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1. O mito de Helena: sob o signo da ambiguidade

1.3. Uma feminilidade fatal

1.3.2. O motivo do rapto

A inquestionável beleza da filha de Zeus e o desejo masculino que naturalmente acicatava deram lugar a que, por duas vezes, fosse raptada. A tradição mítica grega diz-nos que tanto Teseu como Páris, em momentos distintos, foram possuídos pelo ardente desejo de se lhe unir, razão pela qual envidaram todos os esforços para o conseguirem. Estes dois raptos, por sua vez, terão estado na origem de duas guerras – uma delas, era Helena ainda criança, entre Esparta nos e Atenienses, na sequência da abdução por Teseu; a outra, já depois de casada, entre Gregos e Troianos, decorrente do rapto de Páris.

Esta forte vinculação de Helena ao confronto bélico, de fatídicas consequências, acentua o poder destrutivo da sua beleza e contribui para o engrandecimento trágico da sua figura. De acordo com Nicole Ferrier-Caverivière, «Les destins extraordinaires, à la dimension généralement tragique (...) conviennent à l’univers mythique: ils ont valeur de modèles que la Providence semble proposer au genre humain»103.

Na realidade, a primeira vez que o poder de sedução de Helena estimulou a atenção e o desejo de um homem encontra-se documentada numa lenda, ignorada por Homero, na qual Helena fora raptada por Teseu, o rei que era alvo de primordial adoração em Atenas, e pelo seu paraninfo Pirítoo104. Teseu era ainda um jovem efebo, mas dotado já de uma impressionante beleza, quando firmou com Pirítoo um juramento mútuo, segundo o qual cada um teria que dar ao outro uma filha de Zeus por esposa105. Independentemente dos riscos que tiveram de enfrentar, apoderaram-se então de Helena, numa altura em que a donzela, cada vez mais encantadora, se entregava a uma dança ritual no templo de 103

Nicole Ferrier-Caverivière, art. cit., p. 609.

104 Cf. s.v. «Pirítoo» e «Teseu», in Pierre Grimal, Dicionário de Mitologia Grega e Romana,

Tradução de Victor Jabouille, Lisboa, Difel, 1992, respectivamente pp. 376 e 439.

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Ártemis Órtia, em Lacedémon. A sorte determinou que fosse Teseu o feliz contemplado.

Este poder encantatório da mais bela mulher sobre todos os homens justifica, por si só, a ousadia que Teseu manifestou – foi este, com efeito, o primeiro príncipe a ser afectado pela inigualável beleza da filha de Zeus – ao querer raptar a jovem Helena, já que, como observa Isócrates, não há testemunho mais eloquente sobre a virtude de Helena que a natureza excepcional de Teseu e a sua ambição de querer desposar a jovem princesa. De facto, a menção do seu nome estimula a simpatia e a admiração dos atenienses, acabando por granjear ao jovem príncipe uma maior autoridade, ao mesmo tempo que sublinha a excelência de Helena106. Por outras palavras, para a apologia de Helena concorre significativamente a audácia, a valentia e a beleza do seu raptor, visto que a fraqueza e a insensatez do usurpador em nada serviriam o intento de dignificação da filha de Zeus.

Prevendo que os Atenienses não aprovassem esta atitude, por recearem uma querela com os temidos Dioscuros, Teseu confiou-a a Afidnos, mas foi Etra, a mãe do raptor, quem haveria de cuidar de Helena até que esta atingisse a idade núbil107. Após a guerra motivada por este primeiro rapto de Helena, entre peloponesos e atenienses, Etra viria a assumir um importante papel como aia da filha de Zeus108. Quando Helena regressou a Esparta, Etra acompanhou-a maternalmente, de livre vontade, e dela cuidou com desvelo, apesar de, frequentes vezes, a rainha ter dado provas do seu desagrado pela pessoa de Etra, não se coibindo de, em certas ocasiões, lhe pisar a cabeça com os pés, ou então puxar-lhe cruelmente os cabelos. Mais tarde, a escrava acompanhou a filha de Zeus até Tróia, embora Eurípides, por exemplo, omita qualquer alusão a este facto. Existe, inclusivamente, uma versão que relata ter sido Etra quem a aconselhou a abandonar Menelau e a seguir Páris.

É incerto se a relação com Teseu foi consumada, e, portanto, se Helena se manteve virgem. Há autores que defendem que sim, tendo Teseu determinado

106

Cf. Isóc. Hel. 21-22.

107 Est. Cantos Cíprios., fr. X. 108

Esta relação entre a rainha de Esparta e a sua aia será, como veremos, objecto de ilustração desenvolvida no Rancor de Hélia Correia.

preservar a sua castidade até ao seu casamento. Na tragédia euripidiana Helena, é a própria heroína quem afirma ter entrado virgem no leito de Menelau109. Outros, porém, advogam opinião contrária. Segundo Bell, por exemplo, a consumação é óbvia, uma vez que «After all, that was the object of the kidnapping»110, adiantando mesmo que «the more realistic writers even gave the couple a child. Interestingly, but improbably, the child was Iphigeneia»111. A respeito da improbabilidade deste facto, alguns críticos acrescentam que, como prova da sua gratidão pelo sucesso do parto, Helena terá dedicado um santuário em honra de Ártemis.

Este rapto, longe de ensombrar a reputação de Helena, acabou por lhe granjear um prestígio acrescido aos olhos dos gregos. Netta Zagagi sugere a hipótese de acordo com a qual Isócrates terá integrado este episódio no seu discurso, uma vez que a corte de Helena por um herói grandioso, como Teseu, magnificaria necessariamente a sua glória112.

Ora, como defende Backès, se supusermos que havia, primitivamente, duas Helenas, é lícito interrogarmo-nos se ambos os raptos de Helena constituem factos dotados de autonomia relativa; se este rapto foi decalcado do anterior ou se, pelo contrário, aquele é que serviu de modelo a este, de mais ampla difusão113. À pergunta sobre se existirá alguma ligação entre as duas tradições, a única resposta possível parece ser a de que nenhuma conclusão se pode formular com certeza inabalável.

No que concerne a este segundo rapto, os poemas homéricos, e em particular a Ilíada, seguem a tradição mais vulgarizada, se bem que nenhum pormenor seja adiantado. De facto, os poemas desenvolvem apenas uma parcela da história, ou seja, visto que não narram todos os acontecimentos relativos à guerra, apenas temos acesso a breves referências ao rapto. A captura de Helena

109

E. Hel., 1400.

110

Robert E. Bell, art. cit.

111

Idem, ibidem. O mesmo autor nota ainda que «If the child was Iphigeneia, some of the drama of sacrifice at Aulis would be diminished».

112

Netta Zagagi, «Helen of Troy: Encomium and Apology», Wiener Studien., 98 (1985), p. 76.

113

por Alexandre, o heperopeuta114, é, simplesmente, aceite e objecto de menção passageira, sem

que ela constitua elemento de estranheza no contexto normativo da sociedade homérica. A este respeito, Backès considera que «Ce qui a déclenché la guerre, c’est un acte de piraterie»115, uma vez que Alexandre não se contentou em seduzir a rainha – ele roubou-a e apoderou-se dos seus tesouros. O mesmo crítico acrescenta ainda que «il n’y a rien de plus commun que ce genre d’expéditions. L’Iliade en raconte bien d’autres»116. No entanto, o a utor prossegue, afirmando que, aos olhos da sociedade grega, este acto não é, de todo, vergonhoso – «La razzia fait partie de la vie courante; aucune morale ne la condamne»117. Com efeito, o direito não tinha, para os Gregos, o mesmo carácter de imperativo absoluto que detém para o mundo moderno, e essa é a razão pela qual «La razzia n’apparaît pas comme un crime, mais comme un dommage causé à un individu, et qui peut donner lieu à compensation. C’est bien pourquoi, dans l’Iliade, on négocie»118. Não sejamos, contudo, induzidos a pensar que, entre os Gregos, preponderava um laxismo permissivo: uma vez que a honra convém a um acto deste tipo, este rapto não acarreta, por exemplo, quaisquer danos materiais. Toda a violência é considerada, pois, um atentado contra a vítima. Por exemplo, o facto de Agamémnon arrebatar Briseida a Aquiles, uma parte dos seus despojos, é considerado por este último um atentado contra a sua time. Assim, independentemente da forma que pode assumir o roubo, ele representa invariavelmente um ultraje. Deste modo, a usurpação dos tesouros reais é considerada, segundo Backès, um atentado à honra de Menelau, uma ofensa que se situa no mesmo plano do rapto da sua esposa119.

Os pormenores do rapto de Helena por Páris, elididos na epopeia homérica, são-nos relatados na Épica Cípria. Com efeito, é aqui que o mito do

114

Il. III.39.

115

Jean-Louis Backès, op. cit., p. 15.

116

Idem, loc.cit.

117 Idem, loc cit. 118

Idem, loc cit.

119

julgamento de Páris é abordado, supostamente pela primeira vez, tal como a origem do encontro de Alexandre com Helena120.

Escasso tempo decorreu até que o «homem do tálamo funesto»121 seduzisse, efectivamente, a rainha. Agamémnon comenta, em Ifigénia em Áulide, que Páris, recebido na casa dos Atridas, e louco de amor, raptou Helena, também ensandecida de paixão, desonrando a mesa hospitaleira e levando-a para os estábulos do Ida122. Desta forma, Helena, rendida ao interminável rol de presentes que o jovem troiano lhe ofertava, e à sua beleza e luxo oriental que a protecção de Afrodite acrescentava, não hesita em abandonar tudo, incluindo a própria filha Hermíone, que contava à altura nove anos de idade. Esta falta de Helena granjear-lhe-á uma presença assídua na literatura grega123.

Por outro lado, é pertinente sublinhar que a rainha, tirando partido da escuridão da noite, terá reunido todos os tesouros que conseguiu, fazendo-se acompanhar de grande parte do seu dote real e de uma grande quantidade de ouro, furtado ao templo de Apolo, bem como do seu séquito de escravas, entre as quais se encontrava a cativa Etra124. Com efeito, e como sublinha Bell, não deixa de ser estranho que os numerosos súbditos, de guarda ao palácio, tenham permitido que Helena, quer tenha sido raptada ou partido de livre vontade, abandonasse o palácio e com ela transportasse aquele imenso tesouro. De acordo com o mesmo autor, a razão para a inércia dos guardas seria tão-só esta: «Undoubtedly many of the palace guards were secretly in love with her»125.

Chegados a Tróia, Helena rapidamente conquista a simpatia de Príamo e de Hécuba, que, cativados pela sua divina beleza, a recebem com efusivas demonstrações de afecto. Os amantes imediatamente celebram as suas núpcias e, segundo a tradição homérica, foi em Tróia que viveram durante todo o período

120

Outras referências ao julgamento de Páris podem ser encontradas em: Hom. Il. XXIV.28-30; e posteriormente em Eur. Tro. 924 sqq; I.A. 573 sqq, 1290 sqq; Hel. 23 sqq; Andr. 274 sqq; Isócr. Hel. 41 sqq.

121

Ésquilo, Agamémnon, Introdução, tradução e notas de M. Oliveira Pulquério, Lisboa, Edições 70, 1992, vv. 714-715. Segundo o tradutor, a restituição destes versos é uma aproximação, uma vez que os versos originais se encontram corruptos.

122E, I.A. 75-77. Vd. também Ésq., Agamemnon, 400 sqq.

123 Vd., por exemplo, Ésq., op. cit., v. 804; E., I.A., 487-488, 1169. 124

Vd. Apol., loc. cit.; Hig, 92.

125

de guerra, tendo Helena sido considerada por todos, de pleno direito, como esposa de Páris.

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