisões sobre a verdade, portanto, não pode ser baseada numa teoria de correspondência com a realidade, mas deve ser feita localmente.

Autoria Detectar as intenções do autor é a base dos níveis mais altos da interpretação textual.

O significado textual é sempre múltiplo, contestado, situado cultural e historicamente construído através das diferentes relações de poder.

Objetivos Educativos

Desenvolver habilidades de alto nível de compreensão e interpretação.

Desenvolver a consciência crítica.

Fonte: Cervetti, Pardales, Damico (2001)

Assim, a leitura crítica – liberal humanística – enfoca questões mais racionais desde o

ponto de vista da reflexão do que está sendo posto em discussão, tratando a ‘verdade’ como algo a ser depreendido da leitura, verdade esta única no texto. Já o letramento crítico propõe não a verdade absoluta de um fato, mas as verdades potenciais que há nos textos, ou seja, a questão posta é problematizada e contextualizada sócio-histórico-culturalmente, já que todas as práticas – de linguagem – são situadas, de modo que situada, também, deve ser sua leitura. Além disso, mais que interpretação textual, o letramento crítico desenvolve a consciência crítica do que está sendo lido, levando em consideração as armadilhas discursivas, as questões de poder que permeiam as variadas práticas de linguagem, a relação de negociação da enunciação, etc.

É conforme essa perspectiva que entendemos a leitura e seu ensino, em um viés do letramento crítico, sociocultural. O professor de língua, assim, pode desenvolver em sala de aula não somente as condições de acesso às variadas práticas e eventos de letramento, como também possibilitar o desenvolvimento de uma consciência crítica para o que se está discutindo. A concepção de leitura adotada pelo docente, portanto, está diretamente conectada à sua prática e, desse modo, a sua forma de trabalhar a leitura. Sobre esse tema, discorreremos na seção seguinte.