• Nenhum resultado encontrado

3. Tito Lívio e o êthos de Aníbal

3.5. O louvor do inimigo

Embora a narrativa já retratasse Aníbal como enfraquecido no fim da guerra, é preciso recordar seu valor para que a vitória romana seja gloriosa, pois, como sabemos, para Lívio, de uma maneira geral, o passado romano é virtuoso. Para engrandecer o Aníbal que seria vencido por Cipião, o historiador recorda seu valor, através do discurso dos soldados romanos, temerosos na iminência da batalha em Zama. O discurso é indireto livre, e não é possível saber exatamente se trata-se da voz dos soldados, de Fábio ou das recordações de Fábio ou reflexões do próprio narrador:

Nec Scipioni aut cum Syphace, inconditae barbariae rege, cui Statorius semilixa ducere exercitus solitus sit, aut cum socero eius Hasdrubale, fugacissimo duce, rem futuram, aut cum tumultuariis exercitibus ex agrestium semermi turba subito conlectis, sed cum Hannibale, prope nato in praetorio patris, fortissimi ducis, alito atque educato inter arma, puero quondam milite, vixdum iuvene imperatore, qui senex vincendo factus Hispanias, Gallias, Italiam ab Alpibus ad fretum monumentis ingentium rerum complesset. Ducere exercitum aequalem stipendiis suis, duratum omnium rerum patientia quas vix fides fiat homines passos, perfusum miliens cruore Romano, exuvias non militum tantum, sed etiam imperatorum portantem. Multos occursuros Scipioni in acie qui praetores, qui imperatores, qui consules Romanos sua manu occidissent, muralibus vallaribusque insignes coronis, pervagatos capta castra, captas urbes Romanas. Non esse hodie tot fasces magistratibus populi Romani, quot captos ex caede imperatorum prae se ferre posset Hannibal (Liv. 30.28. 3-7).

E Cipião não iria ao encontro de Sífax, rei de bárbaros desordenados, exército dirigido por Estatório, um empregado, ou de Asdrúbal, general rapidíssimo na fuga, ou de exércitos tumultuados, formados às pressas por uma multidão meio armada de camponeses, mas de Aníbal, o mais forte dos generais, praticamente nascido no acampamento militar do pai, criado e educado entre as armas, soldado desde menino, comandante ainda na juventude, que envelheceu em vitórias, e encheu a Hispânia, a Gália e a Itália dos Alpes até o Estreito com monumentos de seus feitos grandiosos. Aníbal dirigia um exército com tantos anos de serviço quanto ele, exército fortalecido por toda sorte de sofrimentos que dificilmente acreditar-se-ia que homens enfrentaram, banhado pelo sangue romano inúmeras vezes, portador de despojos não apenas de grandes soldados, mas também de generais. Cipão enfrentaria na batalha muitos que mataram com suas próprias mãos pretores, generais e cônsules romanos, recompensados com coroas por terem atravessados primeiro muralhas e trincheiras, que percorreram acampamentos e cidades romanas capturadas. Os magistrados do povo não possuíam hoje tantas insígnias quanto as que Aníbal deveria carregar consigo, apanhadas na morte dos cônsules.

A imagem de Aníbal como grande general deve ser permanecer na memória do leitor para que Roma seja exaltada com a glória de ter vencido um grande inimigo. Essa mesma imagem prevalecerá na obra após a Terceira Década. Aníbal aparecerá algumas vezes em cena, agindo, e em outros momentos é citado em reflexões do historiador. O foco da narrativa,

na Quarta Década é, entre outros assuntos, os feitos da guerra entre Síria e Roma, dos quais Aníbal só participa em segundo plano.

Terminada a Segunda Guerra Púnica, feito o acordo de paz, Aníbal permanece por um tempo em Cartago, e exerce inclusive uma magistratura (33.46). Entretanto, ele foge ao saber da vinda de alguns embaixadores romanos, pois achava que seria para capturá-lo (33.48). Realmente, o partido da oposição havia dito ao Senado que Aníbal trocara cartas com Antíoco, rei da Síria, que estava prestes a guerrear contra Roma. Além disso, Lívio relata que diziam que o ódio de Aníbal continuava implacável, e que ele vivia reclamando de que a cidade estava muito inativa, e só o som das armas a faria despertar (30.45.6). De fato, Lívio narra que Aníbal junta-se a Antíoco, e o estimula a levar a guerra até Roma: “Aníbal só acalentava um único e constante desejo: fazer a guerra na Itália (34.60)”. Assim, Aníbal após a Terceira Década é retratado como um guerreiro obstinado, que não desistira de cumprir o juramento feito quando criança. Aliás, em 35.19.2, Aníbal, apartado do conselho de Antíoco por causa da suspeita que recaíra sobre ele, relata tal juramento ao rei, relembrando assim o leitor de sua fidelidade e palavra, de eterno ódio aos romanos. O episódio é lembrado não apenas para confirmar sua fides, mas para incentivar a guerra. O historiador o caracteriza duas vezes como sábio e gênio da guerra no livro 36. Em 36.15.2, Aníbal é admirado por Antíoco:

“[...] Hannibalem vero non ut prudentem tantum virum sed prope vatem omnium, quae tum evenirent, admirari”.

“[...] admirava Aníbal por ser não apenas homem sábio, mas quase um adivinho de tudo que acontecera.

E novamente em 36.41.6, quando o historiador diz que Aníbal era o único a prever que Roma viria até a Ásia guerrear contra Antíoco.

Quando a Síria perde a guerra, Aníbal é exigido como refém no acordo de paz entre Cipião e Antíoco, e é caracterizado como um inimigo ainda nocivo:

[...] sed nunquam satis liquebit nobis ibi pacem esse populo Romano, onde Hannibal erit; eum ante omnia deposcimus (Liv. 37.45.16).

“Jamais veremos o povo romano verdadeiramente em paz onde quer que se encontre Aníbal; é ele que reclamamos antes de tudo”.

Aníbal é citado novamente no livro 39, quando o historiador relata sua morte, o que é feito em um contexto em que o historiador exalta o valor de três grandes generais (Cipião, Aníbal e Filopêmen); trata-se também de um momento de crítica aos líderes do tempo das ações descritas pela narrativa. O discurso de Aníbal no instante de sua morte, a maneira como

foi encurralado, sem honra nenhuma para o embaixador romano que capturaria facilmente um velho desarmado, são na opinião da personagem, uma ilustração de como “mudaram os costumes romanos”.

Hannibal, postquam est nuntiatum milites regios in vestibulo esse, postico, quod devium maxime atque occultissimi exitus erat, fugere conatus, ut id quoque occursu militum obsaeptum sensit et omnia circa clausa custodiis dispositis esse venenum, quod multo ante praeparatum ad tales habebat casus, poposcit. “Liberemus” inquit “diuturna cura populum Romanum, quando mortem senis exspectare longum censent. Nec magnam nec memorabilem ex inermi proditoque Flamininus victoriam feret. Mores quidem populi Romani quantum mutaverint, vel hic dies argumento erit. Horum patres Pyrrho regi, hosti armato, exercitum in Italia habenti, ut a veneno caueret praedixerunt: hi legatum consularem, qui auctor esset Prusiae per scelus occidendi hospitis, miserunt.” Execratus deinde in caput regnumque Prusiae et hospitales deos violatae ab eo fidei testes invocans, poculum exhausit. Hic vitae exitus fuit Hannibalis. (Liv. 39.51.7-12).

Aníbal, quando lhe foi anunciado que os soldados do rei estavam no vestíbulo, tentou fugir pelos fundos, pela passagem mais oculta e retirada, e quando percebeu que também essa estava obstruída por militares e tudo cercado por fileiras de guardas, pediu que trouxessem o veneno que havia sido preparado muito antes pra ocasiões como essa. “Livremos”, diz, “o povo romano de sua longa preocupação, já que não podem aguardar pacientemente a morte de um velho. Nem grandiosa nem memorável será a vitória de Flamínio sobre um inimigo desarmado e traído. Este dia ilustra quanto mudaram certos costumes do povo romano. Os pais desses avisaram ao rei Pirro, inimigo armado que estava com exército na Itália, de que se precavesse contra envenenamento; esses, enviaram um embaixador consular para que Prúsias se tornasse o autor do crime de matar seu hóspede”. E então, tendo amaldiçoado a cabeça e o reino de Prúsias, e invocando os deuses da hospitabilidade a que fossem testemunhas da violação da fidelidade, bebeu da taça.

Lívio parece expor através da opinião de Aníbal vícios de romanos daquela tempo da narrativa. A fidelidade de Aníbal e a sabedoria evidenciada através de seu discurso compõem uma narrativa laudatória do encerramento da vida do general, e cria um contraste com a ação romana pouco gloriosa. Lívio mais uma vez discute a oposição simplista de romano virtuoso e estrangeiro viciosa.

Em tom de epitáfio, no capítulo seguinte, Lívio discorda de outros historiadores a respeito de que a morte de Cipião e Aníbal se deram no mesmo ano, mas reúne os três (Cipião, Filopêmen e Aníbal) pelo fato de nenhum deles ter encontrado um fim adequado ao brilho de suas existências: “nemo eorum satis dignum splendore vitae exitum habuit” (39.52). Neste trecho, é interessante que Aníbal e Cipião são colocados lado a lado novamente. A imagem de Aníbal última exposta pelo historiador é a de um general brilhante, e, apesar de estrangeiro, mais virtuoso do que os líderes romanos daquele momento, que foram capturá-lo sem glória nenhuma.

A imagem na quarta década é a de um gênio da guerra, e grande inimigo de Roma. No livro 30, momento em que Aníbal seria vencido definitivamente, convém exaltá-lo, para engrandecer o vitorioso. E na década seguinte esta imagem é perpetuada, talvez fosse esta a imagem de Aníbal que convém ficar na memória. Sua caracterização como grande estrategista no início da terceira década também coopera para essa ideia. Mas como vimos, seu êthos foi construído ambiguamente, tanto pela voz do historiador quanto pelo jogo de vozes das personagens e de outras fontes do autor. Como vimos, os vícios e ações mais graves são relativizados pelo narrador através do discurso de outras personagens. O historiador assim sugere causas para os acontecimentos da derrota cartaginesa, e deixa para o leitor decidir sobre qual imagem é mais verossímil. Como já havíamos dito, a verossimilhança é para Tito Lívio a medida do verdadeiro. Seu êthos é complexo, apesar de em muitos momentos ser construídos através de estereótipos. Várias imagens são sobrepostas, e é difícil saber qual à a real opinião do historiador. O caráter construído parece voluntariamente construído ambiguamente, e isso serve para dois aspectos essenciais da obra: reconstruir a história em termos de causalidade moral, o que em certo grau contribui também para uma possível função didática da obra, e exaltar Roma, que superou um inimigo grandioso.

4. O GÊNERO BIOGRÁFICO E A VIDA DE ANÍBAL

Documentos relacionados