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Capítulo 2 O livro de artista para crianças

2.3 Retratos e relatos: as diversas faces dos livros de artista para crianças

2.3.6 O LIVRO DA NINA PARA GUARDAR PEQUENAS COISAS:

O Livro da Nina para Guardar Pequenas Coisas (2010) (fig. 25), do artista norte-americano Keith Haring (1958/1990), foi criado em peça única para uma criança de sete anos e,

posteriormente, publicado como um livro ilustrado infantil. O livro nasceu como um presente de aniversário, personalizado, para Nina, filha de um pintor e amigo do artista.

Fig. 25 – Keith Haring, O Livro da Nina para Guardar Pequenas Coisas. Fonte: Coleção Livro de Artista.

Keith Haring foi um artista gráfico cujo traço se popularizou e influencia, até hoje, artistas do mundo inteiro. No ecletismo de sua obra estão a pintura, os desenhos, as esculturas, as colagens, entre outras modalidades, incluindo a questão da reprodutibilidade e o fácil acesso à arte. Participou dos movimentos da Pop Art e da Arte Urbana. Ele buscava meios alternativos e populares de divulgação, como lugares públicos, camisetas, livros, entre outros.

Seus traços e linhas estão presentes neste livro de artista para crianças de forma bastante artesanal, lembrando que, na época de sua criação, em 1988, o livro era um único exemplar, original e exclusivo. Mesmo agora, diante de suas reproduções, é possível identificar a proximidade do artista com a obra, do seu pincel e caneta, e também do seu grafismo.

Nina’s book of little things foi publicado pela primeira vez, no ano de 1994, nos Estados Unidos e, no Brasil, pela Cosac Naif, em 2010. Esta editora teve uma atenção especial na adequação do original à cópia e “empreendeu um cuidadoso trabalho de desenho e ajuste das imagens e da fonte – desenvolvida a partir da letra do próprio Haring. O papel foi pensado de forma a resistir a cola, canetinha, durex e outros materiais”38. Esta atitude, embora póstuma, respeita na obra

múltipla suas características originais. Isto, de certa forma, entra em acordo com o processo do livro de artista de edição, que preconiza a participação do artista em todas as suas etapas de produção, inclusive a edição e reprodução.

Como FLICTS, o livro de Haring tem o processo como uma das entradas para o seu reconhecimento como um livro de artista. Soma-se ao processo o propósito da obra: a interatividade da criança com o autor, a arte, e o objeto-livro. Haring propõe uma série de interferências, convocando-a a desenhar, rasgar, colar e escrever sobre suas páginas, a completar imagens, inventar outras, registrar lembranças e pensamentos, autorizando-a até mesmo a grudar no livro um pedaço de chiclete (fig. 26). O artista prescreve uma única regra: todas as interferências serão permitidas desde que sejam em pequenas coisas. Menos do que limites, esta regra dá o tom da brincadeira e constitui o fio condutor do livro e da sua narrativa. Ao incitar a transgressão das regras convencionais de manuseio e conservação do livro e incentivar a participação das crianças na sua elaboração, o autor transfigura a relação do leitor com o livro.

Fig. 26 – Keith Haring, O Livro da Nina para Guardar Pequenas Coisas. Fonte: Coleção Livro de Artista.

O livro é apresentado, em alguns sites e livrarias, como um livro de atividades (fig. 27), e no Blog da “Coleção Livro de Artista” é classificado como “livro infantil” e “desenho”. É importante ressaltar que ser um livro de atividades, na grande maioria das vezes, não implica em ser um livro de arte ou, muito menos, um livro de artista para crianças. Um livro de atividades, por exemplo, pode estar entre um livro de colorir, desenhar, de jogos e brincadeiras, muitas vezes sem qualquer significação artística ou literária; como pode trazer, por meio de brincadeiras e do movimento, a relação do leitor com o objeto livro, a literatura e a arte. Além disso, geralmente, o texto e as imagens do livro de artista para crianças, com as quais o leitor interage e brinca, possuem maior qualidade estética verbal e visual, bem como narrativas inusitadas e inter-relações estabelecidas com o objeto livro.

Fig. 27 - Exemplos de atividades propostas por Haring. Fonte: Coleção Livro de Artista.

Na quarta capa da edição brasileira há um pequeno texto escrito por Nina Clemente, 26 anos após ter recebido o livro como presente, que explicita a questão do endereçamento à criança e a relação do artista/ autor com o universo infantil. Nina comenta que Haring “tinha uma capacidade inata de transcender a vida adulta” e que era o seu melhor companheiro, apesar da diferença de idade. São lembranças coincidentes com as do artista que, neste depoimento, mostra a sua afinidade com as crianças

Alguns dias antes de voltar de Nova York, visitei Nina e Chiara Clemente, e ficamos desenhando juntos nas paredes de sua casa. Acho que esse foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. […] Tenho certeza de que fui um bom companheiro para muitas crianças e talvez tenha marcado suas vidas de forma duradoura, e lhes ensinado um pouco sobre o que é compartilhar e cuidar.39

Neste capítulo foram tratadas questões sobre a terminologia, autoria, endereçamento e origem dos livros de artista para crianças, juntamente com a apresentação de obras da categoria livro de artista de cunho editorial, com a intenção de compreensão e localização destes livros nas artes visuais. Foram explicitados alguns conceitos e especificidades destas obras, bem como indicados alguns pontos de confluência e de conflitos com os livros ilustrados e a literatura infantil. No capítulo seguinte serão desenvolvidas questões relativas aos livros ilustrados e o seu entrelaçamento com as artes visuais e os livros de artista de edição.

39 Depoimento publicado em outubro de 1987, no Keith Haring Journals, p. 239. Disponível em:

https://colecaolivrodeartista.wordpress.com/2016/12/13/o-livro-da-nina-para-guardar-pequenas-coisas/. Acessado em 15 de dezembro de 2017.