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3 O masoquismo pautado na história individual

As marcas deixadas, sejam por amor, corte ou tatuagem, ficam para sempre. São bem mais que verdades. Fazem parte da alma da gente assim como os olhos enfeitam o rosto. Assim como a história ou como a chuva. As marcas que ficam na gente são aquilo que esquecemos e aquilo que somos para sempre.

(Gabriel Moojen)

O desejo de desvendar o enigma do masoquismo fez com que Freud avançasse no esclarecimento de outros enigmas relativos a sua clínica e a sua teoria, sobretudo, no que dizia respeito às neuroses traumáticas, aos sonhos de angústia e à compulsão à repetição. Ao mesmo tempo, tais fenômenos — presentes nos movimentos transferênciais de sua clínica — colocavam questões e apresentavam evidências, que fomentavam suas elaborações a respeito do masoquismo. Desse modo, tais problemáticas foram preparando o solo para que Freud pudesse colocar em questão os fundamentos de sua metapsicologia: o questionamento do princípio do prazer, como único princípio do funcionamento psíquico — conforme vimos no capítulo anterior.

O fato de haver tantas evidências de que, muitas vezes, o desprazer é o fim último do funcionamento psíquico — e, tragicamente, da vida — era considerado enigmático pelo autor. Imbuído desse enigma, Freud propôs um segundo dualismo pulsional, lançando a hipótese (especulativa e mitológica) acerca da existência da pulsão de morte, as quais impulsionariam os organismos para o esvaziamento da vida. Contudo, explicações sobre as origens da pulsão de morte, o modo como ela circulava pelas instâncias psíquicas e os detalhes de seu funcionamento não haviam sido suficientemente elaboradas em Além do princípio do prazer (1920[1919]).

Curiosamente, nessa mesma época, Freud estava às voltas com um estudo sobre fantasias e, mais especificamente, sobre as fantasias de espancamento. Essas fantasias, assim como os fenômenos citados anteriormente, revelavam uma compulsão a repetir situações desprazerosas, envolvendo agressividade e dor. Na fantasia de espancamento, especificamente, uma cena era imaginada: batia-se em uma criança. O relato dessa cena colocava algumas questões para a clínica e a teoria de Freud, dentre elas, as seguintes: por que os pacientes imaginam, repetitivamente, uma situação desprazerosa como essa? O que eles têm a ver com essa cena? Quem é a criança na qual se bate? Que forças estariam por trás dessas fantasias? Essas foram questões que Freud teve de enfrentar ao

escrever o artigo “Uma criança é espancada”, texto para o qual nos voltaremos na primeira parte deste capítulo. Como poderemos ver, Freud foi se dando conta de que as respostas para essas questões deveriam ser buscadas não apenas na biologia, uma vez que os sintomas dos pacientes pareciam estar ligados às suas histórias de vida e, de modo especial, à vivência do drama edípico.

Conforme Freud observou, as fantasias masoquistas de espancamento envolvem um movimento dialético, que permite conceber: por um lado, o desejo de ocupar a posição passiva e, por outro, uma defesa contra tal desejo. As conclusões às quais chegou a respeito dessas fantasias — somadas às hipóteses apresentadas em Além do

princípio do prazer — levaram-no a publicar, em 1923, O Ego e o Id, obra na qual

introduziu sua segunda tópica, sugerindo que o inconsciente estaria também presente no Ego. Enquanto a segunda teoria pulsional havia dado um lugar privilegiado, no psiquismo, ao masoquismo; a segunda tópica permitiria pensar não apenas no masoquismo, mas na passividade, como fundamental na estruturação psíquica.

Assim, a nova concepção de estruturação psíquica vem abrir espaço para uma passividade que, cada vez mais, mostrava-se presente na clínica de Freud. A segunda tópica freudiana e sua relação com o masoquismo — com ênfase na ação do Superego — será o tema do segundo tópico deste capítulo. Mostraremos como, para Freud, a passividade vai se tornando estrutural no funcionamento psíquico e como o Superego assume a função de fonte psíquica da pulsão de morte, fazendo ecoar a voz das figuras parentais e enlaçando o amor à punição. Finalmente, mostraremos como a passagem pelo Édipo e a instauração da lei, através da formação superegóica, resultam na elaboração de fantasias de castração que, de algum modo, fazem-se presentes no masoquismo.

Interessa-nos destacar que, através dos estudos sobre o masoquismo, passividade e femininilidade saem da condição de temáticas secundárias na teoria freudiana e passam a figurar como psiquicamente estruturais, tanto no caso de homens quanto de mulheres. No final das contas, veremos que Freud assimilou, em sua metapsicologia, a ideia de que o Ego, como um todo, comporta-se, ao longo da vida do ser humano, de forma essencialmente passiva e que “nós somos vividos por forças desconhecidas e incontroláveis”.53

Os temas abordados neste capítulo misturam-se e se entrelaçam, podendo gerar no leitor uma sensação de idas e vindas, o que é ocasionado pela própria estrutura da obra freudiana e pela natureza do objeto de estudo da psicanálise, a saber, o psiquismo humano — que não é linear, nem cronológico. De todo modo, pedimos ao leitor que deixe as ideias circularem, em voo livre, para que, ao longo das próximas páginas, elas possam, aos poucos, encadear e revelar algo além a respeito do masoquismo.

3.1 - A punição se enlaça ao amor

Ein Kind wird geschlagen: “Uma criança é espancada”.54 Este é o título de um artigo freudiano, que representou uma contribuição ímpar para os estudos sobre o masoquismo em psicanálise.55 Trata-se de uma publicação de 1919, na qualFreud volta- se para a análise de algumas questões que não haviam sido suficientemente discutidas em Além do princípio do prazer, especialmente as fantasias masoquistas e a influência da culpa sobre a transformação do sadismo em masoquismo.

Em uma carta de 24 de janeiro daquele ano, Freud antecipou a Sandor Ferenczi que esse artigo teria como tema central o masoquismo.56 Ao abordar esse tema, Freud fez, ent ão, uma análise das fantasias de espancamento, às quais muitos de seus pacientes confessavam haver-se abandonado.57 Tal fantasia era relatada por eles, e, no que diziam, constava a seguinte frase: uma criança é espancada.

54

Título também traduzido para o português por “Bate-se em uma criança”. Escolhemos a outra tradução pela maior proximidade com o título original em alemão. Além disso, ressaltamos a força do termo “espancada”, presente na tradução escolhida, a qual, a nosso ver, não apenas revela o conteúdo da fantasia à qual se refere, mas também ressalta a força pulsional envolvida na fantasia (o adjetivo “espancada” [referente a uma criança] nos parece mais enfático do que o verbo bater [cujo sujeito Freud localizará no pai da criança]).

55 Este artigo traz também importantes apontamentos a respeito da questão do feminino.

56 Uma vez que o tema central do texto “Uma criança é espancada” é o masoquismo, consideramos

importante nos perguntar quem são os masoquistas, a essas alturas, para Freud. A resposta para essa pergunta encontra-se no próprio texto. Haveria, por um lado, os “autênticos” masoquistas, pervertidos sexuais, e, por outro, pessoas que obtêm satisfação sexual, exclusivamente, pela masturbação acompanhada de fantasias masoquistas e que conseguem, muitas vezes, combinar tal atividade masturbatória com a atividade genital, de tal modo que, paralelamente às experiências masoquistas e sob condições semelhantes, conseguem chegar à ereção e ejaculação, podendo levar a cabo uma “relação sexual normal” (Freud, 1919a/1969, p. 245). Além desses, haveria o caso mais raro em que um masoquista é perturbado nas suas atividades pervertidas pelo aparecimento de idéias obsessivas de intensidade insuportável, variações da fantasia masoquista de espancamento.

57

Essa expressão é empregada por Freud e nos parece curiosa na medida em que revela a passividade do sujeito em relação a sua própria produção fantasmática. O sujeito se encontra apassivado, abandonado em relação à fantasia.

Em função da frequência do aparecimento de tal fantasia na clínica e da relevância das questões que a mesma suscitava, Freud passa a considerá-la o fantasma

paradigmático que estaria na base da perversão e, elege, pela primeira vez, a produção

fantasmática do paciente como operador da investigação sobre o masoquismo. A tentativa de reconstrução do desenvolvimento dessa fantasmagoria na vida de cada paciente — articulada ao desenvolvimento libidinal do sujeito — amplia os horizontes da pesquisa freudiana sobre o masoquismo, para além da biologia, em direção à história individual.

Freud constatou, através de sua prática clínica, que a fantasia de espancamento poderia ser construída com base em uma vivência traumática real ou com base em uma cena imaginada. As situações traumáticas reais testemunhadas pela criança poderiam envolver punições sofridas pelos pacientes na infância, bem como cenas de espancamento ou punição de modo geral — especialmente, aquelas em que outras

crianças eram castigadas e/ou humilhadas. Mas Freud nota que muitos de seus

pacientes que relatavam, em análise, tais fantasias, jamais haviam apanhado em suas vidas. As fantasias não correspondiam à realidade factual, apresentando-se, em um primeiro momento, como manifestações voluntárias do desejo das crianças de imaginar cenas de punição; assumindo, mais tarde, o caráter de pensamentos involuntários, impostos, aos moldes de uma obsessão.

As fantasias de espancamento revelavam uma riqueza de situações, nas quais as crianças eram castigadas e punidas por se comportarem mal. Segundo as observações de Freud, ao contrário do que se poderia esperar, imaginar tais cenas era um “ato de agradável satisfação auto-erótica” (Freud, 1919a/1969, p. 226). Isso revelava o caráter erótico da fantasia de espancamento, que permitiria explicar a repetição desse fantasiar, que assume, em alguns casos, o caráter de uma obsessão. Como aponta Freud:

a fantasia tem sentimentos de prazer relacionados com ela e, por causa deles, o paciente reproduziu-a em inúmeras ocasiões no passado, ou pode até mesmo ainda continuar a fazê-lo. No clímax da situação imaginária, há quase invariavelmente uma satisfação masturbatória — realizada, em outras palavras, nos órgãos genitais. (1919a/1969, p. 225)

Tal satisfação erótica poderia ser obtida não apenas através da imaginação de cenas de espancamento, mas também por meio do testemunho de situações reais em que outras crianças são espancadas.

Parecia fundamental a Freud descobrir quem era(m) a(s) criança(s) espancada(s) e quem era(m) o(s) agressor(es), uma vez que na frase “uma criança é espancada”, sujeito e objeto encontram-se indefinidos, camuflados pela voz passiva. Aliás, o uso da voz passiva na construção verbal confere ao sujeito um lugar passivo e, ao agente indefinido, um lugar ativo. A partir do enunciado, afirma-se que há uma cena, na qual uma criança ocupa o lugar passivo e sofre agressões. Mas quem é essa criança? Seria ela o enunciador da fantasia? Se assim for, por que ela não diz explicitamente: “eu sou espancado(a)”? E quem seria o agente desse enunciado? Por que esse agente da agressão permanece indeterminado? E por que, quando questionados, os pacientes de Freud afirmam nada saber sobre isso?

De acordo com Freud, as respostas para essas questões, caso existissem, poderiam esclarecer se se tratava, de fato, de uma fantasia de conteúdo masoquista ou se, ao contrário, o conteúdo da mesma seria sádico (nesse caso, gozar vendo outra criança ser espancada). Em busca de esclarecimento, Freud perguntava a seus pacientes: quem é a criança que está sendo espancada? É a criança que fantasia ou uma outra? É sempre a mesma criança que é espancada? Mas seus pacientes nada esclareciam, dizendo, apenas: “nada mais sei sobre isto: estão espancando uma criança” (Freud, 1919a/1969, p. 227). O máximo de detalhes a que um paciente de Freud chegou foi afirmar: “uma criança está sendo espancada, estão-lhe batendo no traseiro nu” (idem,

ibidem).

Desprovido de dados clínicos, que permitissem entender se a fantasia de espancamento era masoquista ou sádica, Freud irá buscar uma luz em sua teoria para, assim, poder apresentar explicações (hipotéticas) para as questões colocadas. As principais referências teóricas de Freud, nesse momento, serão a teoria do complexo de Édipo, a história do romance familiar e a noção de Ideal-do-Ego (sinônimo de Superego, à época). Pela primeira vez, a história individual ganhará o primeiro plano nas investigações de Freud acerca do masoquismo.

Assim, Freud remonta aos tempos em que a criança vivencia o Édipo, por considerar que desse processo poderia resultar a cicatriz, o traço primário de perversão, a marca, a tatuagem psíquica, que acompanhará o sujeito ao longo da vida, fazendo-o fantasiar, insistentemente, que uma criança é espancada — ideia que pode chegar a ocupar a totalidade da vida sexual do indivíduo na vida adulta. Mas de que forma o complexo de Édipo estaria relacionado às fantasias de espancamento?

Somando os dados clínicos de que dispunha58 e sua grande habilidade de criar hipóteses explicativas, que articulam a clínica à teoria, Freud volta-se para a história individual, elaborando uma história da fantasia de espancamento. Trata-se de uma história em três tempos, que tem como personagens principais a tríade do Édipo e cujas cores são dadas pelos afetos próprios da fase de atravessamento do drama edípico.

Freud considera que há diferentes versões da história para meninos e meninas, ou seja, a diferença dos sexos implicaria em uma divisão de roteiros. Freud se esquiva de contar as duas versões, pautando, inicialmente, sua análise na amostra constituída pelas pacientes mulheres, que inspiraram o artigo, por considerar que as fantasias de espancamento estariam ligadas, no caso dos homens, a outra questão.59

A breve história da fantasia de espancamento é uma história em três tempos, ou três fases, como explica Freud. No caso das meninas, na primeira dessas três fases, a fantasia seria representada pelo enunciado “o meu pai está batendo na criança” ou, mais especificamente, “o meu pai está batendo na criança que eu odeio”. Se estamos falando do tempo do Édipo, a criança mais odiada por outra criança é seu maior rival: o irmãozinho ou a irmãzinha (quando existente), contra quem é dirigida uma enorme quota de ciúmes. Talvez em função desse ciúme, do desejo de eliminar essa outra criança e para poder ocupar seu lugar, na segunda fase da fantasia, a menina aparecerá no lugar da criança espancada.

A passagem da primeira para a segunda fase da fantasia é dada pela mudança da voz ativa (sadismo), para a voz passiva (masoquismo): agora, eu sou espancada (pelo meu pai). Afinal, se a outra criança merece o castigo, por que eu não hei de merecê-lo? Revela-se, nessa passagem, o conteúdo masoquista da fantasia. Para Freud, a segunda fase é a mais importante e a análise da mesma leva-o, então, a chamar a fantasia de espancamento de fantasia masoquista de espancamento. Nessa segunda fase, a fantasia passaria a proporcionar à criança um grau ainda mais elevado de prazer, sendo independente da memória do que, de fato, ocorreu: podendo-se dizer “que jamais teve existência real. Nunca é lembrada, jamais conseguiu tornar-se consciente. É uma

58 O artigo “Uma criança é espancada” baseia-se no estudo de 6 casos clínicos (4 femininos e 2

masculinos).

59 A outra questão diz respeito ao caráter feminino das fantasias de espancamento, presente também no

caso dos homens, fato que Freud relutava em admitir. No caso dos homens, assim como no caso das mulheres, o sujeito da fantasia se colocava no lugar de uma mulher e desejava ocupar uma posição passiva em relação ao pai.

construção da análise, mas nem por isso é menos uma necessidade” (Freud, 1919a/1969, p. 232).60

A terceira e última fase da fantasia assemelha-se à primeira. Ela é enunciada nas seguintes palavras: “uma criança é espancada”. De acordo com os pacientes de Freud, a pessoa que batia nunca era o pai, podendo ser um substituto dele, por exemplo, um professor. Nunca o pai. Nunca. “O pai não está ali”, diziam os pacientes. E a criança nunca está só: está sendo espancada junto a outras crianças. Esta criança nunca é o enunciador, o qual se limita a dizer que, provavelmente, está olhando a cena. Nessa série de negações, a fantasia revela um elemento de voyeurismo e ganha um componente sádico. O sujeito goza ao ver crianças sendo espancadas. Esse espancamento pode ser substituído, na fantasia, por outras situações de humilhação e maus tratos. A indefinição dos personagens e a negação seriam, de acordo com Freud, decorrentes de um processo de repressão,61 realizado pela instância censora, o Superego, herdeiro do complexo de Édipo.

A censura, que se faz presente na negação e na substituição de representações, seria necessária em função do conteúdo erótico e incestuoso revelado na segunda fase da fantasia. Ser espancado equivaleria a ser amado. Ou seja, ser espancado pelo pai seria uma forma de estabelecer uma relação erótica com ele. O espancamento seria, assim, um substituto da relação incestuosa — a interdição maior da cultura. Podemos, então, entender por que a fantasia estaria ligada a uma forte excitação sexual, proporcionando um meio para a satisfação masturbatória. O rosto da criança que fora espancada na segunda fase — isto é, o rosto do sujeito que fala em análise — não está claramente presente e tampouco o do pai. De fato, estes rostos são desenhados nas elaborações teóricas de Freud, nunca tendo sido rememorados por seus pacientes.

60 Aliás, segundo Freud, se o espancamento e a punição da criança foram muito severos, ultrapassando

certos limites e provocando uma excitação excessiva para o psiquismo, o destino dessa punição não seria, provavelmente, a neurose — como no caso dos pacientes que servem de referência a Freud para a escrita do texto em questão —, mas, provavelmente, a perversão ou, pelo menos, a inscrição de um forte traço perverso no psiquismo do sujeito.

61 Em “Uma criança é espancada”, Freud atribui uma importância notável, na gênese da fantasia

masoquista de espancamento, à repressão. Não aprofundaremos a discussão sobre a repressão nesta ocasião, mas, levando em conta a importância desse conceito para a teoria psicanalítica, para a prática clínica com base no método analítico e, especificamente, para os estudos sobre o masoquismo, remetemos o leitor a alguns textos freudianos nos quais o mecanismo de repressão é discutido detalhadamente: “Repressão” (1915a) e na sessão IV de “O inconsciente” (1915b). A questão dos motivos da repressão é também tema de discussão em “O homem dos lobos”, mais conhecido como “História de uma neurose infantil” (1918[1914], p. 137 e seguintes). Finalmente, em “Análise terminável e interminável” (1937), Freud aborda, pela última vez, o tema da repressão.

Consideramos que o masoquismo se apresentaria, nesse caso, como uma forma de perversão da pulsão, em sua busca por transgredir a proibição do incesto, constituindo-se, assim, em uma recusa da castração e dos limites da cultura representados, psiquicamente, pelo Superego. O masoquismo pode ser entendido, com base nesta análise freudiana, como uma forma de recusa ao interdito do incesto e como

a expressão do desejo de ocupar uma posição passiva frente aos primeiros objetos sexuais.

Em “Uma criança é espancada”, diferentemente do que se passa em outros momentos da obra freudiana, o masoquismo não é analisado como pura expressão da pulsão de morte, força biológica inata, expressão de forças demoníacas da natureza. Dessa vez, o masoquismo se apresenta como um efeito da cultura sobre o desenvolvimento libidinal do indivíduo. Há um impedimento fundamental imposto pela cultura: os filhos não podem copular com os pais. A menina não poderá ser a mulher do pai. Por não poder ser apassivada e amada pelo pai — como anseia há muito (e para sempre) — ela encontrará fantasias substitutivas, que remetam a essa representação psíquica (relativa ao incesto). Se o sujeito encontra um meio para se satisfazer dentro dos limites da fantasia de espancamento, estamos no campo da neurose. Se o sujeito busca substituir o ato incestuoso por outro ato transgressivo, aproximamo-nos do campo da perversão.

Jacques Lacan, ao se perguntar sobre o significado dessa fantasia, enunciada na sua formulação típica — bate-se numa criança —, propõe: “o progresso da análise mostra, segundo Freud, que essa fantasia viria substituir, por uma série de transformações, outras fantasias, que tiveram um papel perfeitamente compreensível num momento da evolução do sujeito” (Lacan, 1995, p. 116). O autor ressalta, ainda, que a fantasia é fruto de um processo; ela seria um enunciado do desejo do sujeito,