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O Magnificat: de Abraão a Jesus

CAPÍTULO II: A Passagem da Aliança do AT para o NT

2 Jesus e a Aliança

2.3 O Magnificat: de Abraão a Jesus

O Evangelho de Lucas é o único a apresentar o Cântico de Maria, o Magnificat (Lc 1,46-56). Diversos estudos demonstram que a base deste cântico é o Cântico de Ana (1Sm 2,1-10). O comentário da Bíblia de Jerusalém indica que o Cântico de Maria inspira-se ainda em muitos outros textos do Antigo Testamento. Porém, destaca os dois grandes temas:

1. Pobres e pequenos são socorridos em detrimento de ricos e poderosos (cf Sf 2,3+; Mt 5,3+);

2. Israel, objeto da graça de Deus (cf. Dt 7,6+ etc) desde a promessa feita a Abraão (Gn 15, 1+; 17,1+)100.

Portanto, os dois principais temas do Magnificat fazem menção direta com a Aliança: lembram a promessa feita a Abraão e os direitos do pobre.

Ainda é possível dividir o texto em dois grandes blocos. O primeiro bloco, do início até a frase “em meu favor” (cf. Lc 1,46-49a). O segundo bloco de “Agiu com a força de seu

braço” (cf. Lc 1,51-55) até o fim. Entre os dois blocos está uma frase, que é quase uma espé-

cie de refrão. “Seu nome é santo e sua misericórdia perdura de geração em geração para a-

queles que o temem” (cf. Lc 1,49b-50). Nesta frase está em destaque o nome de Deus, que também acompanha através dos tempos os diversos momentos da Aliança – El Shadai com Abraão, O SENHOR [Yahweh] na Aliança com Moisés. Mas a principal mensagem deste possí- vel refrão está na qualidade da identidade de Deus: Ele é misericordioso, e essa sua miseri- córdia passa de geração em geração, assim como a Aliança com Abraão também passa de ge-

ração em geração: “Estabelecerei minha aliança entre mim e ti, e tua raça depois de ti, de

geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o teu Deus e o de tua raça depois de ti”

(Gn 17,7).

No primeiro bloco, está o agradecimento de Maria porque Deus olhou para ela, e neste momento Maria identifica-se como serva humilhada. O verbo olhar/ver aparece em momen- tos cruciais na Bíblia, quando refere-se a Deus. No Gênesis, um pouco antes de decidir criar o homem, está escrito “e Deus viu que isso era bom” (cf. Gn 1,25). Na sarça ardente, após se apresentar para Moisés como o “Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó” (cf. Ex 3,6) O SENHOR diz: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito” (Ex 3,7). Portanto, o olhar de Deus demonstra a sua proximidade com a história do povo, e neste momento, tam- bém parece ser esta a experiência de Maria: Deus está próximo e por isso pode fazer “grandes

coisas”. Importante perceber como a experiência de Deus, no Cântico, é a experiência de um

Deus que age na história. Este Deus misericordioso não se parece com o deus tirano do Tem- plo. E no caso, no Magnificat, “temer” não parece ser utilizado como sinônimo de “ter medo de”, mas recorda que é necessário observar Seus preceitos, em outras palavras, cumprir com o compromisso assumido na Aliança.

No segundo bloco, reaparece o Deus guerreiro. Um Deus que se compromete com os seus, e “age com a força de seu braço” para proteger àqueles que Ele ama e para expulsar to- dos os que desrespeitam sua Aliança. Nesta ação, toda a sociedade está dividida em cinco grupos: os homens de coração orgulhoso são dispersos; os poderosos são depostos de seus tronos; os humildes são exaltados; os famintos recebem muito mais, além dos alimentos; e os ricos ficam de mãos vazias. De certa forma, aparece resumido o ideário da Aliança, o projeto igualitário do Senhor no qual se destaca o direito do pobre, do faminto. Por fim, o Cântico re- fere-se a todo Israel, agora considerado como o povo escolhido por Deus. Novamente, é cita- da a misericórdia de Deus, deixando claro que nesta relação o passo inicial é sempre de Deus. Israel é servo. Concluindo o Cântico, aparece a principal referência à Aliança que, mesmo não sendo citada nominalmente, está relembrada: “Conforme prometera a nossos pais – em favor

Dessa maneira é possível ver o Magnificat como uma grande ponte que dá continuida- de à Aliança e à relação DO SENHOR com o seu povo escolhido. O Cântico, de alguma forma, reafirma que os pobres e os famintos continuam a ser os preferidos de Deus. Configura-se as- sim, pela palavra de Maria, mãe de Jesus, o elo entre o Antigo e o Novo Testamentos, reafir- mando-se o respeito ao pobre, ao oprimido. Este respeito pelos últimos também permite unir a ação de Jesus a tradição profética da Aliança.

Finalmente, esta preocupação de Jesus e dos evangelhos em relação aos "po- bres", aos "marginalizados", liga-se imediatamente à mesma temática do An- tigo Testamento, tanto em relação à linha profética, quanto em relação à Lei, a Torá. Mas Jesus, ultrapassando a mentalidade de sua época, vai na linha da radicalização da Lei, como vontade salvífica de Deus (cf. Mt 5·7). Seria im- possível analisar aqui todos os textos da Lei e dos profetas que insistem so- bre a necessidade de se respeitar os "pobres" e os "marginalizados", primeiro por causa da extensão e depois por causa da evolução da própria realidade histórica de Israel, na medida em que o vocabulário, que refletia uma "reali- dade sociológica", foi, aos poucos, assumindo um valor no plano espiritual. Mas para mostrarmos que esta preocupação para com os "pobres" e "margi- nalizados" é uma das dominantes da Lei e também dos profetas, citaremos alguns textos que revelam uma contínua crítica à opressão sobre os "pobres": Dt 10,18; 10,19; 14,29; 16,11.14; 24,17.20.21; 27,19; Jr 7,6; 22,3; cf. Ez 22,7; 5,28; 22,29; Zc 7,10; Ml 3,5; Dt 24,24; Ex 22,21; Is 1,17.23; 10,2; Jó 22,9; 29,12-13; Dt 24,17; Lv 19,33-34; Dt 10,19; Ex 11,10; 23,9; Dt 24,12- 13; Lv 19,9-10; Dt 24,19.20.21; Lv 23,22; Dt 15,11; Is 41,7; 58,7; Jr 22,16; Ex 18,12; 22,29.101

101 FERRARO, Benedito. A significação política e teológica da morte de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 93-