• Nenhum resultado encontrado

4. As metamorfoses dos usos

4.3 O lugar do consumo cultural

Pouco a pouco, o espaço segregado, pretendido pelos promotores dessa revalorização urbana, se afirma. É crescente a afluência da classe média para a região central, seja para moradia, seja para o consumo cultural.

Surpreende, a quem pouco freqüenta a região central da cidade, que nela haja usos, por parte de um número cada vez maior de pessoas, durante a noite. O centro, que até recentemente “morria” durante a noite, agora começa a “renascer”, com o redescobrimento dos “novos” antigos circuitos gastronômicos e o surgimento de inúmeros bares e pontos de encontro.

Com a ampliação do Mackenzie, por exemplo, tornou-se mais visível uma verdadeira concentração universitária envolvendo a Escola de Sociologia e

92

Política , a USP Maria Antonia, a Santa Casa nos arredores do Elevado Costa e Silva (o Minhocão) e da Rua da Consolação. Lugares antes considerados perigosos às margens do Minhocão hoje transformaram-se em pontos de “balada” e muito movimento durante as noites. A atração dos setores médios para a região central, especialmente estudantes, fortaleceu-se. Ruas antes escuras, onde predominava a prostituição à noite, de repente estão bem iluminadas com bares lotados de jovens em mesinhas nas calçadas.

Figura 31 - Restauração do edifício da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2005. Foto do autor.

O Hotel Cambridge, localizado nas proximidades da Praça da Bandeira, transformou-se em referência para festas e comemorações de aniversário de jovens universitários. Essa rede social da juventude pertencente às camadas médias da população também avança pela Rua Augusta, como é perceptível na Sorveteria Soroko e nas recém-inauguradas casas noturnas OUTS, Sarajevo, Inferno, entre outras. A casa noturna Vegas já é ponto de encontro de socialites paulistanos.

Centros culturais foram criados nessa região tais como o Centro Cultural Banco do Brasil, o Centro Cultural da Caixa Econômica Federal, o Centro Cultural da Galeria Olido, que atraem cada vez mais freqüentadores. Isso sem contar o Complexo Cultual na Região da Estação da Luz , que inclui o Museu da Língua Portuguesa, a Sala São Paulo (voltada a concertos) e o Museu de Arte Sacra, além da Pinacoteca do Estado.

Figura 32 - Praça Dom José Gaspar: um dos shows mensais do projeto denominado Piano na Praça, promovido pela Prefeitura Municipal da cidade. Apresentação do cantor e

compositor Francis Hime. 11 de novembro de 2006. Foto de Joaquim Duarte.

Além disso, a prefeitura instituiu, anualmente, a chamada Virada Cultural na cidade ou seja, vinte e quatro horas de diversas atividades artísticas espalhadas pela cidade, com uma programação mais ampla e variada na região central. Essa atividade institucional foi inspirada em atividades semelhantes que ocorrem em cidades como Roma, Paris e Madri. É a animação cultural como estratégia de valorização do lugar.

Figura 33 - Uma das novas universidades que se instalam no centro: a Anhembi Morumbi na Rua Líbero Badaró. Agosto de 2003. Foto do autor.

Pelo quarto ano consecutivo, em 05 e 06 de maio 2007, um milhão e meio de

pessoas eram esperadas93 para prestigiar essa festa cultural e contariam com o

funcionamento ininterrupto dos transportes públicos (ônibus e metrô). (ver programação no Anexo 05). Pela programação divulgada, podemos verificar que, proporcionalmente à população das zonas da cidade, a região central é a grande privilegiada. Para o secretário de Cultura Municipal, Carlos Augusto Calil, essa Virada Cultural é para todos e em todos os lugares, como projeto de democratização da cultura, e “É um espaço que permite até transgressões, nem

que seja por apenas 24 horas”.94 É inegável o aspecto positivo desse evento numa

cidade cada vez mais carente de atividades culturais gratuitas. Nele, manifesta-se a diversidade cultural da metrópole. No entanto, deve-se ressaltar que é uma

93

De acordo com entrevista dada pelo prefeito Kassab ao Jornal da Record de 07.05.07, três milhões e meio de pessoas participaram da Virada Cultural, sendo que o único incidente ocorreu na madrugada na Praça da Sé, durante o show do grupo Racionais MCs.

94

atividade concebida pelo Estado, com tempo e lugar estabelecidos, onde até as possíveis transgressões, tão comuns na vida cotidiana, têm também tempo e lugar para ocorrer. O centro está sendo transformado em lugar de festas, um lugar da colonização do cotidiano.

É assim que se pode falar de uma colonização do espaço urbano, que se efetua na rua pela imagem, pela publicidade, pelo espetáculo dos objetos: pelo “sistema dos objetos” tornados símbolos e espetáculo. A uniformização do cenário, visível na modernização das ruas antigas, reserva aos objetos (mercadorias) os efeitos de cores e formas que os tornam atraentes. Trata-se de uma aparência caricata de apropriação e de re-apropriação do espaço que o poder autoriza quando permite a realização de eventos nas ruas: carnaval, bailes, festivais folclóricos. Quanto à verdadeira apropriação, a da “manifestação” efetiva, é combatida pelas forças repressivas, que comandam o silêncio e o

esquecimento.95

Nessa Virada Cultural, a permissão para as transgressões a que se referia o secretário da cultura era evidente. O pouco policiamento e a ação passiva da polícia contrastava com o que ocorrera cinco dias antes no Primeiro de Maio, nesse mesmo espaço, que foi fortemente policiado.

Essa transgressão permitida foi interrompida em um show do grupo Racionais MCs na Praça da Sé. É sabido que esse grupo de rap atrai para seus shows grandes multidões, principalmente compostas por jovens das distantes periferias da metrópole. O show, previsto para as três horas da manhã do dia seis, teve uma hora e meia de atraso. A grande multidão presente na Praça se comprimia e até os espaços reservados para convidados foram sendo pressionados a abrigar parte da multidão. Durante o show, o clima era tenso. Um grupo de jovens subiu em uma banca de jornal e a danificava aos pulos, quando a polícia agiu de forma mais aguda. Os policiais começaram a agir com violência sobre a multidão, de forma exagerada, segundo pessoas por nós entrevistadas. Podemos questionar aqui se não seria melhor pedir aos jovens que subiram na banca de jornal para descerem, tendo em vista que o mais provável era o dono da banca de jornal ser um pequeno proprietário e que o mesmo arcaria com as despesas pelos danos causados.

95

Talvez esse argumento não bastasse, mas pelo visto não foi nem tentado. Esse foi o único incidente grave registrado durante as vinte e quatro horas do evento, em que se reuniram milhões de pessoas. O fato é que a repressão policial, com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, estendeu-se da Praça da Sé ao Viaduto do Chá e ao Boulevard São João, fazendo cancelar parte da programação nesse perímetro.

Quando as vinte e quatro horas da Virada Cultural acabaram, na noite de domingo, o que sobrou foram ruas quase desérticas, com toneladas de lixo. A multidão se foi, porque o ritmo da metrópole é o ritmo do trabalho e das mercadorias e o dia seguinte seria uma segunda-feira. Para muitos, resta esperar a Virada Cultural do ano que vem. Para outros, como os do ramo hoteleiro, resta contabilizar os lucros resultantes das ocupações dos hotéis nesses dias.

Quando ocorrem, na região central, manifestações efetivas, sem a autorização do executivo, elas são reprimidas violentamente, como ocorreu durante a malhação do Judas, no sábado de Aleluia, realizada no Cambuci em 2005, e com movimentos sociais pelo direito social à moradia.

Enquanto isso, no “reurbanizado” Vale do Anhangabaú, em seus degraus e pisos de granito, pode-se observar, à noite, skatistas que revelam outro estilo de vida não compatível “com o circuito dos usuários solventes do grande capital, freqüentadores da rede hoteleira, de gastronomia e de lazer que seguem padrões

internacionais”.96 É a apropriação do espaço que escapa da normalização do

espaço e a transgride.

Documentos relacionados