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O mínimo que se espera dos brasileiros é a religiosidade

A expressão religiosidade mínima brasileira (RMB) foi utilizada pela primeira vez por André Droogers, em 1987, e de acordo com Margarida OLIVA: “O vocabulário dessa ‘religião brasileira’ seria fornecido pelo catolicismo popular e o conhecimento dele seria o ‘pré-primário da religião’” (OLIVA, 1997, p.70) sendo como uma matriz de uso comum, ou denominador comum, em que as religiões dentro de suas cosmologias internas se utilizam em benefício próprio, dando significados dentro de suas próprias crenças. Há, portanto, “um eixo sagrado que é reconhecido por todas as religiões brasileiras” (FERNANDES apud DROOGERS, 1987, p. 64)

Este denominador comum então garantiria, em contraponto a pluralidade religiosa, a unidade dentro da diversidade. Possibilitando um senso que engloba todos as mais diversificadas vivências religiosas, pois encontra acima de experiências religiosas concretas.

No delicado malabarismo e equilibrismo entre unidade e diversidade, a religião – como força simbólica e força social – atua dos dois lados. Ela é mais conhecida pela sua contribuição à diversidade. A RMB, no entanto, mostra o outro lado. Ela tende a unir os brasileiros e contribui na construção da identidade brasileira (DROOGERS, 1987, p. 82)

Os dois principais eixos da RMB, são a fé e a crença em Deus. A fé pode ser considerada no sentido do otimismo em relação aos acontecimentos cotidianos, considerando que “tudo vai dar certo” como forma de resistência às dificuldades cotidianas da sociedade brasileira, como “força providencial de que se pode dispor para realizar o impossível” (OLIVA, 1997, p. 70) Já a crença em Deus, de acordo com as balizas da RMB se mostra mais individualista do que dentro das religiões institucionalizadas, pois os fiéis se comunicam diretamente com a divindade, não sendo necessário a intercessores como santos ou entidades espirituais. E, por isso, se torna soberano nos acontecimentos cotidianos, mesmo que extremamente subjetivo. “É o ‘Deus de cada um’. ‘Ele é quem ajuda, abençoa, ilumina, acompanha e protege’. Pode curar e perdoar, mas pode também castigar. É um Deus sem fisionomia própria, mas presente na vida das pessoas tanto nas graças como nas desgraças” (OLIVA, 1997, p. 70)

Muito além do que apenas nos aspectos simbólicos, a religiosidade mínima também está presente de forma prática no cotidiano. É só levarmos essa crença em um “Deus pai todo poderoso” como forma de explicar as hierarquias presentes na sociedade brasileira.

Essa atitude religiosa de dependência reflete a experiência da vida em sociedade e, ao mesmo tempo, a mantém e reforça. A “alma religiosa brasileira” inspira todas as relações sociais, desde a família até as relações de cidadania. Formaram-se desde a colonização, duas categorias de brasileiros: a de “senhores” ou “coronéis”, e a dos escravos ou colonos. A primeira detém o poder ao qual a segunda é submissa. O sentimento de radical dependência se acompanha de um instintivo respeito pela hierarquia do poder, percebido como algo sagrado (OLIVA, 1997, p. 73)

A sacralidade com que as hierarquias são encaradas na sociedade brasileira, pode ser exemplificada em todas as religiões presentes no país, porém, obviamente vamos nos ater à falar das duas religiões estudadas neste trabalho, que demonstram claramente a vivência da RMB no cotidiano dos fiéis.

Dentro do contexto umbandista, a hierarquia funcional dentro de um terreiro é sacramentada e identificada da seguinte maneira; os fiéis não iniciados estão na base da pirâmide seguidos pelos cambones: pessoas que estão desenvolvendo suas capacidades mediúnicas, porém ainda não estão autorizados ao transe em assistência aos fiéis e, portanto, durante os trabalhos são encarregados de auxiliar aos médiuns facilitando na manutenção do culto, sendo considerados como ajudantes. Os cambones estão abaixo dos médiuns já autorizados à incorporação de suas próprias entidades, trabalhando na assistência dos indivíduos leigos. Na posição intermediária da hierarquia temos a mãe (ou pai) pequena (o). São escolhidos pelos chefes dos terreiros, dentro dos iniciados de sua confiança, como quem irá substituir a direção espiritual da casa, caso necessário. São iniciados na religião, consagrados como sacerdotes e, portanto, preparados para assumir as responsabilidades de um terreiro de Umbanda, nos âmbitos físicos e espirituais. E, no topo da hierarquia temos as mães e pais de santo responsáveis pela chefia dos terreiros64.

Em relação ao mundo espiritual, também temos uma hierarquia estabelecida. Os médiuns, sacerdotes ou não, são considerados como facilitadores das relações dos fiéis com as entidades espirituais e estão na base da hierarquia; as entidades espirituais caracterizam uma categoria intermediária pois são responsáveis pela comunicação entre viventes encarnados e orixás. Os orixás, por sua vez, são divindades responsáveis por cuidar de elementos específicos

64Em alguns terreiros, usa-se os termos africanos: “Babalorixá” para homens e “Yalorixá” para mulheres, em conformidade com a tradição candomblecista.

da natureza e de campos da experiência humana respondendo por seus atos ao ser supremo, o Olorum ou Olodumaré, que está no topo da hierarquia espiritual.

Já em relação à IURD,

[...]o poder de Jesus Cristo sobre os demônios é dado aos pastores e, em menor grau aos obreiros, que se tornam mediadores entre os fiéis e o sagrado. A disposição natural da alma brasileira para a dependência subalterna facilita a confiança e o respeito em relação aos pastores[...] (OLIVA, 1997, p. 74)65

Em relação à cosmovisão espiritual, Deus é o ser supremo, sendo seguido apenas de Jesus Cristo e o Espirito Santo, dotados do poder necessário para que se cumpra a vontade de Deus através dos praticantes da igreja.

Já na hierarquia da IURD, temos os bispos no topo. O bispo Edir Macedo é considerado como responsável por todas as IURDs do mundo e, portanto, chefe de todos os bispos que são divididos por regiões. Além disso, os bispos também podem ser encarregados de missões especificas, o que proporciona elevação na hierarquia institucional. Abaixo dos bispos, temos os pastores divididos em três subcategorias: os pastores regionais, responsáveis pelas igrejas de um estado especifico; os pastores titulares, responsáveis por uma igreja especifica e os pastores auxiliares, que ajudam os pastores oficiais, inclusive ministrando cultos esporádicos. Na base da pirâmide temos os obreiros, que são fiéis leigos que tem posição de destaque dentro de sua igreja. Encarregados da manutenção do culto e também por manter a ordem da igreja fora dos horários específicos das sessões, além de outras funções pastorais e, assim como os cambones, podem ser considerados como ajudantes. Sem contar os fiéis leigos, apenas participantes dos cultos ministrados dentro da igreja.

Fazendo um recorte sobre equidade de gênero nas duas religiões, percebemos que a presença feminina nas hierarquias pode ser considerada como desigual. Na Umbanda, esta presença é sentida em todos os níveis hierárquicos, inclusive tendo-se a estimativa que as mães- de-santo são mais numerosas que os pais-de-santo por todo o Brasil. E, em relação a Igreja Universal do Reino de Deus, por mais que seja registrado maior número de fiéis como mulheres, estas aparentemente não são encorajadas a irem além de obreiras, na hierarquia religiosa.66

65 Devemos levar em consideração que o que a autora considera como “disposição natural” faz parte de comportamentos sociais internalizados pelos indivíduos, que carregam em si ainda heranças da sociedade escravocrata baseada na violência e degradação das pessoas para que “ocupassem o seu lugar” nos moldes sociais. Fugindo momentaneamente do objeto deste trabalho, o filme “Que horas ela volta?” (2015) de Anna Muylaert traz um retrato de como essas relações sociais ainda são mantidas no Brasil.

66O trabalho de BERNARDO (2005) se baseia em pesquisas e análises sobre a presença feminina nas religiões afro brasileiras, com recorte na Umbanda e no Candomblé e, em relação à IURD, o trabalho de GALLO (2014) interpreta a presença das mulheres dentro dessas igrejas.

Como forma de encerramento do assunto da religiosidade mínima brasileira, é necessário notarmos que muito além da crença em Deus e a fé, a crença no diabo e suas ações também é muito presente, podendo ser considerada como um dos pilares dessa religiosidade comum à maioria da população brasileira.

Outro aspecto do conceito de Deus a ser destacado na RMB é o seu contraponto na figura do Diabo. Nos exemplos sobre ele, a referência é quase sempre feita num tom de brincadeira. É como se, pela soberania do poder de Deus, o diabo não devesse ser levado a sério. Mas pode também ser que por trás dessa atitude se esconda um verdadeiro medo dele. Talvez seja por isso que nas religiões concretas o Diabo ocupe um lugar bem importante, enquanto que Deus, muitas vezes, parece ser esquecido. (DROOGERS, 1987, p. 77)

A disputa entre Deus e o diabo é, como sabido, um dos eixos norteadores na relação entre a IURD e a Umbanda e extrapola as interpretações dentro da RMB. Tratar da construção histórica do demônio é fundamental para que possamos entender como é que a situação atual foi alcançada, com os demônios tão presentes na sociedade brasileira.