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O lugar de humor na abordagem comunicativa e nos documentos orientadores

Capítulo 2 – O Manual Escolar e o Lugar do Humor em Documentos Orientadores do

2.2 O lugar de humor na abordagem comunicativa e nos documentos orientadores

como referência essencial os princípios da abordagem comunicativa e dos documentos orientadores como o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR) e o

Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro (QuaREPE), como se pode

notar na apresentação ou sinopse de alguns desses manuais no Quadro 1. Neste caso, torna-se oportuno e necessário fazer uma discussão sobre os princípios que fundamentam a abordagem comunicativa e os documentos orientadores, com vista a contribuir para uma melhor compreensão do lugar possível do humor no ensino e aprendizagem de PLE/PL2.

Título do manual Público-alvo Declarações sobre a base de referência

Aprender Português Adultos e

adolescentes

“O presente conjunto, (...) foi elaborado segundo a metodologia da abordagem comunicativa e está de acordo com os princípios do Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas: Aprendizagem, Ensino, Avaliação (QECR), do Conselho da Europa.” (veja o prefácio dos três manuais da coleção Aprender

Português)

Português em Foco Adultos e

adolescentes

“Este manual foi concebido e elaborado segundo a metodologia da abordagem comunicativa e segue os princípios e orientações patentes no QECR (...).” (veja o prefácio da coleção Português em Foco)

Falas Português? Jovens

“Todos os conteúdos deste projeto estão de acordo com o QECR (Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas) e com o QuaREPE (Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro).” (veja a sinopse dos manuais Falas Português?)

Na Crista da Onda Jovens “Este método privilegia uma abordagem comunicativa

que todas as atividades propostas estão organizadas de modo a estabelecer percursos diferentes, levando o aprendente à execução dos objetivos das tarefas finais.” (veja a sinopse dos manuais Na Crista da Onda)

Quadro 1: A base de referência de alguns manuais de PLE/PL2

O lugar de humor na abordagem comunicativa

A abordagem comunicativa (AC) surgiu nos anos 70 do século passado, quando a principal preocupação do ensino e aprendizagem de línguas mudou para a comunicação. Segundo Richards e Rodgers (2014, p. 151), a AC marca o início de uma grande mudança de paradigma no ensino de línguas no século XX e os princípios gerais da AC são amplamente aceites em todo o mundo. Na AC, a língua é encarada como um instrumento de comunicação, ao invés de um conjunto de itens fonológicos, gramaticais e lexicais a serem memorizados. Esta visão sobre a língua implica que o objetivo geral do ensino e aprendizagem de LE/L2 é a formação de um aluno apto a envolver-se ativamente no ato comunicativo através de língua- alvo. Como o próprio conceito de “abordagem” implica tomar em consideração a natureza flexível, multifacetada da aprendizagem de língua e do ato pedagógico, a AC funciona como um termo abrangente, representando um conjunto diversificado de princípios que direcionam para a visão comunicativa da aprendizagem de línguas e que podem ser usados para apoiar uma variedade de procedimentos em sala de aula (Richards e Rodgers, 2014, p. 172). No entanto, não é apropriado nem possível abordar todos os pressupostos teóricos da AC no presente estudo. A nossa principal intenção é tentar relacionar o humor com os princípios fundamentais da AC, uma vez que este estudo se centra no uso do humor como instrumento didático.

Como uma abordagem centrada no aluno, a AC preconiza a orientação do ensino de línguas para as necessidades futuras e os interesses dos aprendentes. A definição de objetivos e a planificação dos conteúdos de cursos devem basear nas necessidades de linguagem dos públicos contemplados. Brito (2016) aponta que o professor deve buscar saber as espectativas e os motivos dos alunos pelos quais aprendem a língua. Como parte importante das interações sociais, o humor pode ocorrer em todos os domínios da vida quotidiana. Mesmo no campo dos negócios, o humor tem a possibilidade de ocorrer como quebra-gelo em reuniões ou encontros. É inevitável que os aprendentes se deparam com o humor nas suas situações de vivência, de estudantes internacionais, crianças imigrantes recém-chegados a trabalhadores nas empresas multinacionais. Entretanto, os aprendentes tendem a ter dificuldades no que se refere à

identificação, compreensão, produção e tratamento de humor especialmente nas comunicações interculturais, o que torna o humor em necessidades reais. Por conseguinte, considera-se pertinente incluir as questões de humor na análise das necessidades, procurando saber se os alunos já encontraram dificuldade de lidar com o humor, em que aspeto foi a dificuldade, a sua atitude sobre o uso de humor no ensino, etc. Assim, o professor pode delimitar de forma melhor e adequada o lugar de humor no ensino ao seu público específico.

A introdução de material autêntico é reiterada na AC. Por material autêntico entende-se qualquer texto produzido para fins comunicativos, mas não para o ensino da língua. Os textos autênticos podem provir de inúmeras fontes: televisão, rádio, vídeos, jornais, conversação face a face ou ao telefone, entre outros. De acordo com Roger e Medley (1988, p, 468), o material autêntico reflete a naturalidade de forma e a apropriação de contexto cultural e situacional da língua usada por falantes nativos. Explorando este tipo de material, os alunos têm oportunidade de ver e ouvir a língua real que não só serve a um propósito, mas também contém riqueza em conteúdo cultural. Numa certa medida, o uso de materiais autênticos permite ter em conta a dimensão sociocultural da língua. Carvalho (1993) partilha a mesma opinião: “a utilização de material autêntico ajuda a recriar situações reais em sala de aula, a aprender a usar expressões dentro de determinados contextos e a absorver dados socioculturais imprescindíveis a um desempenho linguístico” (p. 118-119). Além de ser autênticos, Richards e Rodgers (1986) consideram que os materiais didáticos na AC devem ter as seguintes características:

1. Materials will focus on the communicative abilities of interpretation, expression and negotiation.

2. Materials will focus on the understandable, relevant, and interesting exchanges of information, rather than on the presentation of grammatical form.

3. Materials will involve different kinds of texts and different kinds of media, which the learners can use to develop their competence through a variety of activities and tasks. (Richards & Rodger, 1986, p. 25)

Como o humor é essencialmente um fenómeno social, a sua presença nos materiais autênticos é ampla. Existe um conjunto diversificados dos materiais autênticos e humorísticos para aproveitar no ensino de conhecimentos linguísticos e culturais, incluindo piadas, tiras cómicas, comédia stand-up, cartoon, anúncio publicitário. O professor pode selecionar materiais apropriados de vários recursos e prepará-los para a apreciação dos alunos e a instrução. A incorporação de humor no ensino e aprendizagem pode aumentar a diversidade dos tipos de textos e media a que os alunos se expõem. As narrativas humorísticas são muito mais do que apenas palavras e estruturas gramaticais e contêm geralmente ambiguidades linguísticas e

conotações culturais. A compreensão e a apreciação de humor necessitam da ativação integrada de competências linguísticas, socioculturais e pragmáticas dos alunos. Podemos dizer que o humor, como tópico complexo, pode estimular e refletir em certa medida o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos.

O lugar do humor nos documentos orientadores do ensino de PLE/PL2

No que se refere aos documentos orientadores no âmbito de ensino de PLE/PL2 em Portugal, têm destaque, como vimos, o QECR, o QuaREPE. Estes documentos apresentam orientações importantes e referências comuns para os responsáveis pela elaboração de manuais. Com a análise destes documentos tentaremos mostrar, com destaque, o lugar que o humor ocupa em cada documento que serve de referência para docentes e alunos de PLE/PL2.

O QECR é o resultado do projeto “Políticas Linguísticas para uma Europa Multilingue e Multicultural”, do conselho da Europa. Em 2001, a União Europeia recomendou a adoção do QECR pelos sistemas educativos dos seus estados-membros. No mesmo ano, foi publicada a versão portuguesa do documento. No que toca à influência do QECR no ensino de língua, Pinto (2007) afirma que:

Uma década depois, todo o ensino de línguas dependente do estado português está estruturado de acordo com o QECR: o ensino das línguas estrangeiras disponíveis no ensino básico e secundário – inglês, francês, espanhol e alemão –, o ensino de português língua não-materna, também no básico e secundário, o ensino de PLE nas universidades e politécnicos portugueses e até os programas de português língua materna do ensino básico e secundário. (Pinto, 2007, p. 2)

O QECR fornece uma base comum para a elaboração de programas curriculares, de materiais didáticas e de instrumentos de avaliação. O documento proporciona as descrições exaustivas sobre “aquilo que os aprendentes de uma língua têm de saber para serem capazes de comunicar e quais os conhecimentos e capacidades que têm de desenvolver para serem eficazes na sua atuação” (QECR, 2001, p. 19). Assim, é possível explorar o lugar de humor neste documento a partir das orientações metodológicas e dos seus descritores em relação à competência de humor.

Entre a discussão sobre as finalidades comunicativas em vários domínios, são mencionados os usos lúdicos da língua. O documento reitera o papel importante dos aspetos lúdicos da língua e apresenta vários exemplos de atividades lúdicas, como se pode observar nos seguintes excertos:

O uso da língua como jogo desempenha frequentemente um papel importante na aprendizagem e no desenvolvimento da língua, mas não está apenas confinado ao domínio educativo. Podemos dar os seguintes exemplos de actividades lúdicas:

Jogos sociais de linguagem:

• orais (histórias erradas ou “encontrar o erro”; como, quando, onde, etc.); • escritos (verdade e consequência, a forca, etc.);

• audiovisuais (loto de imagens, etc.);

• de cartas e de tabuleiro (canastra, monopólio, xadrez, damas, etc.); • charadas, mímica, etc.

Actividades individuais:

• adivinhas e enigmas (palavras cruzadas, anagramas, charadas, etc.);

• jogos mediáticos (TV e rádio: “Quebra-cabeças”, “Palavra Puxa Palavra”); Trocadilhos, jogos de palavras, por exemplo:

• na publicidade, p. ex.: da protecção ambiental: “um cigarro mal apagado pode apagar a floresta”;

• nos títulos de jornais, p. ex.: a propósito do lançamento de um CD dos Beatles perto do Natal, “Noite consolada”;

• nos graffiti, p. ex.: “Quem não tem nada não tem nada a perder”.

(QECR, 2001, p.88)

As atividades lúdicas recomendadas recorrem a uma variedade de tipos de textos, o que evidencia a omnipresença dos aspetos lúdicos da língua na nossa vida. Com efeito, o lúdico pode favorecer a aprendizagem através de criação de ambiente prazeroso, estímulo de curiosidade e criatividade. Além disso, o lúdico não reflete somente uma estratégia pedagógica dos adultos para transmitir conhecimentos aos mais jovens, mas é também através dessa dinâmica das relações sociais que as crianças aprendem papéis, lugares e valores sociais e vão associando os esquemas interpretativos da realidade em que estão inseridos (Araújo, 2011). É indubitável que o humor pode e deve ocupar um lugar nessas atividades lúdicas, apesar de nem todas as atividades lúdicas serem humorísticas. Os aprendentes adultos podem não estar interessados por jogos lúdicos simples e as atividades baseadas nos textos humorísticos conseguem-lhes apresentar novos desafios.

No que concerne à competência de humor, conforme o QECR, os aprendentes posicionados no nível C1 e C2 devem conseguir utilizar a língua com flexibilidade e eficácia num registo humorístico. Em todo o documento, a atuação efetiva nas interações humorísticas é mencionada nos quadros de referência intitulados “Identificar indícios e fazer inferências” (QECR, 2001, p. 112), “Conversação” (Ibid., p. 116), “Correspondência” (Ibid., p. 124), “Adequação sociolinguística” (Ibid., p. 173) e “Adequação sociolinguística” (Ibid., p. 173). A utilização precisa da linguagem humorística constitui ainda uma exigência para os aprendentes do nível C2 na conversação e discussão online, consoante os descritores no Common European

with new descriptors (2018, p. 227), o novo documento adicional ao QECR. De forma muito

sumária, as descrições só exigem aos aprendentes dos níveis avançados um desempenho positivo em termos de usos humorísticos da língua e não prestam mais detalhes.

O QuaREPE procura ser uma adequação do QECR a uma diversidade de contextos do Ensino Português no Estrangeiro12. Ao longo dos anos, o perfil dos aprendentes de português

tem sido cada vez mais diversificado, contemplando imigrantes em Portugal, lusodescendentes e falantes de outras línguas. O QuaREPE é instituído como um instrumento de política linguística portuguesa no âmbito internacional, fornecendo linhas de orientação para a elaboração e avaliação de programas de língua portuguesa (Schoffen & Martin, 2016, p. 282). Este documento é constituído por duas partes: um documento orientador com diretrizes teórico- metodológicas e descritores de competências essenciais, e um documento adicional com sugestões de tarefas e exercícios, bem como recursos para avaliação. Tendo por base o QECR, o QuaREPE também não proporciona mais especificação sobre a competência de humor. Em todo o documento, a atuação efetiva no registo humorístico é apenas mencionada nos descritores de produção e interação escrita ao nível de C113. Nas sugestões de trabalho, também

não se encontram as tarefas baseadas em textos humorísticos.

Diante do acima exposto, observa-se a falta de especificação da competência de humor e a negligência da importância de humor como instrumento didático nos documentos orientadores importantes de PLE/PL2. Na verdade, a competência de humor não pode ser considerada independentemente do enquadramento da noção de competência comunicativa. A complexidade linguística e cultural do humor leva a que a sua identificação e compreensão necessitem de níveis elevados de competências linguísticas, socioculturais, estratégicas e discursivas (Deneire, 1995, p. 294). Por conseguinte, a competência comunicativa bem desenvolvida implica a competência de humor, e vice-versa. É importante reconhecer que o estabelecimento dos critérios de competência comunicativa tem maior prioridade do que a competência de humor. Entretanto, o lugar marginalizado de humor nos documentos orientadores pode levar à ausência de humor na sala de aula de PLE/PL2. E as necessidades dos aprendentes para o desenvolvimento de competência de humor tendem a passar desapercebidas aos autores de manuais e aos professores.

12 Ensino Português no Estrangeiro refere-se ao ensino de língua e cultura portuguesa destinado aos alunos do

ensino não superior, a viver em países cuja língua oficial não é o português, servidos ou não pela atual rede de cursos de língua e cultura portuguesas.

Importa distinguir o uso de humor como instrumento didático da competência de humor. Para desenvolver a competência de humor dos alunos, deve-se admitir a necessidade de introduzir o humor nas aulas de LE/L2. O uso de humor como instrumento didático não só promove o ensino-aprendizagem dos conhecimentos linguísticos e culturais, mas também enriquece o repertório de humor em LE/L2 dos alunos, contribuindo a partir destas duas dimensões para o desenvolvimento da sua competência de humor. A boa competência de humor é geralmente adquirida nos níveis elevados, mas o uso de humor como instrumento didático aplica-se aos alunos de diferentes níveis e idades. No caso de manuais, cabe aos autores proceder à seleção e adaptação dos textos humorísticos segundo os interesses e os níveis do público-alvo.

Síntese

Na primeira parte deste capítulo, defendemos a necessidade de efetuar a análise dos textos humorísticos em manuais de PLE/PL2, a partir da exposição de várias funções que os manuais assumem no ensino e aprendizagem. Mesmo que tenham sido alvo de reflexões críticas, os manuais continuam a ser o principal recurso didático no atual contexto educativo, devido a fatores práticos e ideológicos. Tomando os manuais de PLE/PL2 como objeto de análise, tornou-se necessário delinear o lugar do humor verbal nos documentos oficiais que definem linhas orientadoras para este âmbito do ensino. Argumentámos, por um lado, que a utilização apropriada do humor verbal nas aulas de línguas se conforma aos princípios base da abordagem comunicativa que são adotados pela grande parte dos autores de manuais. Por outro, revelou- se o lugar marginalizado do uso de humor, assim como a pouca atenção dispensada à competência nas interações humorísticas, nos principais documentos orientadores para o ensino de PLE/PL2. Este capítulo contribuiu para uma melhor compreensão sobre o lugar devido do humor verbal nas aulas de PLE/PL2 e ofereceu a base sólida para a análise e a reflexão a serem realizadas.

CAPÍTULO 3 – Análise Quantitativa e Qualitativa de Humor em Manuais de PLE/PL2: