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Capítulo II O Auto da Criação do Mundo ou Princípio do Mundo

A. Os testemunhos escritos

A.1. O manuscrito de Salustiano Augusto Ovelheiro (1924) (Texto A)

Ilustração 11 – Salustiano Augusto Ovelheiro e sua esposa, Justina da Ressurreição Preto.

Encontra-se na posse dos herdeiros de Salustiano Augusto Ovelheiro, morador que foi da aldeia de Urrós, agricultor de profissão, que, segundo familiares próximos, possuía grande apetência para a arte de versejar, produzindo regularmente composições poéticas sobre a vivência da gente local. Episódios amorosos, crimes passionais ou elogios póstumos a combatentes da Guerra Colonial serviam de tema a poemetos, que replicava de forma manuscrita, e propagava pelas aldeias limítrofes, como folhetos noticiosos versificados.

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Ilustração 12 – Alice Augusto Ovelheiro.

Dessa produção, sua filha, Alice Augusto Ovelheiro, relembra apenas duas quadras, de um conjunto de sessenta versos, sobre o suicídio de um jovem local:

Dia 22 de Outubro numa noite de luar claro suicidou-se de um penedo Abílio Augusto Calvo. Tinha 25 anos de idade não fazia mal a ninguém apaixonado pelos namoros não quis os conselhos da mãe.

Todavia, relembra a história de um crime passional (36), envolvendo um triângulo amoroso, cujo desfecho

trágico culminou na morte do marido, o sapateiro António Joaquim Seco (37). Transcrevêmo-lo pelo que

revela do estilo melodramático do seu autor, evocando o género de melodias cantadas pelos cegos nas ruas de Lisboa, do tempo de Nicolau Luís e dos folhetos de cordel, memórias monocórdicas de outros tempos, tão ao gosto do sentimentalismo popular (38).

36 Fernando Marcos, de Urrós, que teve participação activa na representação de 1971, transmitiu-nos na íntegra os versos

compostos por Salustiano Augusto Ovelheiro.

37 A 13 de Abril de 1958, com 33 anos de idade, «a idade de Cristo», conforme recordam alguns informantes com pesar. 38 Na opinião de (MARTINS 1950: 143) “o povo de então e o de agora não diferiam muito. Porém, podemos notar, ainda outro

ponto de contacto, entre aqueles tempos e os nossos. Referimo-nos às gestas sagradas, por vezes já a meio caminho do teatro religioso. Ainda há poucos anos, cantava-se, em verso, a vida do Padre Cruz. E nos mercados e feiras nortenhas, encontramos à venda as Novas cantorias da Sagrada Escritura lado a lado com A Formação do Mundo e da Vida de Adão e Eva no Paraíso, em versos de sabor popular, ao pé da Verdadeira História da Vida de João Soldado que Meteu o Diabo no Bornal.”

Façam favor de escutar o que apresentamos nós uma morte há pouco tempo pois foi na estação de Urrós. Mataram António Joaquim Seco era uma bela pessoa

casou no povo de Urrós natural de Foz Côa. O Alberto Pires Rodrigues o tabaco ia comprar mas sempre com uma ideia para a mulher provocar. A mulher disse ao marido para a sua honra defender olha que o senhor Alberto anda-me sempre a prometer. O marido indignado

muita razão tinha ele sai de casa preparado e vai ter a casa dele. Quando chega a casa dele a dona Maria Isabel encontrou O seu marido esta aí?

Ou hoje eu mato a ele ou ele a mim.

Sapateiro indignado com o seu génio feroz vai esperar o Adalberto mesmo na estação de Urrós. Quando nisto chega o Adalberto do seu carro se desceu

o Sapateiro estava à espera quatro mocadas lhe deu. O Manuel Pinto que é chofer o foi desapartar

o Adalberto rapidamente a pistola ao carro foi buscar. Vai com a pistola em punho mas já ferido cavalheiro dispara quatro tiros mata o pobre sapateiro. Para o hospital de Mogadouro vai Adalberto internar

o sapateiro para o cemitério deixa três filhos a criar.

Salustiano Augusto Ovelheiro legou-nos o casco de Urrós, o seu Auto da Criação do Mundo ou Princípio do Mundo, documento que apresenta danos físicos provocados pela sua antiguidade, e também por possível mau manuseamento, o que dificulta a sua transcrição.

Trata-se de um caderno, com 32,5 cm por 22,5 cm, contendo 35 folhas pautadas, em que se inscreve o texto do Auto, a duas colunas. As folhas encontram-se cosidas com cordel, em ziguezague, na lombada esquerda e protegidas por capa e contracapa de papelão grosso castanho, de igual dimensão. No interior da capa, encontra-se inscrita a lápis a assinatura de Salustiano Augusto Ovelheiro, assim

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como duas datas – 1948 e 1949 (39). Referem-se possivelmente a datas de representações, tal como os

anos de 1924 e 1935,( 40 ) inscritos no interior da contracapa.

No topo da primeira folha do manuscrito, em caligrafia desenhada, surge o título da obra, sob o qual se inicia o texto do Auto pela fala do Anjo:

A santíssima trindade Ab eterno incriada Determinou criar tudo

E tudo formar do nada (vv. 01-04).

Na folha 18a, encontra-se uma distribuição de personagens e intérpretes, por ocasião da representação ocorrida em 1924, informação que se repete e se acrescenta mais adiante (folhas 69b, 70a e 70b). Ganha ainda particular relevo o facto de Salustiano Augusto Ovelheiro, “regrante” da comédia, relatar um episódio ocorrido durante a representação do Auto nesse ano:

Deu-se um grande barulho causado pelos de Brunhosinho ao meio da comédia. A Guarda Nacional Republicana de Cavalaria de Miranda do Douro e a de Infantaria de Bemposta acabaram com o barulho de imediato. Depois, no fim, quando os ocupados estavam a jantar os ditos acima com desafios de barra com o Jorge de Vila Chã pegaram-lhe à pancada, estando a Guarda também a jantar. Chegaram quatro ou cinco de Urrós e resistiram com os de Brunhosinho e quando a guarda veio já um dos de Brunhosinho tinha sete buracos na cabeça, sendo necessário a vinda do médico de Miranda (folha 70b).