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3.1 Compreendendo o conceito de Vulnerabilidade

O termo vulnerabilidade tem sido bastante empregado nos últimos anos, expressando distintas perspectivas de interpretação. Um dos recursos fundamentais para intervir na saúde pública, como em qualquer área científica, é o instrumental teórico de que dispomos para que se possa fundamentar nossos estudos e pesquisas científicas. Este capítulo propõe revisitar o principal quadro conceitual utilizado para orientação das ações preventivas da saúde pública contemporânea: Quadro da Vulnerabilidade e dos Direitos Humanos (V&DH).

O conceito de vulnerabilidade designa um conjunto de aspectos individuais e coletivos relacionados à maior susceptibilidade de indivíduos e comunidades a um adoecimento ou agravo e, de modo inseparável, menos disponibilidade de recursos para sua proteção (Ayres, Calazans, Salleti Filho &França Jr, 2006). Desta forma, parte-se do pressuposto de que doenças não existem separadamente das práticas que as conceituam, as representam e respondem a elas para preveni-las ou tratá-las (Paiva & Zucchi, 2012).

Na perspectiva da vulnerabilidade, a exposição a agravos de saúde resulta de aspectos individuais e de contextos ou condições coletivas que produzem maior suscetibilidade aos agravos e morte e, simultaneamente, à possibilidade e aos recursos para

o seu enfrentamento. Dessa forma, para a interpretação do processo saúde-doença, considera-se que o risco indica probabilidades e a vulnerabilidade é um indicador da iniquidade e da desigualdade social. A vulnerabilidade antecede ao risco e determina os diferentes riscos de se infectar, adoecer e morrer (Ayres, 1997).

No quadro da vulnerabilidade, como ressaltado por Ayres, Paiva e França Jr. (2012), o individuo é compreendido como intersubjetividade e como ativo construtor, e não apenas resultado (efeito) das relações sociais, que devem ser, então, remodeladas para garantir o “comportamento saudável”. Conforme estes autores afirmam, esta posição é compatível com os conceitos de participação e controle social, uma vez que dependem da ação concreta de pessoas que se reconheçam e sejam reconhecidos como cidadãs plenas, como sujeito de direitos. Na perspectiva da vulnerabilidade, as dimensões individuais, sociais e programáticas (políticas, serviços e ações de saúde) de qualquer processo saúde- doença-cuidado serão identificadas e inter-relacionadas. Neste sentido, melhor do que abordar os traços gerais da desigualdade será compreender a concretude das relações (de gênero, raciais, de classe, de geração, dentre outras) no cotidiano e de que forma estão sendo abordadas pelas instituições competentes.

No entanto, o conceito de vulnerabilidade alinha-se em diversos aspectos com a Nova Promoção de Saúde (NPS), na medida em que ambos buscam compreender e transformar desde uma perspectiva sociopolítica os processos e determinantes descritos nos modelos de História Natural da Doença (HND) e Nova Promoção. O enfoque da vulnerabilidade promove também um significativo rearranjo dos momentos analíticos desse modelo.

No quadro da vulnerabilidade, Ayres, Paiva e França Jr., (2012) sinalizam que não existe um agente que seja em si mesmo agressor. Qualquer agente – biológico, físico ou químico – só é percebido como tal frente a especificidades das características físicas,

cognitivas, afetivas e comportamentais de seus hospedeiros, as quais, por sua vez, dependem do ambiente cultural e sociopolítico e do contexto intersubjetivo nos quais as pessoas vivem e interagem.

A HND de uma doença e as formas de intervir sobre ela admitem diferentes leituras, segundo a perspectiva de quem as descreva, de que recursos científicos e tecnológicos se disponha, de que saberes e princípios ético-políticos se lance mão. O que o quadro da vulnerabilidade nos mostra é que não há uma História Natural da Doença, senão uma História Social da Doença, não só porque são sociais e históricos os conteúdos dessa História, mas porque social e histórica é também a forma de “contá-la”. A história de uma doença e das intervenções que a acompanham admite diferentes avaliações, dependendo da perspectiva teórica e, também, ético-política de quem a descreve, assim como dos conhecimentos e recursos tecnológicos disponíveis ou que se prioriza tornar acessíveis (Ayres, Paiva & França Jr., 2012).

Contudo, porque o quadro da vulnerabilidade é abordagem baseada em direitos humanos, de acordo com Ayres et al. (2012) ao compreender a história social do sujeito focaliza-se, com ênfase, a responsabilidade e a ação de governos e dos programas públicos de saúde como parte integrante dos determinantes contextuais e sociais no processo saúde e doença. Tal responsabilidade está implicada desde a dimensão individual na medida em que esta é concebida como a da esfera da pessoa que é sujeito de direito – direito à saúde integral, à não discriminação, à consideração de sua condição na promoção da equidade.

Sabe-se que pessoas e grupos que não têm seus direitos respeitados e garantidos, têm piores perfis de saúde, sofrimento, doença e morte (França Jr. & Ayres, 2003). Assim, Ayres, Paiva e França Jr., (2012) verificaram que onde há maior violação ou negligência dos direitos ao trabalho e à moradia decentes, ao acesso a serviços de saúde de qualidade, à

educação, ao lazer, a constituir família e viver a sexualidade como cada pessoa a define, encontra-se maior vulnerabilidade. Tais autores mencionam também que na perspectiva da vulnerabilidade, as dimensões individuais, sociais e programáticas – políticas, serviços, ações de saúde – de qualquer processo saúde-doença-cuidado serão identificadas e inter- relacionadas pelos sujeitos que de alguma forma estão implicados nesse processo e buscam compreender o que ele significa.

Ainda de acordo com Ayres, Paiva e França Jr., (2012) a qualidade do processo é sempre preciosa nas abordagens baseadas nos direitos humanos para a redução da vulnerabilidade. As interações, expressão viva de cada processo, merecem especial atenção nas suas três dimensões (individual, social e programática). Além do interesse nos marcos normativos de um país, da compreensão de seus padrões culturais, das suas instituições e das estruturas, será importante apreender a dinâmica da vida cotidiana e de sua organização social. Melhor que abordar os traços gerais da desigualdade será compreender a concretude das relações de gênero e raciais, de classe e de geração em cada cena da vida cotidiana, com interesse no modo como em cada local (município, comunidade, rede de relações) a desigualdade está sendo experimentada pelos indivíduos.

Para Ayres, Paiva e França Jr., (2012), a unidade analítica está constituída no indivíduo-coletivo. Nessa perspectiva, propõe a sua operacionalização através da Vulnerabilidade Individual, que se refere ao grau e à qualidade da informação que os indivíduos dispõem sobre os problemas de saúde, sua elaboração e aplicação na prática; a Vulnerabilidade Social, que avalia a obtenção das informações, o acesso aos meios de comunicação, a disponibilidade de recursos cognitivos e materiais, o poder de participar de decisões políticas e em instituições; e a Vulnerabilidade Programática, que consiste na avaliação dos programas para responder ao controle de enfermidades, além do grau e

qualidade de compromisso das instituições, dos recursos, da gerência e do monitoramento dos programas nos diferentes níveis de atenção.

O modelo teórico das vulnerabilidades oferece, portanto, um ponto de referência para a análise dos problemas públicos de saúde, porque identifica situações potenciais de vulnerabilidade. Pode-se verificar abaixo, na Tabela 01, as dimensões da análise de vulnerabilidade.

Tabela 01

Quadro da V&DH: dimensões individual, social e programática

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INDIVIDUAL SOCIAL PROGRAMÁTICA (ÊNFASE

NO SETOR SAÚDE) Reconhecimento da pessoa

Como sujeito de direito, dinamicamente em suas cenas Corpo e estado de saúde Trajetória pessoal

Análise das relações sociais, dos marcos da organização e da cidadania e cenário cultural Liberdade

Mobilização e participação Instituições e poderes Relações de gênero Relações raciais e étnicas

Análise de quanto e como governos respeitam, protegem e promovem o direito à saúde Elaboração de políticas específicas Aceitabilidade Sustentabilidade Articulação multissetorial Recursos pessoais Nível de conhecimento Escolaridade Acesso à informação Relações familiares Redes de amizade Relações afetivo-sexuais Relações profissionais Rede de apoio social

Subjetividade Intersubjetiva Valores (em conflito?) Crenças (em conflito?) Desejos (em conflito?) Atitudes em cena Gestos em cena Falas em cena Interesses em cena Momento emocional

Relações entre gerações Processos de estigmatização Proteção ou discriminação Sistemática de direitos Acesso a: Emprego/salário Saúde integral Educação/prevenção Justiça Cultura Lazer/esporte Mídia/internet Governabilidade

Organização do setor de saúde e dos serviços com qualidade Acesso e equidade

Integralidade

Integração entre prevenção, promoção e assistência Equipes

multidisciplinares/enfoques interdisciplinares

Preparo tecnocientífico dos profissionais e equipes Compromisso e responsabilidade dos profissionais

Participação comunitária na gestão dos serviços

Planejamento, supervisão e avaliação dos serviços Responsabilidade social e jurídica dos serviços Nota: Adaptado de Ayres, Paiva e França Jr. (2012).

Percebe-se que com todas as nuanças, imprecisões e ambiguidades ainda presentes, a discussão da vulnerabilidade têm-se expandido para outras áreas da saúde, como saúde da criança, de adolescentes, dos idosos, violência, atenção primária à saúde de modo geral e outros aspectos de implicação psicossocial. No quadro da vulnerabilidade, o indivíduo é compreendido como intersubjetividade e como ativo co-construtor e, não apenas resultado (efeito) das relações sociais, que devem, então, ser remodeladas para garantir o “comportamento saudável” (Paiva, 2012).

Entretanto, verifica-se que o conceito de Vulnerabilidade apresenta características muito diferentes do conceito de risco. Ele procura identificar elementos relacionados ao processo de adoecimento em situações mais concretas e particulares, tendo interesse em compreender as relações e mediações que possibilitam estas situações, num movimento de síntese. A vulnerabilidade tem um caráter não probabilístico. Ela tem o objetivo de expressar o “potencial de adoecimento relacionados a todo e cada indivíduo que vive em um certo conjunto de condições”. Ayres et al. (2003) afirmam que a vulnerabilidade engloba todos os fenômenos que são excluídos das análises de risco por não apresentarem determinadas características exigidas pelos parâmetros epidemiológicos e estatísticos. Assim, fenômenos que apresentam inconstância, múltiplas causas, interferências, não permanência etc. são os objetos de estudo das análises de vulnerabilidade. Portanto, a vulnerabilidade é multidimensional, implica em nuances e mudanças no decorrer do tempo, sendo, portanto, de caráter relacional. As pessoas não são vulneráveis, elas estão vulneráveis com relação à determinada situação. Neste sentido, faz-se necessário destacar o caráter relacional de qualquer situação de vulnerabilidade.

Na investigação que estamos analisando, ou seja, as relações entre vulnerabilidade e TMC é importante atentar para perspectivas que permitam uma aproximação com o

fenômeno do sofrimento mental sem aprisioná-lo em categorias, admitindo maior flexibilidade e diversidade tanto na compreensão quanto nas propostas de intervenção.

Para compreensão da vulnerabilidade faz-se necessário ampliar o olhar, afastando- se do plano individual para o plano das suscetibilidades socialmente configuradas. Dentro desta perspectiva temos, por exemplo, o conceito de clínica ampliada (Campos, 2003; Cunha, 2005) que propõe uma prática clínica mais complexa e longitudinal. Da mesma forma, pensar em termos de vulnerabilidade pressupõe uma abertura para ações intersetoriais e formação de redes de atenção que integrem a área da saúde com outras áreas relacionadas à saúde do indivíduo.

Outro aspecto relevante na presente discussão relaciona-se à interface entre o serviço de saúde e a população/comunidade. Identifica-se uma tendência percebida na relação entre profissionais de saúde e população de imposição de uma racionalidade dita “científica” sem que haja uma reflexão mais profunda a respeito dos fenômenos que estão em questão, das vivências dos homens que passam por sofrimento psíquico, bem como do contexto de vida ao qual estão inseridos.

Onocko Campos et al. (2008), ao analisar a subjetividade contemporânea, sinalizam uma tendência ao empobrecimento simbólico e a necessidade de restabelecimento de um espaço subjetivo que propicie a criação de sentidos integradores no cotidiano.

Para Kaës (2005) a saúde psíquica estaria diretamente relacionada com a capacidade associativa, interpretativa, de elaboração e simbolização do psiquismo. Estaria ligada também à capacidade de fazer laços sociais. Ele mostra que as características da sociedade contemporânea vão exatamente dificultar estas operações, fragilizando o psiquismo do sujeito.

Nesse sentido, Sánchez e Bertolozzi (2007) enfatiza que o modelo teórico da vulnerabilidade propõe construir políticas voltadas às necessidades dos seres humanos, trabalhar com as comunidades e realizar diagnósticos sobre as condições dos grupos sociais, de maneira participativa, assim como a redefinição dos objetos de intervenção e a análise crítica das práticas de saúde para a sua reconstrução orientada às necessidades dos indivíduos e da coletividade.

Entende-se, portanto, a partir do conceito de vulnerabilidade como uma convocação para renovar as práticas de saúde como práticas sociais e históricas, através do trabalho com diferentes setores da sociedade. Permite, assim, o repensar sobre as práticas em saúde, de maneira crítica e dinâmica, para contribuir na busca de mudanças políticas, culturais, cognitivas e tecnológicas, que promovam impacto nos perfis epidemiológicos. Desse modo, a vulnerabilidade não nega o modelo biológico tradicional, muito pelo contrário, o reconhece, mas busca superá-lo. Vale lembrar que o modelo privilegia, como unidade analítica, o plano do coletivo, e que a estrutura é marcada por um referencial ético-filosófico, que busca a interpretação crítica dos dados (Ayres, 2002).

Por tudo isso, no próximo capítulo, tratar-se-á dos estudos empíricos, explicando como ocorre nas vivências masculinas à prevalência e vulnerabilidades aos Transtornos Mentais Comuns, tendo como base o modelo Teórico da Vulnerabilidade.