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O lugar de Claraboia na obra de José Saramago

Escrita numa época difícil para o autor, em que este se debatia com a falta de aceitação da sua obra, Claraboia, foi, durante a vida de José Saramago, colocada em segundo plano pelo próprio, escusando-se a publicá-la ou mesmo a falar dela de uma forma mais profunda. A essa repulsa poderá estar ligado o facto de a obra já ter sido declinada pelos outros. Não será arriscado dizer, ao jeito do que acontecera com, por exemplo, as condecorações de Mafra, ou outros prémios literários, que o orgulho tenha falado mais alto. Por outro lado, é também certo que, mais uma vez, o autor não quis privar os seus leitores da sua obra e, ou por não querer caucionar um romance com o qual já não se identificava, ou sabendo que ela suscitaria muito mais interesse postumamente, decidiu delegar nos seus herdeiros a responsabilidade de optar pela sua publicação ou não. Ao não contrariar a sua publicação póstuma, o Nobel saberia que seria este o desfecho, pois tal seria inevitável. Será também interessante o facto de, depois de ter (re)apropriado a obra, não ter manifestado qualquer interesse em mudá-la, em melhorá-la, uma vez que o romance foi publicado tal como o que havia sido enviado à editora.27 Possivelmente, Saramago quis que o elo que faltava completar entre o jovem escritor e o escritor maduro não fosse alvo de alteração, sendo fiel aos seus leitores. Ao não mostrar oposição à publicação póstuma da obra, Saramago estava, de alguma forma a atribuir-lhe algum destaque. Essa espera acabou por despertar a curiosidade de todos.

Assim, Claraboia liga duas etapas da vida do escritor. Não se poderá afirmar que há um Saramago antes deste romance e um depois. Mas há, com certeza, um Saramago diferente. Este romance fará também parte dos alicerces da obra do autor, proporcionando o tal “interesse arqueológico” já referido na introdução deste trabalho. O romance poderá ser visto como um ensaio do que vai surgir a seguir. Não será, certamente, uma obra menor. Em 1953, ano da sua conclusão, Saramago era um jovem escritor, sem nome no meio literário. À semelhança das crónicas de que o autor recomendava a leitura porque “está lá tudo”, também em Claraboia está grande parte daquilo que veio a ser Saramago.

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Conferência de imprensa de apresentação da obra Claraboia em Espanha, disponível https://www.youtube.com/watch?v=mGfCvi87aLc&t=1362s (“Rueda de prensa de 'Claraboya' de José

De facto, não é possível ter uma visão global da obra deste autor sem ter em consideração o romance Claraboia, uma vez que se trata da ligação de um hiato que estava por preencher. É certo que a sua ausência, durante a vida de Saramago, em nada veio interferir na apreciação da sua obra, mas, depois do aparecimento, olha-se, vê-se e repara-se na obra saramaguiana de outra forma. É neste romance que já estão os embriões de muitas personagens e de muitas ideias a desenvolver em futuras obras. Cada personagem criada, cada temática abordada poderá ser um tubo de ensaio, uma experimentação de um projeto maior que se irá consolidar em obras posteriores. Falou-se da aproximação da personagem de Abel Nogueira a Fernando Pessoa e, consequentemente, à personagem Ricardo Reis do romance publicado em 1984.

Claraboia é como um ensaio, um exercício de vários romances de Saramago. A ligação à

música, retomada em Memorial do Convento ou n’As Intermitências da Morte tem aqui a sua primeira aparição. O romance é, pois, um esquisso de uma obra que estava para nascer e José Saramago, décadas depois, tinha consciência da sua importância e daquilo que ela tinha para oferecer, por isso, deixou que ela fosse descoberta mais tarde. Foi quase um recado, querendo dizer que, apesar do seu desaparecimento físico, continuaria a surpreender e a questionar a existência humana através dos avisos e reflexões das suas personagens.

A ideia de delineação do que viria a ser o “modo de ser” de Saramago, também é percetível ao nível formal. Poder-se-á afirmar que, na obra, existe uma continuidade do que tinha sido concretizado no primeiro romance, Terra do Pecado (1947), uma vez que, por exemplo, ao nível dos capítulos, eles continuam a ser divididos e numerados. O mesmo já não acontecerá com Manual de Pintura e Caligrafia, publicado em 1977. Todavia, a grande transformação ocorrerá, como foi referido, com Levantado do Chão (1980). Em Claraboia, os diálogos são construídos de forma convencional, tal como a pontuação, que segue as regras tradicionais. No entanto, há, nos diálogos, uma fluidez e uma simplicidade que proporciona uma leitura contínua dos mesmos. Será esta procura de genuinidade do diálogo que levará a esse “abandono” da pontuação convencional nas obras posteriores.

Claraboia poderá ser abordada de duas formas. Se for lida de uma forma

despreocupada, como mais um romance de Saramago, poderá parecer uma obra menor, ainda com muitas inconsistências e inseguranças. Insegurança será a palavra que melhor define e obra. Se, por um lado, o autor começa a inovar ao nível formal, por outro, essas novas incursões no discurso são feitas, quase a medo e logo abandonadas. Não existe, ao longo do romance, uma consistência do discurso. Por vezes, os provérbios e/ou expressões

idiomáticas são assinalados com aspas, outras são integrados quer no discurso das personagens quer no do narrador, o que se veio a tornar recorrente na obra saramaguiana. O mesmo acontece com a “voz” do narrador ou o interior das personagens. Esta questão não será propositada. Provavelmente, como o artesão que vai experimentando a sua peça ou o cozinheiro vai aprimorando o seu tempero até encontrar o prato final, também Saramago começa a procurar a melhor forma / fórmula de conseguir chegar aos seus leitores. Por isso, também ao nível formal, o romance em análise, poderá ser entendido como um ensaio do que viria a ser a obra do autor. Há uma espécie de experimentação, o avançar de algo inovador, ainda sem consistência e, sobretudo, sem segurança para arriscar.

Claraboia poderá ser entendido, no conjunto da obra saramaguiana, como um ponto

que vai unir uma linha que parecia estar interrompida entre A Terra do Pecado (1947) e a restante obra. É possível a partir da leitura da obra encontrar o Saramago por detrás do escritor que recebeu o Nobel.

Importa também refletir um pouco sobre o lugar de Claraboia no conhecimento da obra de José Saramago, nomeadamente na vertente didática e/ou da sua presença na leitura dos mais jovens, particularmente através da sua inclusão no Plano Nacional de Leitura. Uma leitura, ainda que despreocupada, desta obra, poderá levar o jovem leitor a procurar outras em que encontre as várias temáticas abordadas neste romance. Torna-se, portanto, necessário alertar para a importância que obra poderia ter na cativação de jovens leitores.

Ao longo da escolaridade obrigatória, o aluno tem várias hipóteses de se cruzar com o autor. Logo, no primeiro ciclo, com A Maior Flor do Mundo, em que o autor afirma não ter jeito para contar histórias de crianças, os jovens contactam com a sua visão crítica sobre o desenvolvimento da humanidade e a crítica sobre a ação do Homem. Já no terceiro ciclo, através do que parece ser um simples texto, os alunos têm oportunidade de contactar com O

Conto da Ilha Desconhecida e também com a visão crítica de uma sociedade burocratizada

e hierarquizada. Entretanto, com a aproximação da conclusão do ensino secundário, chega a obrigatoriedade da leitura de uma das obras José Saramago, Memorial do Convento ou O

Ano da Morte de Ricardo Reis. A resistência é enorme e cada vez mais o resumo é substituído

pela leitura integral. Mesmo sem conhecer, não é raro ouvir “Saramago escrevia sem pontuação”. Dar a conhecer outra faceta de Saramago poderia, por isso, ser um passo para leituras mais profundas. Poderia não ser a melhor obra para leitura integral, mas funcionaria,

com certeza, como alavanca para as restantes. Conhecer Saramago a partir da leitura de

Claraboia poderá resultar como um aguçar de curiosidade sobre a restante. E, considerando

o romance, como já foi referido algumas vezes, como um ensaio, um esquisso do que viria a seguir, este seria um bom primeiro degrau.