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CAPÍTULO V. O MITO DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E A

1. O mito da constituição dirigente e os direitos sociais

Nos países da Europa continental, especialmente na França e nos ordenamentos por ela influenciados, como decorrência do ideal revolucionário de 1789, se firmou a supremacia do parlamento e não, da constituição. “É o que STÉPHANE RIALS designa, de forma sugestiva, por dois séculos de ‘légicentrisme’ (:sacralização da lei), e BERTRAND DE JOUVENEL por uma ‘soberania indefinidamente legislativa’” (QUEIROZ, 2000, p. 10).

Superando a concepção ‘legicentrista”, a constituição passa a ser o limite supremo entre o lícito e o ilícito, sobrepairando a todo o direito infraconstitucional. Passa a ser, então, parâmetro de legitimidade de todo o ordenamento jurídico. Como registra o professor SABATER (2010, p. 39), a constituição, no sentido de um conjunto de normas jurídicas, torna-se um instrumento supremo que regula todo o ordenamento jurídico de um Estado, bem como dirige o funcionamento de suas instituições.

No entanto, a vontade do Poder Constituinte não fundamenta a força normativa, a vigência real da constituição (HESSE, 2009, p. 96). A força normativa decorre muito mais da “possibilidade de realização dos conteúdos da constituição”, que está atrelada à adequação da constituição ao “estágio de desenvolvimento espiritual, social, político ou econômico do seu tempo”.

Assim, a “força vital e operativa” da constituição está fortemente relacionada à sua “capacidade para conectar-se com as forças espontâneas e às tendências vivas da época” (HESSE, 2009, p. 97). Além disso, a força normativa da constituição é uma decorrência da “vontade constante, dos implicados no processo constitucional, de realizar os conteúdos da constituição” (HESSE, 2009, p. 97).

Como foi exposto nos capítulos anteriores, são requisitos para a efetivação dos direitos sociais a sua previsão constitucional, bem como uma interpretação que conduza à sua efetivação.

No entanto, esses elementos não “garantem” uma adequada efetivação dos direitos sociais. Como ensina CANOTILHO (2008, p. 31), uma das crises da constituição dirigente é que pressupõe uma autossuficiência normativa, a insinuar que bastam as disposições constitucionais para que os seus programas adquirissem “força normativa”.

O professor constata que as constituições dirigentes padecem de uma grave inconsistência ao colocar o Estado como um “homem de direção” exclusiva da sociedade, utilizando-se do Direito como seu instrumento. Assim, tenta conformar a realidade político-econômica pelo direito estatal estruturado de forma piramidal, em uma operação que, na prática, revela as suas inconsistências.

Explica que, por essa razão, países que já atingiram o “desenvolvimento” estariam vivenciando uma superação da ideia de constituição dirigente. Mas, diversamente, como aponta CANOTILHO (2008, p. 137), se o estudo é relativo aos Estados que ainda não resolveram os problemas das violências física, política e social, não é possível bem divisar nem “eclipse do Estado de Direito”, nem a dissolução do constitucionalismo dirigente.

Para o autor, nos países de “modernidade tardia”, como é o caso do Brasil, a constituição dirigente guarda papel de grande relevância em relação às “tarefas do estado” (estado social, estado ecológico, estado de saber etc.). Ademais, pretende-se que

a constituição fixe os instrumentos e métodos para que se obtenham as finalidades do Estado.

Sobre esse ponto, é interessante trazer a ponderação de HESSE (2009, p. 12), no sentido de que um dos pressupostos necessários à preservação da força normativa da constituição e à sua efetividade é a sua adequação à realidade. Esse atributo constitucional diz com questões externas, por exemplo, a realidade histórica, bem como o nível de desenvolvimento do meio em que a constituição tem vigência. Assim,

Quanto mais conecte o Direito Constitucional com tais circunstâncias, quanto melhor assuma as forças e tendências de cada época, melhor poderá exibir seus efeitos. Quando tenta apegar-se a formas historicamente superadas ou quando, pelo contrário, se proponha a uma utopia, fracassará inevitavelmente ante a realidade.

Muito mais importante, então, do que a vontade do legislador, para a adequada efetividade do texto constitucional, é a disponibilidade da sociedade (governantes e governados) para aceitar como imperativa a Ordem Constitucional (HESSE, 2009, p. 12). Esse consenso fundamental, para que a constituição seja efetiva, deve sobrepairar aos momentâneos antagonismos e conflitos no seio da sociedade.

Assim, a força normativa e a eficácia constitucionais não podem ser analisadas sem tomar em consideração os seus pressupostos sociais, econômicos e culturais, com a complexa realidade de indivíduos e grupos que não se adequam espontaneamente a um esquema jurídico-constitucional.

Não se pode desconsiderar, quanto ao tema, que a efetividade da constituição é vista na América Latina diferentemente de nos Estados Unidos e na Europa. Essa distinção residiria no fato de que nos países latino-americanos há uma verdadeira obsessão constitucionalista, ou seja, há uma crença de que a constituição magicamente possa mudar a realidade dos fatos e da política (WALDMANN, 2006, p. 77).

Assim, as constituições, nesses países, formam parte de sua “mitologia política”, sem qualquer vínculo com a realidade. Na verdade, existe um conflito tácito ou mesmo

aberto entre a prática quotidiana e o direito sancionado pelo Estado. Dessa forma, melhor seria fazer menos reformas e, em seu lugar, tentar praticar os mandamentos constitucionais.

Conforme expõe HESSE (2009, pp. 130/2),

(...) somente a Constituição que se vincula a uma situação histórica concreta e suas condicionantes, dotada de uma ordenação jurídica orientada pelos parâmetros da razão, pode, efetivamente, desenvolver-se. (...) (A Constituição) não logra produzir nada que já não esteja assente na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). (...). A norma constitucional somente logra atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente.

Apesar dessas considerações, HESSE (2009, p. 132) deixa claro que a força da constituição não decorre apenas da sua adequação à realidade, mas também da imposição de tarefas, as quais, no entanto, devem assentar na “natureza singular do presente”.

HESSE aponta (2009, pp 134/5) como fundamental para o desenvolvimento da força normativa da Constituição a “vontade de constituição” (Wille zur Verfassung), ou seja, o sentimento dos partícipes da vida constitucional de que a constituição resguarda valores importantes e que deve ser cumprida, mesmo quando o cumprimento se revelar incômodo. Dessa forma, é necessário disposição para sacrifícios no sentido de cumprir a constituição, envolvendo inclusive a renúncia por parte dos cidadãos de pleitos justos.