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2.2. Da memória ao memorial de anámnesis

2.2.3. O memorial de anámnesis

O substantivo feminino avna,mnhsij é bastante raro na Sagrada Escritura, com apenas nove ocorrências, das quais quatro pertencem ao NT, o que corresponde, respectivamente, a cerca de 0,001% e 0,003% de todas as palavras de um e de outro. Todavia, e talvez por isso mesmo, é a palavra mais adequada para expressar as realidades singularíssimas e fundamentais da tradição cultual judaico-cristã; como o diamante de elevada qualidade, que é tanto mais valioso quanto mais raro é.

No grego clássico, a avna,mnhsij, «recordação ou reminiscência»143, está ligada à memória (mnh,mh), mas distingue-se dela. A memória pode definir-se como sendo a «preservação da consciência»144, ou seja, é a faculdade humana que possibilita a retenção do conhecimento adquirido. Neste contexto, a avna,mnhsij significa a reapreensão do conhecimento por alguém que ficou temporariamente privado dele145. Esta definição parece ser completamente dissonante daquela que os textos bíblicos nos fazem perceber. Mas talvez esta dissonância não nos pareça assim tão grande, se tivermos em conta a forma como Aristóteles descreve o processo de tal reapreensão: «é por isso que seguimos a série em ordem, começando no pensamento a partir do presente ou de outro ponto no tempo, e a partir de algo semelhante ou

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MICHEL, O. – Mimnh,skomai, col. 308.

141 O substantivo mnei,a, em todo o NT, ocorre apenas no Corpus Paulino. 142

Cf. Rm 1,9; Fl 1,3; 1 Ts 1,2; 2 Tm 1,3; Flm 1,4.

143 B

EHM, J. – Avna,mnhsij. In GLNT, 1965, Vol. I, col. 939.

144 P

LATÃO – Philebo. In ELWANY, Mohamed, comp. – The complete works of Plato.

http://www.4shared.com/office/ UrLT1tz/3763952-Plato-Complete-Works.html. 14-09-2012 14:30, p. 259.

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algo contrário, ou intimamente relacionado ao que procuramos. É assim que acontece a recordação (dia. tou/to gi,netai h`` avna,mnhsij)»146. Este significado parece estar de acordo com o modo de funcionamento de um acto litúrgico, se o acto for considerado como parte da série que leva à recordação. Então, a expressão «eivj avvna,mnhsin» pode significar «para recordação», mas também, «como lembrança»147. Um e outro sentido são adequados ao contexto bíblico em que ocorre esta palavra grega. Todavia, a perspectiva bíblica da avvna,mnhsij extravasa largamente a mera recordação subjectiva, vai muito para além da simples recaptura daquilo que temporariamente desapareceu da memória; trata-se, antes, de uma rememoração dinâmica e operativa, objectivada em palavras e actos, numa acção que torna presente, actualiza, o passado rememorado.

O contexto característico da avvna,mnhsij veterotestamentária é o memorial cultual, como vimos no capítulo anterior. A única ocorrência em que tal não se verifica pertence ao Livro da Sabedoria, escrito originariamente em grego. Diz o texto: «Para sua correcção, foram atribulados por pouco tempo, mas tinham um sinal (su,mbolon) de salvação para lhes recordar (evij avna,mnhsin) os mandamentos da tua Lei» (Sb 16,16). Neste caso, o sentido da expressão evij avna,mnhsin parece ser de memorial para o Homem, uma rememoração subjectiva, fora do âmbito cultual, onde se evidencia mais a significação de memorial para Deus.

Neste âmbito do memorial cultual, quando a expressão evij avna,mnhsin (e a sua equivalente evij mnhmo,sunon) significa «para que Deus se recorde», não se pretende apenas despertar a recordação de Deus, mas sim tornar presente, representar algo diante dele. Esta representação tem sempre em vista a actuação de Deus148, pois a recordação de Deus é sempre «um acontecimento efectivo e operante»149, tem sempre consequências.

Uma das quatro ocorrências de avvna,mnhsij que encontramos no NT pertence à Carta aos Hebreus. Diz o autor: «Pelo contrário, com esses sacrifícios, recordam-se (avna,mnhsij) anualmente os pecados» (Heb 10,3). Retomando uma ideia que já encontramos nos profetas (cf. Is 1,11-13; Jr 6,20; 7,22; entre outros), o autor de Hebreus afirma a ineficácia dos antigos sacrifícios de animais, que, por isso mesmo, deviam ser repetidos ano após anos. Estes sacrifícios, sombra do que havia de vir por Cristo, não eram capazes de apagar o pecado. Esta incapacidade é evidenciada pela necessidade de serem reiterados, pois «Não se teria porventura deixado de os oferecer, se os que prestam culto, purificados de uma vez por todas,

146

ARISTÓTELES – De memoria et reminiscentia, 451b,20. In BLOCH, David, trad. - Aristotle, on memory and

recollection. Leiden: Koninklijke Brill NV, 2007, p. 39.

147 Cf. C

HENDERLIN, Fritz - "Do this as my memorial", p. 159.

148 Cf. J

EREMIAS,Joachim– La Ultima Cena, p. 273-274.

149 M

já não tivessem consciência de algum pecado? Pelo contrário, com esses sacrifícios, recordam-se (avna,mnhsij) anualmente os pecados» (Heb 10,2-3). O sacrifício de expiação (cf. Lv 16, 1ss), aqui evocado, «é uma espécie de confissão solene a Deus e diante do povo»150, um memorial para Deus e para o Homem, que se destina a lembrar ao Homem o seu pecado para o arrependimento, e a lembrá-lo a Deus para o perdão. Todavia, em vez do perdão esperado, agora a recordação de Deus apenas atrai a condenação, porque aquele só se alcança verdadeiramente pelo sacrifício de Cristo. Por isso, a eficácia dos antigos sacrifícios não é maior que a do sacrifício que o marido oferece quando fica com ciúme da sua mulher. Nesta situação, o marido ciumento leva a sua mulher ao sacerdote e apresenta por ela «uma oblação de ciúme, uma oblação memorial (qusi,a mnhmosu,nou) a recordar uma iniquidade» (Nm 5,15). O objectivo da recordação aqui é apenas atrair a atenção de Deus sobre o pecado. Na economia da antiga Aliança, estes dois tipos de sacrifícios, o da expiação e o da oblação de ciúme, são ambos um memorial. No entanto, diferem completamente, quer em relação à atitude de Deus, quer em relação à confissão dos pecados. Assim, no primeiro, a rememoração de Deus resulta em perdão, porque o pecado, ainda que presente, é confessado; no segundo, resulta em castigo, se há pecado, e o pecado não é confessado. No primeiro, Deus recorda o pecado para o perdoar, no segundo, para o castigar. Esta comparação com o memorial da oblação de ciúme não resulta da utilização que os textos veterotestamentários fazem do substantivo avna,mnhsij, pois em nenhum dos casos se recorda a Deus o pecado da forma que se faz neste contexto. O autor de Hebreus apenas o faz paradoxalmente, no sentido de que os sacrifícios de expiação não alcançam os efeitos que tradicionalmente lhes eram atribuídos, o perdão dos pecados, só o sacrifício de Cristo o alcança151, o que constitui uma veemente crítica ao valor do culto sacrificial de Israel. De facto, os sacrifícios antigos, nomeadamente aqueles a que se refere o texto, eram uma prefiguração do sacrifício único e perfeito de Cristo. Chegada a realidade para que apontam, tornam-se caducos, completamente inúteis. Aqueles só recordam o pecado diante de Deus, mas, pelo sacrifício de Cristo, sacrifício inaugural da nova Aliança, Deus só já se recorda da sua misericórdia152: «pois perdoarei as suas iniquidades e não mais me lembrarei (mh. mnhsqw/ e;ti) dos seus pecados» (Heb 8,12). Assim se cumprem as promessas feitas outrora, para os dias da nova Aliança, cuja Lei é gravada não em pedra, mas no coração, para o transformar radicalmente e o abrir à relação de comunhão com Deus.

150 T

HURIAN, Max – La Eucaristía, p. 154.

151 Cf. C

HENDERLIN, Fritz - "Do this as my memorial", p. 117.122; THURIAN, Max – La Eucaristía, p. 154.

152

A interpretação que aqui encontramos para a avna,mnhsij é a de um memorial para Deus, como temos vindo a afirmar. Tal como acontece em quase todos os textos do AT onde ocorre, é interpretada como um memorial para Deus, para despertar a sua recordação, o mesmo significado que encontramos no NT para o seu sinónimo, mnhmo,sunon, como vimos anteriormente. No entanto, a recordação neste caso é para o castigo, à semelhança do que acontece com a grande Babilónia, que Deus recorda para fazer recair sobre ela o castigo (cf. Ap 16,9).